Por que animais marinhos confundem plástico com comida?


Foto: IHU

Do plâncton minúsculo a baleias enormes, tem crescido o registro da ingestão de plásticopor animais marinhos de várias espécies. Com esse tipo de resíduo despejado na água em uma escala que chega a milhões de toneladas por ano, esse consumo ocorre quando o animal, ao se alimentar, engole acidentalmente fragmentos de plástico que estão na área – ou quando esses fragmentos são, literalmente, confundidos com o alimento.

A reportagem é publicada por BBC Brasil, 17-09-2018.

E por que isso ocorre?

A explicação de pesquisadores é que o plástico não só parece com comida. Ele também tem cheiro de comida.

“Tente cheirar um pedaço de plástico que você encontrar na água da próxima vez que estiver na praia”, sugere Erik Zettler, ecologista microbiano do Instituto Real Holandês de Pesquisas Marítimas. “Ele cheira a peixe.”

Zettler observa que isso acontece porque todo plástico no oceano é rapidamente colonizado por uma fina camada de micróbios, normalmente chamada de “plastisfério“.

Essa viscosa camada de vida libera substâncias químicas que fazem o plástico ter cheiro e gosto de alimento para os animais marinhos.

Um composto específico, o metiltiometano ou sulfeto de dimetila (DMS, na sigla em inglês), atua como o estímulo químico que o plástico emite e é conhecido por atrair alguns animais, incluindo peixes.

A teoria, ao que tudo indica, também é válida para as aves marinhas quando caçam, já que encontram a comida pelo cheiro.

Mas outras espécies, como as baleias, estão consumindo plástico acidentalmente enquanto filtram a água por plâncton.

Aumento do lixo plástico nos oceanos

A presença de resíduos plásticos vem aumentando rapidamente nos oceanos do mundo – um estudo de 2015 estimou que cerca de oito milhões de toneladas de plásticoentram nas águas oceânicas anualmente.

Alguns flutuam em grandes sistemas de correntes marítimas rotativas, conhecidos como giros oceânicos.

Em um giro, o plástico se decompõe em microplásticos, que podem ser ingeridos pela fauna marinha.

Este estudo é considerado o mais completo esforço já feito para averiguar quantos destes fragmentos estão sendo despejados, soprados ou simplesmente arrastados para o mar.

Kristian Syberg, da Universidade Roskilde, da Dinamarca, contesta, porém, os números.

Segundo ele, os dados subestimam demais as concentrações reais de plástico, principalmente por dois motivos.

“Primeiro, o número é baseado em dados coletados com redes de pesca de superfície – que normalmente deixam escapar partículas menores que 0,3 milímetros”, diz o pesquisador. “E, segundo, as amostras de partículas que estão na superfície do mar representam provavelmente uma porcentagem pequena do total de partículas no oceano.”

O estudo de 2015 indica que, se não houver mecanismos de controle, 17,5 milhões de toneladas de resíduos plásticos poderão entrar nos oceanos a cada ano até 2025.

Afetando a vida sob as ondas?

Algumas questões cruciais surgem com a descoberta de que esses resíduos são consumidos com frequência pelos animais.

Uma delas é o real impacto ambiental deles.

Outra é: por que não estamos usando avanços científicos para substituir produtos problemáticos por alternativas mais seguras?

Mark Browne, que publicou vários artigos sobre os efeitos do lixo plástico no ambiente marinho, disse à BBC que “isso (a substituição desses produtos por alternativas mais ecológicas) poderia ser feito se eles pedissem a ecologistas e engenheiros que trabalhassem juntos para identificar e remover elementos dos produtos que poderiam causar impactos ambientais“.

Mas a extensão do dano não é totalmente conhecida.

“Até agora, o impacto tem sido bastante óbvio em animais maiores, como baleias e pássaros”, diz Syberg.

“Eles podem morrer por asfixia ou de fome, já que a ingestão de plástico bloqueia seu aparelho digestivo.”

Há certas aves, como o albatroz-de-laysan, que já foram muito afetadas pela poluição do plástico.

A equipe do documentário Blue Planet 2, da BBC – que enfoca a vida marinha com foco em descobertas de novas espécies – testemunhou a presença de plástico em substâncias regurgitadas por filhotes de albatroz na longínqua ilha da Geórgia do Sul, no Atlântico Sul.

“Os pais deles devem ter pegado sacolas plásticas no mar, achando que eram comestíveis, e dado a eles como alimento”, disse o produtor executivo James Honeyborne.

“Um filhote morreu ao ter o estômago perfurado por um palito de plástico.”

Erik Zettler, do Instituto Real Holandês de Pesquisas Marítimas, pondera, no entanto, que também há muitos animais que comeram plástico sem consequências consideráveis.

Estudos sobre os impactos “subletais” da ingestão de plástico estão em andamento em alguns laboratórios, assim como pesquisas sobre como isso pode afetar os seres humanos.

Como podemos manter o plástico fora dos oceanos?

Uma enorme operação de limpeza do plástico nos mares foi lançada em 8 de setembro no Oceano Pacífico.

A iniciativa da Ocean Cleanup – fundação que desenvolve tecnologias para extrair a poluição plástica dos oceanos e impedir que mais desses resíduos entrem nas águas – pretende enviar à região um flutuador de 600 metros de comprimento com capacidade para coletar cerca de cinco toneladas de plástico oceânico por mês. Ela promete reduzir o volume da poluição em 90% até 2040.

Mas, diz Syberg, é importante não demonstrar tanto “entusiasmo” com soluções tecnológicas que ajudam, mas não resolvem o problema.

“A limpeza é boa e pode ajudar, especialmente se for concentrada em áreas costeiras com alta emissão de plástico para o oceano”, analisa ele. “No entanto, a solução definitiva para a poluição plástica é impedir que ela aconteça, e não limpá-la depois que está feita. A solução só acontecerá se todos nós mudarmos nossas formas de usar e descartar o plástico.”

