A quem pertencem os bens comuns


Os bens comuns são bens da natureza. São bens não no sentido de posse, mas de dádiva. São presentes. Não podem ser mercadoria. (Pixabay)

Por Marcelo Barros

Nas últimas décadas, em todo o mundo, grupos ecológicos e movimentos sociais insistem na defesa do que chamam de bens comuns.

Muitas vezes, os bens comuns são chamados de “recursos”, como a água é vista como “recursos hídricos”. Governos falam de “reservas ecológicas”. Bens comuns seriam “propriedades comuns”. Nessa perspectiva, o tema dos bens comuns se torna questão de propriedade.

Essa é uma visão utilitária dos bens comuns.  É como se eles existissem em função do uso que deles, nós, seres humanos fazemos. De fato, no mundo inteiro, através da comercialização da terra, da água e de toda a natureza, se provoca forte e acelerada destruição dos ecossistemas. Além disso, se marginalizam as comunidades originárias e culturas comunitárias.

Cientistas da ONU e organismos internacionais chamam a atenção para a ameaça de extinção que pesa sobre as calotas polares, que cada vez mais diminuem de extensão e profundidade. Oceanos e mares se encontram contaminados por resíduos de petróleo. Rios e lençóis freáticos de águas subterrâneas estão ameaçados. Assim podemos continuar falando do ar que respiramos e do conhecimento produzido pela humanidade. Até as areias das praias estão desaparecendo.

Podemos resumir: o planeta Terra pode ser a casa comum de mais de 7 bilhões de pessoas. Pode acolher 80 milhões de pessoas a mais a cada ano, mas não resistirá à ganância das empresas mineradoras que destroem regiões inteiras de florestas, rios e montanhas em busca de minérios. Não suportará a destruição da Amazônia em benefício do agronegócio. Não sobreviverá a um sistema econômico que concentra riquezas nas mãos de 5% de uma elite predadora que possui o equivalente à metade de toda a humanidade e quer sempre mais.

No Hemisfério Norte, a defesa dos bens comuns insiste mais na proteção das águas e do ar, além de elementos que devem ser do uso comum que a própria vida indica (conhecimento, direito à saúde etc), mesmo se todos compreendem que isso faz parte de uma nova economia política. Já em 2009, a Academia Sueca deu o Prêmio Nobel de Economia a Elinor Ostrom, que escreveu um livro sobre a economia política dos bens comuns, ou seja, o problema da sua governabilidade comum.

Na América Latina e no Brasil, a perspectiva contém o cuidado ecológico em relação à natureza, mas a preocupação é mais social. No Fórum Social de Belém, (2009), em um debate sobre esse assunto, Alan Lipietz declarou: “Bens comuns não são coisas. São relações sociais”, conforme citado por Jean-Pierre Leroy, no livro Mercado ou bens comuns (Fase, 2015).

O Brasil tem uma longa tradição de uso comum da terra e dos recursos naturais que vem dos povos indígenas, das comunidades afrodescendentes e mesmo de migrantes europeus que vieram para cá, no século 19, como colônias. Para essas comunidades, a Terra deve ser vista como território, ou seja espaço vital e lugar de vida comum. Mais do que propriedade. Por isso, a luta pelos bens públicos comuns tem de assumir a defesa das comunidades originárias e suas culturas.

Na luta pelos bens comuns, é bom nos lembrarmos da famosa e sempre citada carta que, em 1855, o cacique Seattle, da tribo Suquamish, do estado de Washington, enviou ao presidente dos Estados Unidos (Francis Pierce). O cacique respondia à proposta do governo de comprar o território ocupado pelos índios. E a carta afirmava: “Como pode-se comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal ideia é estranha. Nós não somos donos da pureza do ar ou do brilho da água. Como pode então comprá-los de nós? (…) Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na crença do meu povo”.

Ao reler essa carta, nos damos conta de que defender os bens comuns (terra, água, ar, florestas etc.) significa politicamente defender as comunidades que vivem em comunhão com os bens comuns, tendo-os em comum e não como propriedade ou mercadoria a ser comercializada e sim como dons divinos, como a carta do cacique Seattle revela.

É necessário incorporar uma visão cultural – poderíamos chamá-la espiritual – que responde diferentemente à pergunta que está por trás da luta pelos bens comuns. A quem pertencem os bens comuns? Na lógica capitalista se responderá: a quem os comprar. Na lógica ecológica moderna se pensa: À humanidade ou à coletividade que deles cuida e os administra.

As tradições espirituais dos povos originários respondem: não pertencem a ninguém, porque não são da ordem das coisas que possam pertencer. São as comunidades originárias que pertencem à mãe-Terra, à mãe -Água, ao avô-Sol, ao ar e a toda a natureza que nos cerca. Os bens comuns são bens da natureza. São bens não no sentido de posse, mas de dádiva. São presentes. Não podem ser mercadoria.

A espiritualidade bíblica dirá: São dons de Deus que, por ele nos ter dado, nem de Deus são mais. O salmo canta: “Os céus são de Deus, mas a terra ele a entregou aos seres humanos” (Sl 115, 16). É nossa responsabilidade defendê-los, sempre sabendo que de todos os bens públicos comuns, o mais ameaçado e frágil são as comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas etc.) e sem elas será impossível preservar e cuidar dos bens (dons) gratuitos da natureza.

Marcelo Barros
Marcelo Barros é monge beneditino e teólogo especializado em Bíblia. Atualmente, é coordenador latino-americano da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT). Assessora as comunidades eclesiais de base e movimentos sociais como o Movimento de Trabalhadores sem Terra (MST). Tem 45 livros publicados dos quais está no prelo: “O Evangelho e a Instituição”, Ed. Paulus, 2014. Colabora com várias revistas teológicas do Brasil, como REB, Diálogo, Convergência e outras. Colabora com revistas internacionais de teologia, como Concilium e Voices e com revistas italianas como En diálogo e Missione Oggi. Escreve mensalmente para um jornal de Madrid (Alandar) e semanalmente para jornais brasileiros (O Popular de Goiânia e Jornal do Commercio de Recife, além de um jornal de Caracas (Correo del Orinoco) e de San Juan de Puerto Rico (Claridad).