A indústria e o direito humano fundamental de acesso à água


Por Ivan Dutra Doehler

Quando utilizamos hoje em dia algum produto ou serviço, já temos alguma noção de uma pegada de carbono que ele deixa em sua cadeia produtiva. Mas não pensamos sobre quanta água pode ter sido gasta para fabricar os produtos e serviços que consumimos no dia-a-dia. São necessários mil e duzentos litros de água para produzir um quilo de carne. A produção de um aparelho celular consome doze mil litros de água, quase o mesmo que é gasto para fabricar uma única calça jeans: onze mil litros. Um carro requer quase meio milhão de litros de água para ser fabricado.

A escassez de água era tratada como uma questão regional na crônica meteorológica dos anos recentes e se restringiam à Região Nordeste, mas as estiagens recorrentes desde o começo da crise hídrica, que resultaram numa escassez de água dramática nos Estados da Região Sudeste, acenderam o alerta vermelho do racionamento de água e revelaram o desperdício oculto sob a suposta abundância. Diante da escassez, começa a mudar a percepção da água como recurso finito e cada vez mais escasso e caro, mas é preciso que não apenas os particulares racionalizem o uso da água, mas também a indústria dê sua contribuição com práticas que reduzam o uso desse insumo no processo produtivo.

A preocupação com a escassez de água no plano internacional, contudo, vem da década de setenta do Século passado. A Conferência das Nações Unidas sobre a Água, realizada em 1977 em Mar del Plata, recomenda em seu Plano de Ação que sejam feitos esforços coordenados para o uso racional da água e a diminuição do desperdício na indústria e na agricultura. A Conferência Internacional  da ONU sobre Água e Meio Ambiente realizada em Dublin, em 1992, resultou na Declaração de Dublin, que trouxe quatro princípios: a água como recurso finito e vulnerável; a participação popular na gestão e desenvolvimento dos recurso hídricos; o papel fundamental da mulher na gestão e proteção dos recursos hídricos; e a água como bem econômico e sua valoração como elemento de garantia do acesso preferencial à água pelas populações a preços compatíveis.

A Agenda 21, que foi elaborada durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, dedicou dois capítulos à proteção das águas. O Capítulo 18 tem como objetivo geral “assegurar que se mantenha uma oferta adequada de água de boa qualidade para toda a população do planeta, ao mesmo tempo em que se preserve as funções hidrológicas, biológicas e químicas dos ecossistemas, adaptando as atividades humanas aos limites da capacidade da natureza.”

A Agenda 2030 é fruto da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável realizada no Rio de Janeiro em 2012 (RIO+20) e dela constam 17 objetivos. O ODS6 é um dos mais importantes entre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável ali propostos, uma vez que a falta ou dificuldade de acesso à água constituem uma violação ao direito humano fundamental de uso preferencial desse bem ambiental de uso comum do povo. A violação desse direito afeta a parcela mais desfavorecida da população, conforme alertou o Papa Francisco na Encíclica Laudato Si. Estima-se que dois bilhões e meio de pessoas em todo o mundo encontram-se nessa situação.

Segundo dados das Nações Unidas[1], apenas 0,5% por cento da água está disponível para consumo humano e 40% da população mundial enfrentam problemas com escassez de água. Enquanto isso, 70% da água em todo o planeta são destinados à agricultura, 20% são consumidos pela indústria, restando apenas 10% para consumo humano. Apenas 5% de todos os investimentos em todo o mundo são voltados para a gestão da água com base em processos que racionalizam o uso do recurso natural. Os 95% restantes são investimentos que se baseiam nas técnicas tradicionais de gestão da água, em geral grandes desperdiçadoras desse precioso recurso.

Nesse cenário realizou-se no mês de março passado, em Brasília, o 8º Fórum Mundial da Água, em que diversos setores da sociedade manifestaram suas intenções de preservação da água não apenas para o presente, mas também para as futuras gerações. O evento é organizado pelo Conselho Mundial da Água (WWC, da sigla em inglês) em parceria com o pais que sedia o encontro, e mobiliza vários setores da sociedade com o objetivo de fortalecer ações e encontrar soluções para a gestão de recursos hídricos no mundo todo.

No âmbito do 8º Fórum da Água, o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) firmou o Compromisso Empresarial Brasileiro pela Segurança Hídrica, garantindo a aplicação de diversas soluções compartilhadas para enfrentar a crise e reduzir o consumo de grandes volumes de água potável, utilizando técnicas tais como reuso, gestão de perdas, tratamentos sustentáveis para reutilização de efluentes industriais e domésticos, reservatórios de acumulação, soluções de dessalinização, uso de fontes de energia renovável, recuperação e preservação de bacias e mananciais visando o incremento da infraestrutura natural, ações de reflorestamento, como resposta à crise hídrica.

Se nos dias atuais a indústria vem perdendo participação no PIB como reflexo do capitalismo pós-industrial, é impensável continuarmos a dar mais água para os parques industriais do que para o consumo da população. A tecnologia permite à humanidade buscar novas formas de produzir com menos abuso e desperdício de água. Somente o comprometimento do setor produtivo e do governo, somado à efetiva participação das populações na gestão dos recursos hídricos, será capaz assegurar o acesso à água de qualidade para a presente e as futuras gerações, como garantia do exercício de um direito humano fundamental.

Referências

<http://www.agda.pt/declaracao-de-dublin.html>, acesso em 18/05/2018

<http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2013/03/quantos-litros-de-agua-sao-usados-na-fabricacao-de-cada-produto.html>, acesso em 18/05/2018

<http://ambientes.ambientebrasil.com.br/agua/artigos_agua_doce/meio_seculo_de_lutas%3A_uma_visao_historica_da_agua.html>, acesso em 18/05/2018

http://www.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/agenda-21/agenda-21-global/item/670>, acesso em 18 de maio de 2018.

RIBEIRO, Wagner Costa. Geografia política da água. São Paulo. Ed Annablume, 2008.

<https://nacoesunidas.org/pos2015/ods6/>acesso em 20/05/2018

PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si. Ed. Paulinas, 2015, São Paulo.

*Advogado, Especialista em Direito Público pela PUC/MG, Mestrando em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável na Escola Superior Dom Helder Câmara.