Erik Zettler participou de mais de 60 viagens de pesquisa científica coletando dados oceanográficos, incluindo resíduos de plástico encontrados no Pacífico, no Atlântico, no Caribe e no Mediterrâneo.

Ele concorda com Syberg e diz que pode não haver “soluções rápidas” para o problema.

“Vai ser preciso uma combinação de várias coisas – como mudanças no comportamento humano, regulamentações governamentais e participação da indústria – para reduzir o plástico no meio ambiente“, diz.

IHU

Navio grego suspeito do óleo no Nordeste brasileiro entregará documentos solicitados


Manchas de óleo aparecem há três meses na costa brasileira (ADEMAS/AFP)

O petroleiro grego “Bouboulina”, principal suspeito segundo as autoridades do gigantesco derramamento de petróleo no litoral brasileiro, declarou-se disposto a apresentar os documentos sobre os detalhes de sua navegação no final de julho.

De acordo com a empresa Delta Tankers, proprietária do Bouboulina, uma carta das autoridades brasileiras enviada ao Ministério da Marinha Mercante da Grécia pede que quatro empresas marítimas gregas – incluindo a Delta Tankers – forneçam documentos que contribuam para a investigação realizada sobre o enorme vazamento de óleo.

Também proprietárias de navios petroleiros que navegaram durante esse período na costa brasileira, s outras empresas gregas afetadas são: Marani, dos navios “Maran Apollo” e “Maran Libra”; Euromav, proprietária do “Cap Pembroke”, e Minerva, dona do “Minerva Alexandra”.

O prazo para entregar os documentos ao Ministério grego antes de serem enviados ao Brasil é 13 de novembro, afirma uma fonte próxima ao processo.

A origem da mancha, que surgiu no final de julho e poluiu mais de 2.000 quilômetros do litoral nordestino brasileiro, permanece um mistério.

Em 1º de novembro, porém, as autoridades brasileiras disseram ter identificado o “Bouboulina” como o principal suspeito do desastre ecológico, graças a imagens de satélite.

A Delta Tankers negou “qualquer responsabilidade” na catástrofe ambiental e considerou que não havia evidências de vazamento no navio-tanque, que partiu da Venezuela em 19 de julho antes de chegar diretamente a seu destino, o porto malaio de Melaka, em 4 de setembro.

Uma investigação completa realizada pelos petroleiros da Delta, com “câmeras, dados e gravações”, mostra que “não há evidências de vazamento, transferência de navio para navio, derramamento, perda (de carga), ou atraso de Bouboulina”, afirmou a Delta Tankers.

Segundo o Ministério Público brasileiro, os danos da mancha de óleo são de “proporções imensuráveis” e atingiram “estuários e manguezais em todo Nordeste brasileiro”.

Até 29 de outubro, as manchas apareceram em 264 locais em nove estados. Milhares de voluntários se mobilizaram para limpar as praias.

AFP

O Antropoceno é um alerta sobre as ações humanas no planeta


Foto: EBC

A palavra Antropoceno é relativa à área da Geologia, diz respeito aos efeitos da ação do ser humano sobre os mais variados sistemas da Terra. Entretanto, mergulhar no conceito é entrar num complexo emaranhado. Primeiro, porque não é consenso no campo científico a existência dessa como uma nova era na escala geológica e, segundo, porque há inúmeras interpretações acerca dessa ideia de “efeito dos humanos sobre os ecossistemas”. Fato que não pode ser negado é que, desde que o homem fica em pé, domina a agricultura e passa a viver assentado, o planeta vem se transformando de forma exponencial. Por isso, o filósofo e pesquisador Etienne Turpin vai além da busca conceitual e compreende o “Antropoceno como um alerta sobre os efeitos agregados das ações humanas sobre humanos, não humanos e vários sistemas entrelaçados”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, acrescenta que “tem a ver com intensidade e velocidade, e como os efeitos agregados das ações humanas(muitas vezes não intencionais) que se acumulam. Mas esses efeitos não se acumulam igualmente em todos os lugares, nem para todas as pessoas ou para cada grupo de pessoas”.

E se desde que o homem começa o processo de domesticação das plantas já há alterações em todo globo, imagine quando constrói cidades e passa por cima dos mais inúmeros e diversos ecossistemas. É por isso que o tema do Antropoceno não pode ser um objeto restrito apenas a estudos de campos como GeologiaEcologia, mas também deve se estender a áreas como Design e Arquitetura. “A arquitetura tem sido bastante resistente ao ‘impacto’ há algum tempo. Talvez desde o desvio do discurso da autonomia no discurso da arquitetura na América do Norte e na Europa, a disciplina se apegou a uma ideia de independência que a tornou cada vez mais retrógrada e reacionária, senão totalmente irrelevante para as preocupações contemporâneas”, aponta Turpin. Para ele, é preciso que tenhamos consciência de que “somos, em graus variados, reféns do Antropoceno, a imagem do Homem como Mestre da Natureza”.

Nesse sentido, talvez o caminho para se pensar numa saída seja romper com esses limites disciplinares. “Até mesmo a ideia de que a multidisciplinaridade como tal é uma chave de ouro para o bloqueio da complexidade parece um pouco como um slogan neoliberal nos dias de hoje. Não que eu seja contra, mas o que precisamos é de modelos mais ágeis e convincentes de investigação e intervenção”, acrescenta. Assim, Turpinconcebe um enfrentamento aos dilemas ambientais e sociais originados pelo Antropoceno para além do debate acadêmico e disciplinar. “Na minha prática, eu trabalho cruzando vários formatos para construir alternativas, porque acredito que seja possível e urgente fazê-lo”, diz. Nesse sentido, observa que “a Filosofia pode ser praticada melhor em vários registros em que o pensamento faz parte do conjunto”, por isso vai associar essa a tantas outras práticas como editor de livros, curador de mostras, designer, entre outras, como forma de pensar saídas ao Antropoceno. “Esse trabalho não tem a ver com prever o futuro, mas se concentra em projetar uma infraestrutura criteriosa, atentando cuidadosamente para estas trajetórias do Antropoceno”, finaliza.

