O Rio Doce, agora, é apenas uma fotografia na parede


O Rio Doce, agora, é apenas uma fotografia na parede, artigo de Márcia Brandão Carneiro Leão

 

 

Parque Estadual do Rio Doce – Minas Gerais. Foto de Malcoln de Oliveira Silva

 

[EcoDebate] Difícil estabelecer um corte na linha do tempo para começar a falar dos absurdos, horrores e irresponsabilidades envolvidos no rompimento das barragens de rejeitos de mineração da Samarco (empresa controlada pela Vale e pela BHP Biliton). Mais difícil ainda mensurar a dimensão exata dos impactos do desastre.

O ideal talvez seja começar pelo licenciamento: a Barragem de Santarém (a segunda que se rompeu em Bento Rodrigues, Mariana, em seguida à do Fundão, na mesma data) está com a Licença de Operação vencida desde 2013 (assim como a Mina do Germano, que faz parte do mesmo complexo). No mesmo ano, o Ministério Público Federal (baseado em laudo produzido pelo Instituto Prístino) alertou para os riscos de desestabilização e da potencialização de processos erosivos, provocados pelo contato entre a pilha de rejeitos e a barragem do Fundão.

As autoridades ambientais do Estado de Minas Gerais, apesar das advertências, asseveraram, na oportunidade, que tudo estava “na mais perfeita ordem” e dentro da legalidade.

Em 5 de novembro deste ano acontece o desastre liberando, ao todo, 62 milhões de metros cúbicos de água e rejeitos de mineração (equivalentes a um terço da capacidade plena da Represa de Guarapiranga), diretamente no Rio Doce.

Para se ter uma idéia do alcance territorial da tragédia, basta lembrar que a Bacia do Rio Doce – localizada na Região Sudeste e a 5ª maior bacia hidrográfica brasileira – abrange dois Estados (Minas Gerais e Espírito Santo), com uma área de 83.400 km² (quase o tamanho da Áustria), desaguando no mar (em Regência Augusta, município de Linhares, no Espírito Santo).

A partir daí, tem início uma sucessão de eventos, na qual é difícil de acreditar:

Logo nas primeiras horas, enquanto a Defesa Civil, bombeiros e voluntários tentavam socorrer as vítimas do desastre, quem se encarregou de preservar a “cena do crime” e “investigar” os acontecimentos foi a empresa de segurança privada da própria Samarco, sob o olhar agradecido e conivente das autoridades responsáveis. Não era possível obter nenhum tipo de informação da Assessoria de Imprensa e muito menos, do Governo do Estado de Minas.

O Governo Federal emitiu uma fria e distante nota na qual lamenta o acidente e trata de liberar o FGTS da população afetada para que ela trate de “se socorrer” com suas próprias reservas para o futuro. Generosidade? Não, apenas transferiram à população o ônus de pagar, com seus próprios recursos, os prejuízos causados pela Samarco. O que acontecerá a essas pessoas quando se aposentarem e não tiverem mais o Fundo de Garantia é algo que sequer foi pensado.

Foram necessários 3 dias para que o Governador do Estado de Minas – eleito com financiamento das mineradoras – se pronunciasse sobre o acontecido, numa coletiva de imprensa convocada que teve lugar nas dependências da sede da Samarco. Não bastasse o insólito da situação, em sua fala, o Chefe do Executivo mineiro saiu em defesa da empresa, afirmando que todas as providências estavam sendo tomadas pelo empreendedor.

Daí em diante começaram a brotar de todos os lados os defensores da mineradora: o Senador Aécio Neves – cuja campanha teve financiamento da Vale – exorta a que não se procurem os culpados e o Secretário de Governo de Desenvolvimento Econômico, Altamir Roso, classifica a Samarco como vítima.

Em meio a toda essa onda de “solidariedade”, em nenhum momento, nenhum CEO da Vale, Samarco, ou BHP Biliton – objetivamente responsáveis pela situação e seus desdobramentos, do ponto de vista ambiental, civil e provavelmente, penal – apareceu diante das câmeras para prestar nenhum tipo de esclarecimento, ou oferecer qualquer tipo de informação. O mínimo que uma empresa decente e ética deveria fazer em circunstâncias desesperadoras como essa, seria montar um centro de atendimento e de informações às vítimas e aos familiares dos desaparecidos, e isso não aconteceu.

