Perdas e desperdícios de alimentos: um desafio para o desenvolvimento sustentável


Por José Graziano da Silva

Estamos todos empenhados em alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Um dos principais objetivos que estabelecemos é conseguir a fome zero até 2030. Gerenciar a agricultura e os sistemas alimentares de forma sustentável é chave para alcançar nossos objetivos. Fizemos esses compromissos conscientes de que produzimos o suficiente para alimentar a todos, ao passo ainda há quase 800 milhões de pessoas que passam fome no mundo. Ao mesmo tempo, mais de dois bilhões de pessoas estão obesas. Os sistemas alimentares não estão alinhados às nossas expectativas.

As perdas e os desperdícios de alimentos representam um importante retrato da ineficiência dos nossos sistemas alimentares. O mundo reconheceu o problema. Uma das metas dos ODS diz que em 2030, devemos reduzir pela metade as perdas de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento, incluindo as perdas pós-colheita e também o desperdício global de alimentos per capita no varejo e no consumo.

As perdas e os desperdícios de alimentos ocorrem ao longo de toda a cadeia de valor agrícola e em todas as fases da produção até chegar à mesa. Os dados revelam que cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são perdidos e desperdiçados por ano no mundo[i], o equivalente a 24% de todos os alimentos produzidos para o consumo humano[ii]. Essas estimativas englobam toda a cadeia de valor. As perdas na produção, no armazenamento e na manipulação somam mais de 520 milhões de toneladas, o equivalente a quase 8% dos alimentos produzidos. As perdas na agricultura e durante o armazenamento são especialmente mais elevadas nos países mais pobres, superior a um bilhão de toneladas, ou quase 12% de tudo que é produzido na África.

As perdas de alimentos tem um forte impacto na segurança alimentar …

O alto índice de perdas de alimentos nos países pobres muitas vezes acontece devido a tecnologias de colheita e pós-colheita insuficientes ou obsoletas; armazenamentos precários, lamentavelmente, muitas vezes o transporte, o processamento e as instalações de refrigeração são inadequados; e faltam infraestrutura e sistemas eficazes de embalagem e comercialização. Os baixos preços recebidos pelos produtores da cadeia de valor faz com que o retorno líquido ao investimento em tecnologias apropriadas seja extremamente baixo ou negativo. Essas perdas representam um enorme pedágio nos recursos disponíveis para os agricultores, especialmente para os pequenos agricultores que enfrentam dificuldade de acesso aos meios de prevenção de perdas. As perdas, portanto, não só reduzem a quantidade de alimentos disponíveis diretamente para alimentar os membros da família de um agricultor familiar, mas também diminui a renda disponível para comprar os alimentos necessários para complementar os suprimentos escassos nos períodos de entressafra. Melhorar as instalações de armazenamento e manuseio também contribui para sanar deficiências sazonais suaves e preservar o conteúdo de nutrientes, isso aumenta a estabilidade do abastecimento alimentar, bem como a qualidade dos alimentos e sua utilização. Finalmente, as perdas estão diretamente ligadas as quatro dimensões da segurança alimentar: disponibilidade, acesso, uso e estabilidade.

… e, ao mesmo tempo, aprofundam o uso de recursos naturais na produção de alimentos

Além das perdas no estágio inicial (produção), existem ainda muitas quantidades perdidas durante as fases de processamento, armazenamento e manipulação nos supermercados e também pelas famílias. Essas formas de perdas e desperdícios somam 780 milhões de toneladas em âmbito mundial, ou 16% dos alimentos produzidos. Evitar essas perdas proporcionaria vantagens adicionais para a segurança alimentar, como por exemplo, fornecer os suprimentos necessários para os bancos de alimentos e redes de segurança, inclusive nos países ricos.

Evitar essas perdas e desperdícios também gera um grande bônus para os ecossistemas da terra, além de reduzir a produção e o consumo de alimentos. As perdas e os desperdícios de alimentos aumentam as pressões já existentes na terra, na água e na biodiversidade e também na emissão de gás de efeito estufa (GEE), afetando os recursos locais e do meio ambiente global. Estimativas atuais apontam que as perdas e desperdícios de alimentos representam aproximadamente 28% das terras agrícolas do mundo que são usadas ​​para produzir alimentos que nunca serão consumidos pelos seres humanos. Ao mesmo tempo, grandes quantidades de energia e recursos hídricos usados ​​em toda a cadeia de abastecimento alimentar, acabam sendo perdidas ou desperdiçadas. Os gases de efeito estufa relacionados com a perda de alimentos e resíduos explicam a porcentagem considerável das emissões totais. Caso as perdas e os desperdícios de alimentos fossem um país seria o terceiro maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, atrás apenas da China e dos Estados Unidos[iii].