Etienne Turpin | Foto: Dutch Art Iinstitute

Etienne Turpin é filósofo, pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts e diretor fundador do Anexact Office, escritório de arquitetura em que atua. Suas pesquisas se baseiam no design das cidades de Jacarta, na Indonésia, e Berlim, na Alemanha. Também é membro fundador do User Group, cooperativa internacional de propriedade de trabalhadores que desenvolve infraestrutura humanitária, software de código aberto e ferramentas de coleta de dados geoespaciais. Com sua parceira Anna-Sophie Springer, Turpin é pesquisador do ReassemblingNature.org, onde trabalham a partir da exposição sobre o significado das coleções de história natural no Antropoceno.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma o Antropoceno, como era geológica e ambiental, tem produzido transformações nas formas de vida e hábitos humanos em escala global?

Etienne Turpin – Em nosso escritório de pesquisa em design (anexact office), entendemos o Antropoceno como um alerta sobre os efeitos agregados das ações humanas sobre humanos, não humanos e vários sistemas entrelaçados. Isso tem a ver com intensidade e velocidade, e como os efeitos agregados das ações humanas (muitas vezes não intencionais) que se acumulam. Mas esses efeitos não se acumulam igualmente em todos os lugares, nem para todas as pessoas ou para cada grupo de pessoas. Usamos o demonstrativo proximal “este” para qualificar as nossas discussões: o que este Antropoceno nos diz sobre poder político, controle social e imagens da natureza? Como no breve filme-palestra Conspiracy of the Anthros, filmado no Rio Ciliwungde Jacarta, este Antropoceno está conectado, mas é distinto de outras instanciações.

Para saber mais, veja o filme, em inglês, Conspiracy of the Anthros: https://youtu.be/baMWCx6kwoo

 

IHU On-Line – Como o Antropoceno, enquanto espírito do tempo, joga luz sobre certas ilusões epistemológicas da Modernidade? Que ilusões em especial ele ilumina?

Etienne Turpin – Esta é uma pergunta mais para Bruno Latour, que lida com essas heranças da Modernidade de modo bastante explícito. Não estou tão certo quanto ele da profundidade ou da amplitude da ilusão. Certamente, durante a colonização europeia, havia uma divisão clara e distinta entre humanos e natureza. Talvez seja por isso que Walter D. Mignolo e Catherine E. Walsh insistem em usar o termo modernidade-colonialidade.

De qualquer forma, essa divisão não desapareceu porque provou ser uma ilusão. No mínimo, por ser um limite ilusório, é guardado mais febrilmente agora do que nunca. No Brasil, o trabalho de Paulo Tavares é especialmente importante para desmontar o quadro epistemológico da modernidade-colonialidade, no que diz respeito às histórias indígenas. Se existe uma prática de arquitetura no Brasil hoje que mostra como a prática pode se envolver em trabalhos críticos, situados e urgentes é a agência Autônoma de Tavares.

Paisagens esculpidas que cobrem a costa da Guiana Francesa, no norte da Amazônia. Quase invisíveis a partir do solo, esses grandes aglomerados foram descobertos através das “arqueologias fotográficas” multicanal produzidas por Stéphen Rostain, nos anos 1980. (Foto: cortesia Stéphen Rostain)

IHU On-Line – Esse novo rearranjo produz impactos no campo do design e da arquitetura? Explique.

Etienne Turpin – A arquitetura tem sido bastante resistente ao “impacto” há algum tempo. Talvez desde o desvio do discurso da autonomia no discurso da arquitetura naAmérica do Norte e na Europa, a disciplina se apegou a uma ideia de independência que a tornou cada vez mais retrógrada e reacionária, senão totalmente irrelevante para as preocupações contemporâneas. Não posso falar sobre a situação no Brasil, mas eu lecionei no Canadá, nos Estados Unidos, na Austrália e na Rússia. Eu vivo e trabalho na Europa e faço alguns workshops, mas realmente não leciono no verdadeiro sentido da palavra. De qualquer forma, estou bastante cético em relação ao que vi na última década.

Em 2013, depois de organizar o Simpósio The Geological Turn no Taubman College, na Universidade de Michigan, altos funcionários e administradores me disseram que, apesar do enorme sucesso da própria conferência, “ninguém nunca vai se importar com o Antropoceno”. Milhares de conferências depois, sem falar da enxurrada de livros, artigos populares, publicações acadêmicas, parece claro que muitas pessoas se importam, sim, com essas preocupações. Então, eu me pergunto por que esses arquitetos-acadêmicos estavam tão ameaçados pela discussão do Antropoceno na época. Será porque a gravidade e a complexidade do problema que ele ajuda a delinear torna a arquitetura e suas tradições especialmente cúmplices da implacável destruição do planeta?

Em última análise, como o próprio capitalismo, a disciplina tentará fazer do Antropoceno um tema do qual ela possa extrair frases discursivas úteis e, então, ir à caça da próxima coisa na tentativa de representar a si mesma como um relevante campo de estudo. É um problema realmente óbvio para mim: a arquitetura acadêmica está interessada na representação habilidosa e inteligente dos problemas, de tal modo que a autoria, o poder e o controle permaneçam incontestados. Enquanto essa vontade de dominação através da representação não for superada, a disciplina simplesmente se tornará cada vez mais como um marketing tridimensional. Se isso soa muito crítico, deveríamos pelo menos admitir que a maioria das escolas de arquitetura estadunidenses hoje poderiam ser subsumidas pelas faculdades de Administração como um subcampo do marketing com poucas mudanças em seu currículo.

Assista, em inglês, aos vídeos das conferências do Geological Turn.

IHU On-Line – Ainda faz sentido a divisão categórica entre natureza e cultura? Como o Antropoceno produz uma nova deontologia?

