‘Meu Deus, tudo de novo’: o depoimento de um bombeiro sobre a tragédia de Brumadinho


O capitão dos bombeiros Leonard Farah resgata objetos pessoais de uma das casas destruídas pela lama, um mês depois do rompimento de uma barragem da mina da Vale em Córrego do Feijão, perto de Brumadinho, em Minas Gerais, em 22 de fevereiro de 2019. (AFP)

Ao se deparar com a lama marrom, Leonard Farah imaginou a magnitude do desastre. Aquele mar violento de lama que desboca perto de Brumadinho ele já havia visto três anos antes em Mariana, e sabia que não ia perdoar quase ninguém. Aconteceu de novo e parecia ainda pior.

“Quando vi a lama, pensei: ‘Meu Deus, tudo de novo!’. Saber que ia encontrar pessoas na pior situação de suas vidas me deixou muito triste”, conta à AFP Farah, capitão dos bombeiros militares de Minas Gerais, que continua trabalhando em uma zona destruída onde morreram 179 pessoas e ainda restam 131 desaparecidas.

Em 25 de janeiro, Farah estava passando as férias com sua família em Belo Horizonte, quando tocou o telefone. Era seu chefe: uma barragem de rejeitos da Vale havia rompido em Brumadinho, e precisavam dele o quanto antes.

Uma hora depois, voltava a enfrentar a destruição daquela lama, parecida com aquela na qual passou 56 dias em Mariana no fim de 2015, a 160 km dali, embora já no primeiro sobrevoo tenha visto que a catástrofe humana de Brumadinho seria mais grave.

“Ambos os desastres são parecidos, mas em Mariana tivemos 19 vítimas e desaparecidos. Aqui temos cerca de 20 vezes mais”, explica Farah, de 34 anos, que aos 19 largou os estudos de Medicina para seguir sua vocação.

Começava então outra corrida contra a lama, enquanto o país se perguntava como aquele pesadelo podia se repetir. Naquele primeiro percurso, resgataram dezenas de pessoas do tsunami de mais de 12 milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos que devorou 270 hectares, antes de chegar ao rio Paraopeba.

Comandante da companhia de salvamento, Farah não dormiu nos três dias seguintes. Havia lama por todos os lados e as listas de desaparecidos não paravam de crescer, apesar dos turnos de 12 horas que os bombeiros passavam dentro dessa lama viscosa.

“Nas primeiras semanas havia um cheiro muito forte [de decomposição], o desgaste foi muito grande com o sol, o calor, tínhamos que fazer um plano para que os militares não ficassem desidratados”, lembra o capitão, que acaba de fazer um exame para medir sua taxa de metais no sangue, depois de que quatro colegas apresentaram alterações.

Medo

Aqueles primeiros dias desencadearam o pânico nesta região mineira com dezenas de barragens. Em plena confusão, uma informação falsa avisou que outra barragem havia rompido, enquanto os bombeiros buscavam sobreviventes em uma área isolada. Pensaram que não sairiam dali com vida.

“Tivemos que fazer uma técnica muito complicada de rastejar na lama, de praticamente nadar na lama, para sair dessa zona. Então foi um momento de bastante estresse da nossa equipe, porque a gente realmente pensou que seria atingido por esse novo rompimento, mas foi um alarme falso”, lembra.

Os bombeiros, que se tornaram a única luz no desastre, também sentem medo, mas Farah lembra que sua obrigação é permanecer sereno, ainda que isso o obrigue a blindar os sentimentos.

“Quando você se envolve emocionalmente em uma tragédia como esta, a possibilidade de tomar decisões equivocadas é muito grande. Para evitá-lo, precisamos manter uma distância das pessoas. É um pouco frio, mas necessário”, conta.

Um mês depois, cerca de 200 bombeiros continuam trabalhando diariamente na lama, ajudados agora por maquinaria pesada, com a esperança de devolver os mortos a seus familiares, embora o estado do terreno torne essa tarefa quase impossível.

Farah afirma que não cabe a ele apontar os culpados destas tragédias, mas que algo está falhando no coração mineiro do Brasil. Após suas experiências em Mariana e Itabirito, onde outra barragem rompeu em 2014, matando três pessoas, pensou que mais desastres poderiam ocorrer na próxima década, mas não imaginou que seria tão rápido.

“Eu acho que a nossa legislação é fraca, (…) e abre a oportunidade para que não se dê tanta atenção para emergências de barragem”, avalia.

A única coisa positiva que a lama trouxe, diz, é o carinho da sociedade brasileira.

“Eu fiquei muito feliz porque vivemos um momento político de segregação no Brasil, de direita-esquerda, homo-hétero, branco-preto. Acho que a mensagem que os bombeiros passaram é que estamos na lama, enfrentando perigos, doando a nossa vida por outras vidas, independentemente da opção daquela pessoa”, afirma.

AFP