Com as crescentes restrições de recursos naturais e a necessidade de aumentar a produção agrícola global em 60% no ano de 2050, o combate ao desperdício torna-se um elemento chave no desenvolvimento global sustentável. Para aumentar a disponibilidade de alimentos, combater as perdas e os desperdícios é, em princípio, muito mais eficiente do que expandir a produção de alimentos. Por isso a comunidade global concordou com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável número 12 (SDG 12), e estabeleceu uma meta específica (12.3) que tem como objetivo reduzir pela metade o desperdício global de alimentos per capita e reduzir as perdas até 2030.

O que pode ser feito para reduzir as perdas e desperdícios de alimentos, preservar nossos ecossistemas e reduzir o impacto das mudanças climáticas?

As perdas e os desperdícios de alimentos devem ser abordados ao longo de toda a cadeia de abastecimento alimentar, para criar sistemas alimentares sustentáveis.

Deficiências gerenciais e técnicas representam importantes causas de perdas de alimentos nos países em desenvolvimento, especialmente nas fases de colheita e pós-colheita. Em tais casos, simples inovações de baixo custo podem fazer uma grande diferença. Por exemplo, a introdução de simples prateleiras elevadas para secagem de peixes no litoral de Burundi na costa do lago Tanganyika na África reduziu consideravelmente as perdas e aumentou o bem estar dos produtores de peixe, dos quais a maioria são mulheres. Da mesma forma, a FAO desenvolveu um projeto de treinamentos na Uganda, Congo e Burkina Faso para pequenos produtores, além de ajudar na compra de sacos plásticos e recipientes metálicos, reduzindo substancialmente as perdas de alimentos em comparação à época em que o alimento era armazenado utilizando instalações tradicionais, como celeiros[iv]. É claro que a introdução de soluções técnicas é mais eficaz quando outras partes da cadeia de abastecimento alimentar também estão funcionando corretamente. A melhoria no armazenamento pode ter pouco impacto sobre a perda de alimentos se, por exemplo, os agricultores não têm acesso aos mercados para vender os produtos. É fundamental reforçar o investimento em infraestrutura, embalagens, transporte e comercialização. Os baixos preços recebidos pelos agricultores e a falta de instrumentos de gestão de risco pode desencorajar a adoção de inovações técnicas e de gestão, mesmo quando esses instrumentos estão disponíveis e são conhecidos.

O problema do desperdício de alimentos pode ser mais complexo para resolver, uma vez que requer mudanças na forma como valorizamos e consumimos os alimentos. Os nossos padrões de consumo atuais não são sustentáveis. Os desperdícios de alimentos estão efetivamente ligados à demanda do consumidor, que evolui constantemente e é influenciado por muitos fatores culturais e sociais que nem sempre seguem racionalidade econômica ou ecológica. Sendo assim, a consciência do consumidor é um passo fundamental para melhorar nossas habilidades em planejamento alimentar, compra e consumo. Levar essas questões para as escolas e criar políticas públicas são importantes pontos de partida. Outra opção é desenvolver mercados para os produtos considerados de qualidade “inferior” e usar medidas para influenciar os padrões de qualidade considerados pelos consumidores. Muitas normas privadas estabelecidas pelos varejistas para garantir certas características dos produtos, acabam desperdiçando alimentos que ainda estão perfeitamente em condições de serem consumidos, mas não os são por problemas de estética devido ao seu tamanho, cor ou forma. Tanto os varejistas, como as instituições de caridade devem ser encorajados a organizar a recolhimento e a venda de produtos que seriam descartados, mas que ainda estão aptos para o consumo e mantém o valor nutricional[v].

A sensibilização é fundamental em tudo isso. A iniciativa SAVE FOOD, uma parceria única liderada pela FAO envolvendo governo, sociedade civil, pesquisadores e o setor privado, está agora no caminho para aumentar a conscientização sobre o impacto e as soluções para combater as perdas e os desperdícios de alimentos. Contamos com mais de 500 empresas e organizações. O objetivo é facilitar o diálogo entre as partes interessadas, impulsionar a inovação e a criação de políticas e estratégias, além de sensibilizar por meio de uma campanha de comunicação global e a organizar congressos regionais. Outros mecanismos de destaque ​​incluem a Comunidade Global de Prática (CoP) sobre a Redução de Perdas de alimentos lançada pela FAO, FIDA e WFP. A FAO ainda dá suporte para o Protocolo de Perdas e Desperdícios de alimentos. Com base nessas parcerias existentes, e por recomendação do G20, uma Plataforma Técnica para a Medição e Redução de Perdas e Desperdícios de Alimentos foi lançada no final de 2015, com o objetivo de sensibilizar, compartilhar as melhores práticas e melhorar a medição das perdas de desperdícios de alimentos.

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