Etienne Turpin – A divisão entre natureza e cultura às vezes é pragmática, mas não é nem categórica nem ontológica. Eu acho que é importante aceitar que existem processos independentes da mente e da cultura, chamemo-los de realidade, natureza ou do que você quiser. Ao mesmo tempo, há pouca realidade ou natureza, pelo menos na Terra, que não seja de alguma forma afetada pelo efeito agregado das atividades humanas com as quais devem interagir. Isso é algo que tentamos escrever recentemente a respeito de cidades, mosquitos e dengue – como as suposições humanas sobre essas divisões realmente orientam a política urbana e/ou os processos urbanos que ficam ainda mais fora de controle à medida que tentam ganhar o controle?

Veja o artigo, em inglês, Our Vectors, Ourselves.

À esquerda: uma fêmea do Aedes aegypti em voo, o abdômen distendido pela ingestão recente de sangue de um fotógrafo biomédico do CDC. À direita: uma superfície exoesquelética externa do Aedes aegypti feminina é estendida, tornada transparente por uma massa vermelha intra-abdominal de sangue de vertebrados. (Fotos: James Gathany – CDC | Universidade de Notre Dame)

IHU On-Line – Poderíamos dizer que o Antropoceno inaugura uma nova estética? De que ordem?

Etienne Turpin – Eu tentei escrever sobre essa estética, tanto em artigos anteriores, quanto na coleção que editei com Heather Davis, intitulada Art in the Anthropocene[Arte no Antropoceno, em tradução livre], publicado pela Open Humanities Press em 2015. No artigo “A estética não intencional do Antropoceno” [em tradução livre], eu argumentei que essas estéticas estão todas ao nosso redor, incluindo algumas mais óbvias, como as montanhas de lixo e as gigantescas chaminés industriais. Vivemos em meio a montanhas de lixo que ajudaram a produzir o Antropoceno como cascas desprezadas da acumulação industrial-capitalista. Podemos imaginar essa estética como caracterizada pelas externalidades territoriais e encarnadas da imagem do progresso sob o capitalismo.

IHU On-Line – De que forma podemos compreender o paradoxo de que o Antropoceno, justamente a era em que a ação humana interfere diretamente na autopoiésis da terra, tornou os seres humanos ainda mais reféns da natureza?

Etienne Turpin – Em uma recente exposição sobre o Antropoceno que eu organizei com Anna-Sophie Springer no contexto de uma colaboração de longo prazo chamada Reassembling the Natural, nós interviemos na exposição de um museu de história natural, reorganizando-o, criticando-o e introduzindo 18 obras de arte contemporânea para contestar a pedagogia do excepcionalismo humano que é ubíquo no museu em condições normais. Após três meses de visitação, recebemos os comentários do livro de visitas – os visitantes ficaram furiosos. Fomos acusados de destruir o museu de história natural!

Parece claro agora que, à medida que as pessoas se tornam cada vez mais conscientes das catástrofes ecológicas iminentes (sejam elas referentes à extinção, às mudanças climáticas etc.), elas se apegam ainda mais fortemente a uma imagem da natureza que está na raiz do problema! Se somos, em graus variados, reféns do Antropoceno, a imagem do Homem como Mestre da Natureza – como Ele é apresentado em quase todos os museus de história natural – torna-se um mito que deve ser defendido para não admitirmos a nossa precariedade.

Sugiro aos leitores ver as imagens da exposição de Hamburgo.

IHU On-Line – Como o Antropoceno, mais especificamente o aquecimento global, exige uma nova forma de relação com as comunidades/populações mais fragilizadas pelo rearranjo climático? Em particular, qual a contribuição do design e da arquitetura nesse sentido?

Etienne Turpin – Minha prática tem sido uma extensa etnografia institucional e trabalho de campo, então, acho que, se os arquitetos estão se perguntando: quem são as partes interessadas nesse projeto, eles já estão muito atrasados. Se você precisa se perguntar para quem é o seu projeto, você já entendeu tudo errado. A pesquisa em design, software e infraestrutura humanitária em que eu tenho trabalhado, tanto com o anexact office quanto com a cooperativa de propriedade dos trabalhadores User Group, começa atendendo às condições in loco. Onde estamos? O que está acontecendo? O que faz as coisas se moverem? O que faz as coisas pararem?

Isso significa se sentar, ouvir, estar na cidade e fazer parte de suas alegrias e tristezas, de seus potenciais e seus limites. Os designers não são observadores privilegiados! Eles podem fazer parte de uma conversa, fazer parte de uma narrativa, fazer parte do processo, e eles têm algumas habilidades úteis, é claro. Mas, se você não consegue ver uma cidade ou um sistema pelo que eles são, ou seja, como eles funcionam, o que os residentes podem fazer uns com os outros (para fazer referência ao brilhante trabalho de AbdouMaliq Simone), você acaba de volta ao jogo da representação. Há quanto tempo Foucault falou sobre a indignidade de falar pelos outros? No entanto, a arquitetura ainda não captou a indignidade de representar os outros! Se há alguma contribuição que a arquitetura pode fazer, é definitivamente a de ir ao encontro das lutas pela justiça social e ambiental, e pela integridade climática, com humildade – não como um especialista com respostas, mas para ouvir e aprender com os que estão na linha de frente.

IHU On-Line – Quais os limites da arquitetura enquanto disciplina para enfrentar os desafios colocados pelo Antropoceno? Como a multidisciplinaridade pode contribuir nesse sentido?

Etienne Turpin – Cada disciplina é uma herança do Holoceno, portanto, nesse aspecto, a arquitetura é como qualquer outro campo de pesquisa. Agora, vemos as disciplinas competindo umas com as outras sobre quem é o árbitro apropriado do Antropoceno. Incrível, não? De fato, Isabelle Stengers previu esse triste resultado em sua entrevista com Heather Davis, publicada pela Open Humanities Press em Architecture in the Anthropocene [A arquitetura no Antropoceno], em 2013.

