“Guerra” contra ciclovias em São Paulo revela segregação


             

Na cidade de São Paulo, o que era para ser uma política de mobilidade acabou se transformando em um debate ideológico sobre o direito à cidade

Uma faixa exclusiva e devidamente sinalizada. Essa era uma exigência básica das pessoas que optaram pela bicicleta como principal forma de locomoção. A medida de segurança seria capaz de contribuir com a redução do número de acidentes e atropelamentos envolvendo ciclistas.

Na cidade de São Paulo não foi assim. O que era para ser uma política de mobilidade acabou se transformando em um debate ideológico sobre o direito à cidade.

A decisão do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), de dar atenção a esse tipo de transporte gerou posicionamentos muitas vezes extremistas. Exemplo foi a reação de moradores de Higienópolis – um dos bairros nobres mais conservadores da capital paulista.

Alguns “ilustres”, como o senador e candidato à vice-presidência da República Aloysio Nunes (PSDB) reagiu assim: “Delírio autoritário de Haddad: esparrama ciclofaixas a torto e a direito, provocando revolta nos moradores de Higienópolis”, esbravejou em comentário nas redes sociais.

A declaração de Aloysio se deu quando a cidade completava 120 quilômetros de vias exclusivas para bicicletas. A meta da Prefeitura é chegar a 400 quilômetros até o final de 2015 a um custo de aproximadamente R$ 80 milhões.

A jornalista e cicloativista Renata Falzoni, umas das pioneiras na valorização do uso da bicicleta no país, vê a disputa como exemplo da segregação que existe no Brasil.

“É a síndrome de Higienópolis. Existe no Brasil uma ‘agorafobia’ muito grande de uma classe melhor aquinhoada de status social que tem medo de andar no espaço público, que tem medo de compartilhar o espaço público de pessoas de classes menos favorecidas. O problema é de uma segregação social que o país tem que não traz à baila que não discute”, destaca Falzoni, que também é formada em arquitetura.

A reação enfurecida de moradores de bairros nobres da capital paulista demonstrou ser um caso isolado, pois não foi registrada no recente levantamento da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). O órgão de trânsito mostra que 88% dos paulistanos aprovam a construção e ampliação de ciclovias na cidade.

“Num primeiro momento você cria essa onda de pessoas contra, mas a primeira pesquisa que o Ibope fez já deu que 88% querem a estrutura cicloviária e 92% querem a estrutura de ônibus, que são os corredores. Então está aí, a solução é essa. O que a gente precisa é rapidamente mudar os nossos hábitos”, enfatiza Falzoni.

Atualmente, segundo estudos da Prefeitura de São Paulo, andam pelas ruas paulistanas mais de 500 mil ciclistas. A grande maioria utiliza a bicicleta não como instrumento de lazer, mas para fazer trajetos diários.

“Existe uma ideia de que a bicicleta é elitizada e isso não é verdade. Pelo menos 70% dos que utilizam bicicleta na cidade de São Paulo são trabalhadores mais pobres ao contrário da ideia que se tem de que a bicicleta é um elemento elitizado”, provoca Gabriel Di Pierro, da Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo (Ciclocidade).

Levantamento da Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo, divulgado no início de 2013, revelou que a cada dois dias morria pelo menos um ciclista internado em algum hospital público do estado em consequência de acidente de trânsito.

Para Carlos Aranha, do GT de Mobilidade Urbana da Rede Nossa São Paulo, o que está acontecendo na capital em relação às ciclofaixas abre esperança para o resgate do direito à cidade.

“Uma ciclovia que não tira faixa de rolamento da rua, tira a privatização do espaço público, que era o estacionamento de carros particulares e hoje é uma via segura para o ciclista. Você vê pessoas reclamando disso, você entende que ainda existe um pensamento individualizado e egoísta muito forte”, comenta.

