Bolívia traz inovações na legislação ambiental


A Constituição Boliviana estabelece a existência de uma jurisdição indígena, competente para julgar e revisar penalidades fixadas pelos núcleos comunitários. (AFP)

Por Marcelo Kokke*

A tendência de centralização de estudos e reflexões jurídicas e sociais a partir de uma leitura exclusiva nos referenciais europeus já privou o Brasil por anos, quem sabe séculos, de contato com realidades mais próximas e que muito podem contribuir para com o aprimoramento das regulações jurídico-sociais e ecológicas pátrias. A experiência do direito comparado se torna mais proveitosa e reflexiva quando se projetam reações e contornos de ordenamentos jurídicos vivenciados em contextos similares.

É justamente sob este prisma que a Dom Helder Câmara promove seus grupos de estudo e pesquisa acerca da Amazônia. Esse suporte permitiu a elaboração de obras científicas voltadas não somente à análise dos contextos normativos dos países amazônicos, mas também centrada em contribuir para com a realidade brasileira e um aprimoramento recíproco entre os países amazônicos.

Nesse quadro de desenvolvimentos, a análise da legislação boliviana ascende em vital importância. A dinâmica entre o reconhecimento social e cultural e o reconhecimento jurídico pode variar em gradações por vezes constantes, por vezes variáveis. Uma delas é a dosagem que se apresenta o pluralismo jurídico, em especial, a possibilidade de se institucionalizar níveis de jurisdição interna a determinados grupos originários ou tradicionais. O quadro acentua quando se tematiza o respeito e a afirmação das práticas sociais e cultura indígenas na Amazônia.

A Bolívia é precursora no tema. A Constituição Boliviana estabelece a existência de uma jurisdição indígena, competente para julgar e revisar penalidades fixadas pelos núcleos comunitários a partir de violações às suas regras de convivência e sociabilidade. Isso significa um pluralismo de regência da vida humana segundo o grupo social a que esteja vinculado o indivíduo, não por sua condição apartada, mas, pelo inverso, por sua imanente condição de integrante de uma coletividade de valores.

O estudo desenvolvido a partir da legislação boliviana permite situar os âmbitos de aplicação e limites de persecução das normas jurídico-sociais dos povos originários bolivianos. O esquadrinhar dessa aplicação irá revelar pontos de exaltação e também pontos de crise.

Os pontos de exaltação robustecem a coletividade em seus valores e dimensão de bem-viver próprios, em um eixo de conotações de qualidade de vida que se fazem paralelos aos valores hegemônicos pregados pelo ocidente em seu marco fixado desde a modernidade. Mas os pontos de crise também existem. Quais os limites de aplicação das normas comunitárias? Como equilibrar normas de bem-viver com postulados reconhecidos universalmente como próprios de direitos humanos? É justamente nesse tema que adentra a figura do Tribunal Constitucional como fator de conjunção, como linha de lastreamento a fim de que o pluralismo jurídico possa não se dissipar em um apartamento de regras e penalidades infensas a qualquer avaliação de justiça.

O artigo e a pesquisa revelam uma profunda necessidade de avançar na avaliação do pluralismo jurídico e suas formas de manifestação. O reconhecimento jurídico vai além de uma postura de abstenção de intervenção. Ele se revela na necessária incorporação ao ordenamento jurídico de institutos e instituições próprios para fins de afirmar a tutela indígena como regente de seu cenário de bem-viver, dentro de um marco universal de tutela dos direitos humanos.

Este texto é o primeiro da série de nove artigos sobre jurisdição ambiental dos países que compõem a Pan-Amazônia. A versão integral do livro Pan-Amazônia: O ordenamento jurídico na perspectiva das questões socioambientais e da proteção ambiental está disponível gratuitamente no site da Editora Dom Helder. Leia amanhã texto de Elcio Nacur Rezende sobre o Brasil.

* Marcelo Kokke é pós-doutor em Direito Público – Ambiental pela Universidade de Santiago de Compostela – ESMestre e doutor em Direito pela PUC-Rio. Especialista em processo constitucional. Pós-graduação em Ecologia e Monitoramento Ambiental. Procurador federal da Advocacia-Geral da União e professor da Dom Helder Escola de Direito.