Mas agora eu estou longe demais da academia para dar uma resposta adequada, para ser perfeitamente franco. Eu sinceramente não sei como esses debates disciplinares ainda podem persistir, para que fim, com quanta energia desperdiçada e para quê?! Até mesmo a ideia de que a multidisciplinaridade como tal é uma chave de ouro para o bloqueio da complexidade parece um pouco como um slogan neoliberal nos dias de hoje. Não que eu seja contra, mas o que precisamos é de modelos mais ágeis e convincentes de investigação e intervenção, não de um slogan de “vamos todos juntos”.

Em um projeto de software de código aberto que eu ajudei a desenvolver na Indonésiaa partir de 2013, a equipe de pesquisa original era composta por mais de 15 disciplinas distintas. Desde então, dezenas de pessoas de outros campos também vieram trabalhar no projeto, apoiaram-no e passaram por ele, e depois por outros projetos ou áreas de pesquisa. Por estar embasada em uma realidade concreta, ela é restringida de tal modo que torna esses vários compromissos epistemológicos valiosos, mas apenas parcialmente. Ninguém pode narrar o projeto inteiro a partir de uma disciplina – engraçado, essa parece ser uma boa maneira de mantê-lo trabalhando, e de mantê-lo trabalhando em conjunto.

Assista ao vídeo, em inglês, How to Make a Report (Como fazer um relatório, em tradução livre): https://youtu.be/EfJRa9sF89Y

 

IHU On-Line – É possível construir alternativas aos dilemas ambientais e sociais originados pelo Antropoceno para além do debate acadêmico? De que maneira pode-se integrar outros interlocutores na discussão, como, por exemplo, as populações atingidas pelas mudanças climáticas?

Etienne Turpin – Sim, eu acho que é possível. Pelo menos, na minha prática, eu trabalho cruzando vários formatos para construir alternativas, porque acredito que seja possível e urgente fazê-lo. Formei-me como filósofo, mas acho que a filosofia pode ser praticada melhor em vários registros em que o pensamento faz parte do conjunto. Como editor (e, ocasionalmente, como escritor), eu trabalho com o setor de publicações porque ainda acredito que os livros (e as ideias que eles transmitem) são consequentes para essa condição que podemos chamar de Antropoceno. Como curador, acho que as exposições ainda são um espaço para desafiar as narrativas culturais dominantes e para reformular os modos de ver o Antropoceno. Como designer que trabalha cruzando o design urbano, o software de código aberto e a infraestrutura humanitária, gosto de pensar no nosso trabalho como anastrófico. Se uma catástrofe é o passado se separando, uma anástrofe é o futuro se unindo. Como podemos fazer design para as convergências do Antropoceno (mudanças climáticas, luta política, migração, conflito etc.), permitindo a colaboração, a cooperação e a criatividade em participantes humanos e não humanos? Esse trabalho não tem a ver com prever o futuro, mas se concentra em projetar uma infraestrutura criteriosa, atentando cuidadosamente para estas trajetórias do Antropoceno.

Veja, em inglês, o Manifesto do Design Anastrófico: https://youtu.be/m6a3c3BadOE

 

IHU

‘Caçadores’ de morcegos percorrem áreas verdes para catalogar animais


‘Alguns autores citam que eles podem comer mais de mil insetos em uma só noite’ (PMPA)

Eles podem comer até metade do próprio peso em uma só noite. Ao contrário do que muitos pensam, enxergam bem e, embora assustem, não são vilões – pelo contrário. Em São Paulo, especialistas percorrem áreas verdes para catalogar as espécies de morcego da cidade. A reportagem acompanhou uma dessas expedições.

O trabalho de biólogos e veterinários da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente e do Centro de Controle de Zoonoses foi realizado no Parque Cidade de Toronto, na zona oeste. O objetivo era quantificar espécies e coletar material para exames na Universidade de São Paulo (USP). Uma das participantes foi a bióloga Adriana Ruckert, que estuda os animais há 16 anos. “Sou apaixonada por eles, são fascinantes”, diz Adriana, que não sai de casa sem pelo menos um brinco, colar ou anel que remeta ao mamífero da ordem Chiroptera, palavra que significa “mãos que se transformaram em asas”.

Durante o trabalho de montagem das redes de captura no parque, Adriana dá explicações sobre os morcegos. De grande porte, as chamadas “raposas voadoras”, diz, não ocorrem no Brasil. Já em relação aos menores, há 43 espécies catalogadas só em São Paulo. “Um número considerável se levarmos em conta o tamanho da urbanização.”

Os mais comuns são os insetívoros, que comem mosquitos, moscas e besouros. “Alguns autores citam que eles podem comer mais de mil insetos em uma só noite”, diz Adriana, ressaltando o papel do animal no equilíbrio ambiental. Já os temidos hematófagos, que se alimentam de sangue, são encontrados em regiões de “borda” da cidade, como áreas periféricas, com mais árvores.

Enrico Bernard, presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo de Quirópteros, explica que o morcego é um animal estigmatizado, principalmente pela falta de conhecimento sobre suas contribuições à natureza. “Das 1.411 espécies, só três se alimentam de sangue e as três ocorrem no Brasil. O que ocorre é que, geralmente, há um alarmismo com mordidas.”

No parque, a equipe de pesquisadores monta as redes em uma área próxima das copas de árvores e do lago. “Está vendo essa movimentação de pássaros em busca de insetos em cima do lago? Daqui a pouco, serão os morcegos que estarão na caça deles, basta a noite chegar”, aponta Adriana.

Pouco depois, eles começam a aparecer nas redes, a maior parte da espécie Myotis nigricans, pequeninos, com 5 centímetros e cerca de 5 gramas. Durante a noite, apesar de enxergarem bem, guiam-se principalmente pelos sons que eles próprios emitem.

A sala de administração do parque se transforma em “laboratório” pelos pesquisadores. Os animais capturados vão sendo pesados e são coletadas amostras de saliva, sangue e fezes, que serão levadas para o laboratório da USP no Departamento de Microbiologia e Medicina Veterinária. Esses exames avaliam a saúde dos morcegos paulistanos com relação à raiva e servem para o levantamento de espécies na área urbana.