Ainda de acordo com a Secretaria da Saúde, em média nove usuários de bicicleta são internados todos os dias na rede pública de São Paulo. As lesões mais frequentes sofridas pelos ciclistas são traumatismos craniano e da coluna vertebral e fraturas na bacia, no antebraço, no fêmur e na tíbia. O integrante da Nossa São Paulo considera o momento importante para que a cidade deixe de ser modelo negativo para o país.

“Em mobilidade urbana, São Paulo tem sido um modelo ruim para o Brasil há décadas e a gente agora parece que vai começar assim um modelo bom, uma referência positiva para o restante do Brasil”, conclui Aranha.

A disputa pelo direito aos espaços públicos não termina em Higienópolis. A partir de janeiro, uma das principais vias da capital começa a receber ciclofaixas, a Avenida Paulista. Em março de 2013, o ciclista David Santos, 22, teve um braço decepado ao ser atropelado no local pelo estudante Alex Kozloff Siwek. O acidente teve grande repercussão e foi marcado pela fuga do motorista, que lançou o braço da vítima em um córrego.

Protestos de Junho

Questão central em toda cidade, a mobilidade urbana está ligada principalmente ao acesso à cidade e aos serviços públicos. Estopim das manifestações de junho de 2013, a questão levou milhões de brasileiros às ruas – a princípio pela redução das tarifas e por melhores condições de transporte. Entretanto, o tema não chega a ser protagonista das grandes discussões no país, embora tenha sido pano de fundo por mudanças no quadro político brasileiro.

Historicamente, o modelo de cidade nos grandes centros urbanos tem estimulado o transporte individual de carros, a chamada “cultura do automóvel”, deixando em segundo plano o transporte coletivo e alternativas como as ciclovias e as faixas exclusivas de ônibus. Em outras partes do mundo, muitas opções têm melhor sucesso que o uso de automóveis.

“Os países do século 20 compraram sem questionar essa mobilidade em carro individual. Foi talvez uma das indústrias mais eficientes do planeta essa da indústria automobilística de imaginar que o progresso e a felicidade vinham com a carro individual. A conta não fecha”, comenta a jornalista e cicloativista Renata Falzoni.

Segundo pesquisa da Rede Nossa São Paulo, o paulistano gasta diariamente uma média de 2 horas e 46 minutos para se deslocar pela cidade seja de metrô, carro, ônibus, bicicleta ou a pé.

Desde 2013, a cidade tem cerca de 320 quilômetros de faixas exclusivas para ônibus, número que vem crescendo a cada mês. Recente levantamento da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) mostra que os ônibus da capital paulista estão 68% mais rápidos nas novas faixas exclusivas para transporte público.

Expansão automobilística

Segundos dados do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), entre 2003 e 2013, a frota de carros quase dobrou, chegando a um aumento de 123%. Para se ter uma ideia, é como se nos últimos anos, o Brasil ganhasse uma média de 12 mil por dia. A frota de motos foi multiplicada por seis. Já ônibus e trens cresceram apenas 23%.

“Não cabe todo mundo se movimentando ao mesmo tempo de carro. E a nossa cidade já vem mostrando isso há muito tempo. A diferença é que agora a gente começou acordar e a atual gestão começou a ter coragem de discutir isso”, comenta Carlos Aranha, do GT de Mobilidade Urbana da Rede Nossa São Paulo.

Atualmente, o Brasil possui uma frota de mais de 80 milhões de veículos. Os carros ainda são maioria, seguidos pelas motocicletas. E a conclusão é óbvia: junto com o aumento da frota de veículos, aumentam também o tempo gasto no trânsito, a poluição e o número de acidentes. Falzoni acrescenta o problema da localidade das moradias como um agravante.

“Então para que nós tenhamos uma mobilidade digna e transporte público digno, você tem que ter trabalhador morando no centro, perto dos empregos e você tem que ter empregos na periferia, você tem que ter um adensamento ao longo dos corredores de ônibus, dos corredores de metrô e de trem”, conclui Falzoni.

Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/30153

Laísa Mangelli