Na Assembleia Legislativa de Minas, no último dia 10 novembro, foi formada uma Comissão para investigar as causas e impactos do “acidente”, composta por 15 Deputados Estaduais, sobre sete dos quais existem informações de que as campanhas foram financiadas pelo setor de mineração.

O tempo continua a passar e até às 22h do dia 12 de novembro, nem a Presidente da República, nem a Ministra do Meio Ambiente foram a público para se pronunciarem a respeito da tragédia. Somente nessa data, a Presidente encontrou uma brecha na agenda para sobrevoar a região onde o caos impera.

Enquanto isso, o “mar de lama” alcançou o Espírito Santo e já comprometeu o abastecimento de água de mais de 500.000 pessoas, ao longo dos 23 municípios ribeirinhos. Entre eles estão grandes cidades, como Valadares, por exemplo.

Mas a extensão da tragédia não se restringe às vidas perdidas, aos desaparecidos, à falta d’água, à impossibilidade de recuperar cidades, campos e ecossistemas soterrados pela lama – cujo conteúdo potencialmente tóxico ninguém explicitou – ou mesmo, à constatação do tamanho da enfermidade que toma conta de nosso Estado Democrático de Direito. Ela é muito maior do que se pode imaginar e apenas começa a ser estimada e sentida.

A lama que “chega”, não “passa” totalmente. Ela fica, em boa parte, depositada no fundo do Rio Doce, conformando um novo leito para o rio, preenchendo o fundo com um substrato inerte e estéril, onde a vida será praticamente impossível por aproximadamente 100 anos, segundo estimativas do biólogo Andre Ruschi.

André avalia, ainda, que cerca de 10 mil quilômetros quadrados do litoral capixaba serão afetados por alguns anos, enquanto parte da lama termina de descer, atingindo três Unidades de Conservação Ambiental, entre as quais Santa Cruz, um dos mais importantes criadouros marinhos do Oceano Atlântico.

Não será possível retornar às condições preexistentes.

São impactos socioambientais irreversíveis, que poderiam ter sido evitados e acontecem exatamente no momento em que governo e poder econômico tentam alterar as regras do licenciamento ambiental.

A “Agenda Brasil”, que pretende renovar o fôlego econômico do país, proporcionou as condições ideais para que proliferassem os projetos de “flexibilização”, “simplificação” e “desburocratização” do processo de licenciamento ambiental.

Como reporta Maurício Guetta – advogado do ISA – Instituto Socioambiental -, ao receber a notícia do desastre, durante o encerramento do seminário “Licenciamento Ambiental: realidade e perspectivas”: “o licenciamento ambiental é uma conquista do povo brasileiro e deve ser aprimorado” e as propostas legislativas que se apresentam, claramente “consideram o meio ambiente e as populações afetadas, meros entraves ao desenvolvimento”.

Não bastasse essa movimentação perversa, ainda existe a ameaça representada pelo PL n°37/2011, que pretende instituir o novo Código de Mineração e que tem como relator, o deputado federal Leonardo Quintão (PMDB-MG), que teve quase metade de sua campanha eleitoral financiada por mineradoras. Nas palavras de Guetta, “a proposta, vale registrar, não traz qualquer medida preventiva ou protetiva ao meio ambiente e às populações afetadas”.

Um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida parece, neste momento, apenas um “sonho” constitucional.

Em meio a tanta desinformação e descaso, só uma certeza dilacera o coração dos brasileiros: o Rio Doce, agora, é apenas uma fotografia na parede…mas como dói!!!

*Márcia Brandão Carneiro Leão é professora de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade a Mackenzie Campinas. É graduada, mestre e doutora em Direito Internacional pela USP. Sócia fundadora e 1 a. vice-presidente da SBDIMA-Sociedade Brasileira de Direito Internacional de Meio Ambiente. Sócia fundadora e conselheira da APRODAB-Associação de Professores de Direito Ambiental do Brasil. Sócia-fundadora da ALADA-Associação Latino Americana de Direito Ambiental.

 

in EcoDebate, 20/11/2015