Ápice

A equipe trabalha de modo intenso até as 21h. E, quando os biólogos já estavam prestes a encerrar o expediente, surge a “estrela da noite”: um morcego que se alimenta de frutas, o Artibeus lituratus, imponente, e um dos maiores encontrados na cidade. “É uma fêmea e está amamentando”, explica Adriana, admirada.

Todos os animais são soltos na natureza após o estudo. Um aprendiz de biólogo se emociona ao liberar um dos pequenos após coleta das amostras. “Eles são lindos demais.”

Acidentes em SP

O número de acidentes com morcegos na capital paulista cresceu 101,8% neste ano, segundo a Coordenadoria de Vigilância em Saúde órgão da Secretaria Municipal da Saúde. Os registros passaram de 107, em 2018, para 216, em 2019. Entre os motivos para a alta está a entrada de grupos, principalmente religiosos, em uma Área de Proteção Ambiental (APA) na zona leste da cidade.

“Os morcegos são muito comuns nas áreas urbanas e estão em todos os distritos e bairros, pois se adaptaram bem”, afirma Débora Cardoso de Oliveira, bióloga do setor de quirópteros do Divisão de Vigilância de Zoonoses da secretaria.

Segundo ela, os mais famosos e temidos – que se alimentam de sangue, chamados hematófagos – estão restritos às áreas de mata. Normalmente, mordem outros animais, mas quando encontram pessoas em seu hábitat podem também mordê-las em busca de alimento. “Eles não atacam, não têm um comportamento agressivo”, conta.

São registrados como acidentes mordidas ou arranhões por qualquer espécie de morcego, incluindo os que não se alimentam de sangue. Parte do aumento foi causada pela entrada de grupos religiosos em uma APA.

Embora não seja possível indicar quais regiões da cidade registram mais acidentes, 31,9% dos casos deste ano foram atendidos no Hospital Municipal Tide Setúbal, na zona leste paulistana, unidade de referência para esse atendimento, onde houve 69 casos.

Segundo a pasta, a Unidade de Vigilância em Saúde da Cidade Tiradentes, na zona leste, fez um trabalho de monitoramento dos morcegos na APA Iguatemi e orientou a população. Campanhas de conscientização para que a população busque atendimento médico em caso de acidente também podem ter contribuído para a alta de registros.

Bióloga que trabalha com morcegos há uma década, Helen Regina da Silva Rossi explica que, ao longo dos anos, os morcegos se adaptaram à vida nas cidades, principalmente as espécies que se alimentam de insetos.

“A iluminação das cidades atraiu os insetos e os morcegos vão em busca de alimento. E os morcegos que se alimentam de insetos se adaptaram às casas. Por isso, podem ser encontrados no forro de residências”, alerta a especialista.

Raiva

A capital não tem registro de raiva humana autóctone desde 1981. No Estado, nenhum caso de raiva foi registrado neste ano. No ano passado, houve o registro em um paciente de Ubatuba, segundo a Secretária de Estado da Saúde.

“Caso tenha tido contato direto com um morcego ou se for frequentador de áreas de mata e notar qualquer ferimento com sangue, é imprescindível procurar orientação médica pelo risco de pegar raiva. Essa doença, se não for tratada imediatamente, é fatal. Pessoas, cães e gatos com histórico de contato com morcegos também devem procurar ou ser encaminhados para o serviço de saúde, para a avaliação médica”, informa a secretaria municipal.

A pasta estadual lembra que não é permitido matar nem ferir os animais. “Morcegos são animais silvestres protegidos por legislação e contribuem ambientalmente no processo de polinização, dispersão de sementes e redução de pragas de insetos.”

Agência Estado

Primeiro trem do mundo movido a hidrogênio estreia na Alemanha


Foto: EcoD

Começaram a circular na segunda-feira, 17 de setembro, na Alemanha, os primeiros trens movidos a hidrogênio. As duas composições farão um trajeto de 100 quilômetros entre as cidades de Cuxhaven, Bremerhaven, Bremervoerde e Buxtehude, ao norte do país europeu.

“O primeiro trem de hidrogênio do mundo está entrando em serviço comercial e pronto para produção em série”, disse o presidente da fabricante Alstom, Henri Poupart-Lafarge, na cerimônia de inauguração.

A cerimônia foi em Bremervoerde, a estação onde os dois trens da fabricante francesa serão reabastecidos com hidrogênio. Até agora, o trecho, não eletrificado, era atendido por trens a diesel.

A Alstom aposta na nova tecnologia como uma alternativa mais ecológica e silenciosa para o transporte ferroviário, e tem planos de entregar outros 14 trens de emissão zero até 2021 à operadora ferroviária local LNVG, do estado da Baixa Saxônia.

A Alemanha pretende reduzir suas emissões de CO2 em 40% até 2020 em comparação com os níveis de 1990, e se comprometeu a usar 80% de energia renovável em seu abastecimento elétrico até 2050

Os trens de hidrogênio são equipados com células de combustível que produzem eletricidade por meio de uma combinação de hidrogênio e oxigênio, um processo que tem como únicas emissões vapor e água.

Metas ambiciosas
Com metas climáticas ambiciosas, a Alemanha pretende reduzir suas emissões de CO2 em 40% até 2020 em comparação com os níveis de 1990, e se comprometeu a usar 80% de energia renovável em seu abastecimento elétrico até 2050.

O trem azul-claro da Alstom foi apresentado pela primeira vez ao mundo na feira da indústria ferroviária Innotrans em 2016 e apelidado pela empresa como o “trem do futuro”. Ele pode rodar por cerca de mil quilômetros com um único tanque de hidrogênio, que é semelhante à capacidade dos trens a diesel.

Energia elétrica
No cerne do sistema iLint está uma célula de combustível situada no topo do trem. O hidrogênio é fornecido à célula e então combinado com o oxigênio retirado do ar do ambiente em seu interior. Os dois produtos dessa reação química são a eletricidade, que é usada para alimentar uma tração elétrica que controla os movimentos do trem; e a água, que é emitida na forma de vapor.

Toda a energia elétrica que não é usada imediatamente para a tração pode ser armazenada em baterias de íons de lítio na parte de baixo do trem. Um conversor auxiliar também é usado para adaptar a energia para várias aplicações a bordo, como ar condicionado, sistemas de portas e mostradores de informações aos passageiros.

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Produto limpo
Além de um produto limpo, as principais vantagens do iLint são seu gerenciamento de energia inteligente e armazenamento de energia flexível. A energia elétrica é fornecida sob demanda, o que significa que a célula de combustível só precisa trabalhar a todo vapor quando o trem permanece em estado de aceleração por períodos prolongados. Quando ele freia, as células de combustível são desligadas quase que completamente, economizando no consumo de hidrogênio.

Segundo a LNVG, operadora de trens local, os 14 trens que comprados da Alstom custaram cerca de 81 milhões de euros, o que é mais do que seria gasto com o mesmo número de trens convencionais a diesel. Mas Stefan Schrank, gerente do projeto na Alstom, diz que o investimento vale a pena.

“Claro, comprar um trem de hidrogênio é um pouco mais caro do que um trem a diesel, mas é mais barato de operar”, afirmou.

No entanto, ainda há a questão de como os trens serão reabastecidos e de onde virá o hidrogênio a longo prazo. Durante a fase inicial, a Alstom fornecerá o hidrogênio a partir de emissões industriais.

EcoD

Transgênicos e o dever de informação


No Brasil, o plantio de transgênicos foi legalizado em 1998 com a liberação de soja tolerante a herbicidas pela CTNBio (Reuters)

Renan Tolentino Saraiva*

Inegável é o fato de que os avanços tecnológicos vêm contribuindo para o desenvolvimento de técnicas produtivas cada vez mais eficazes e melhor adaptadas à demanda. Estudos laboratoriais pioneiros demonstraram a viabilidade da utilização de genes com a finalidade de que uma espécie receptora passasse a manifestar traços singulares de uma espécie doadora distinta. Dentre os experimentos realizados, destaca-se a criação de muda transgênica de tabaco a partir da inclusão de genes que codificavam luciferase em seu DNA, fazendo com que a planta se tornasse fluorescente, fato documentado pela revista Science em 1986.

A partir de então, cientistas utilizaram a transgenia para desenvolver organismos vegetais dotados de melhoramentos genéticos, com o objetivo de aumentar a produtividade, potencializar a resistência a doenças, diminuindo perdas e prolongando prazos de validade. Entretanto, em razão da veloz introdução dos organismos geneticamente modificados no mercado de consumo, questionamentos foram suscitados no que diz respeito a possíveis impactos sociais e ambientais decorrentes de seu consumo, já que evidenciou-se nesses organismos potencial alergênico, maior resistência a antibióticos, probabilidade de produção de toxinas, maior concentração de metais pesados e redução de valores nutricionais.

No Brasil, o plantio de transgênicos foi legalizado em 1998 com a liberação de soja tolerante a herbicidas pela CTNBio. Desde então, o plantio de OGM intensificou-se e, em 2017, o país tornou-se o segundo que mais planta transgênicos no mundo, conforme pesquisa do ISAAA. Diversamente dos Estados Unidos, o Brasil optou pela regulamentação do plantio e comercialização de transgênicos, o que implicou na elaboração de legislação específica sob viés garantista, em especial a Lei de Biossegurança e o Código de Defesa do Consumidor.

No que concerne aos direitos consumeristas, destaca-se o dever de informação, obrigação legal imposta ao fornecedor de produtos ou serviços, que traz a necessidade de informar, adequada e claramente, acerca das características, composição, qualidade e atributos do produto, conforme prevê o art. 6º, III, CDC. Nessa mesma linha, a Lei de Biossegurança estipula, em seu art. 40, a obrigação de informar nos rótulos ou embalagens a presença de OGM se essa for superior a 1% da composição final do produto, o que originou o símbolo triangular amarelo com a letra “T”. O uso da simbologia facilita a imediata identificação pelos consumidores e representa dupla garantia ao resguardar conjuntamente interesses de consumidores e produtores.

Contudo, na contramão da atual principiologia, foi proposta a retirada do referido símbolo no Projeto de Lei Complementar 34/2015, havendo menção à presença de transgênicos em pequenas letras em locais pouco evidentes nos rótulos.

A supressão do símbolo de transgênicos nos produtos pode vir a reforçar ainda mais a reputação negativa frequentemente atribuída a esses produtos, podendo gerar efeitos ainda mais controversos. Portanto, pode-se inferir que a mitigação ao dever de informação, direito já consolidado, não se evidencia como a alternativa mais adequada no tocante aos OGM, abrindo-se espaço para debates e reflexões quanto à temática ora exposta.

*Graduando em Direito, na modalidade integral, pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Atualmente membro do grupo de pesquisa CEBID – Centro de Estudos em Biodireito.

Agência Nacional de Águas (ANA) suspende novas outorgas


Foto: EBC

Agência Nacional de Águas (ANA) informou na sexta-feira (14) que vai suspender a outorga de novos empreendimentos hidrelétricos na região da bacia hidrográfica do Rio Paraguai, onde fica o Pantanal. A medida vale tanto para Usinas Hidrelétricas (UHE) quanto para Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e tem por objetivo evitar que futuros empreendimentos prejudiquem outros usos dos rios da região, principalmente a pesca e o turismo.

A reportagem é de Luciano Nascimento, publicada por Agência Brasil, 17-09-2018.

A suspensão vale até 31 de maio de 2020 e atingirá os empreendimentos hidrelétricosque não estavam em operação comercial até 18 de julho deste ano. A ANA aguarda a conclusão de estudo para verificar impactos dos empreendimentos sobre os recursos hídricos. Atualmente, segundo a agência, existem 144 aproveitamentos hidrelétricos em estudo na Região Hidrográfica do Paraguai, a maioria para construção de pequenas centrais hidrelétricas.

“A suspensão se estenderá pelo menos até a conclusão de estudo iniciado em novembro de 2016 pela ANA para investigar os efeitos socioeconômicos e ambientais da implantação desses empreendimentos sobre os demais usos da água e sobre os próprios recursos hídricos, como comprometimento da qualidade das águas ou alteração do regime hidrológico [chuvas]”, informou a agência reguladora.

Segundo a ANA, essa iniciativa inicia a implementação de ações regulatórias identificadas como necessárias no Plano de Recursos Hídricos da Região Hidrográfica do Paraguai (PRH Paraguai), aprovado em março pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH).

O plano identificou que esses empreendimentos podem interferir na estabilidade do ecossistema pantaneiro e na garantia dos usos múltiplos praticados na região.

Os pedidos de outorga afetados pela restrição são aqueles para a instalação de empreendimentos hidrelétricos em rios de domínio da União, ou seja, que atravessam mais de um estado ou fazem fronteiras, portanto, regulados pela ANA.

Dados do plano, mostram que o potencial hidrelétrico da região é explorado atualmente por sete hidrelétricas, 29 PCHs e 11 centrais geradoras hidrelétricas, totalizando uma capacidade instalada de 1.111 megawatts (MW). Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), a região possui um potencial adicional de geração de 1.172MW.

A agência disse ainda que vai revisar os procedimentos e metodologias de análise de outorgas para aproveitamentos hidrelétricos tão logo os resultados consolidados dos estudos estejam disponíveis para sub-bacias hidrográficas específicas. Disse ainda que vai “incorporar tais resultados junto aos procedimentos e critérios de outorga”.

IHU

Em plena crise do óleo, governo federal retira diretriz de proteção para manguezal


Óleo já atinge manguezais no nordeste (Reprodução Globo)

No momento crítico vivido pelos manguezais, em meio ao derramamento de óleo no Nordeste, o governo federal fez uma alteração em um plano de proteção desses ecossistemas, o que pode fazer com que essas áreas fiquem ainda mais fragilizadas.

À revelia de pareceres contrários de seu corpo técnico, o presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente, publicou no último dia 30 uma alteração no Plano de Ação Nacional (PAN) para os manguezais. Foi revogado um item que previa ações para a erradicação de carcinicultura (criação de camarão em cativeiro) e a recuperação dos sistemas já afetados por estas práticas.

A mudança foi feita após pedido do secretário da Pesca, Jorge Seif Júnior – o mesmo que afirmou na última quinta-feira (31) que os peixes são inteligentes e fogem quando veem óleo e, por isso, não haveria problema em comer pescado das regiões atingidas no Nordeste. A secretaria é ligada ao Ministério da Agricultura.

Segundo o ICMBio, os PANs são instrumentos de políticas públicas que identificam e orientam ações prioritárias para combater ameaças a populações de espécies e ambientes naturais. Existem PANs para mais de 60% das espécies brasileiras ameaçadas de extinção. O documento para os manguezais foi o primeiro a contemplar todo um ecossistema.

Cada PAN conta com um grupo de assessoramento técnico (GAT), mas todos foram extintos no começo deste ano, quando o presidente Jair Bolsonaro decretou um ‘revogaço’ de todos os comitês do governo. Por isso, todos precisaram ser reeditados para o restabelecimento dos seus colegiados.

Criado em janeiro de 2015, o PAN Manguezal tinha vigência até janeiro de 2020. Ele foi republicado por meio de portaria do ICMBio em 10 de setembro nos mesmos termos da versão original. Logo na sequência, conforme apurou a reportagem, Seif Júnior entrou em contato com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, pedindo a revogação do objetivo 9 do PAN – justamente o que estabelecia ações contra a carcinicultura. No dia 16, ele enviou um ofício formal ao presidente do ICMBio, Homero de Giorge Cerqueira, alegando que o item contraria o Código Florestal.

A lei, reformulada em 2012, considera manguezais como áreas de preservação permanente, mas permite cultivos no chamado apicum, trecho mais seco e sem árvores dos manguezais. O reportagem teve acesso à documentação do processo interno dentro do ICMBio. Houve várias manifestações técnicas das coordenações responsáveis dentro do instituto a favor do objetivo 9 e até mesmo um parecer jurídico da Procuradoria Federal especializada, reiterando a legalidade do instrumento e do objetivo.

Uma equipe de analistas de Santa Catarina, por exemplo, rejeitou a proposta, por considerar que o “PAN não é um instrumento vinculante e que o parágrafo 9 (…) não impede a atividade de carcinicultura, mas busca de fato contribuir para que os impactos negativos apontados pela literatura científica sejam minimizados por ações que fortaleçam a resiliência socioecológica do ecossistema manguezal e garantam a manutenção do modo de vida das populações tradicionais que dependem dos recursos naturais nessas áreas”.

Outro grupo de analistas pontuou que “os PANs são ferramentas que têm o papel de mobilizar esforços em prol da conservação das espécies ameaçadas e seus ambientes”. Eles lembram ainda que o alcance da ferramenta é limitado e “sua abrangência legal não permite que esta se sobreponha a outros instrumentos ou processos legalmente estabelecidos”.

Vai-e-vem

No entendimento do procurador Vinícius Vieira de Souza, os PANs “são documentos de monitoramento ambiental e proposição de medidas protetivas, voltados para a salvaguarda de espécies ameaçadas. Suas conclusões são de cunho técnico e devem contemplar sugestões de medidas a serem adotadas pelo poder público e pela coletividade para o aprimoramento da proteção ambiental. Não há vedação, assim, a que as propostas incluam, inclusive, propostas de alterações legislativas, não tendo elas, entretanto, por si só, força normativa”.

Apesar das manifestações contrárias, Cerqueira publicou, no último dia 30, nova edição do PAN Manguezal, desta vez sem o objetivo 9, atendendo ao pedido de Seif Júnior.

Por meio de nota enviada na quarta-feira (6), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), por meio da Secretaria de Aquicultura e Pesca, disse entender “como positiva a alteração realizada, pois a publicação anterior criminalizava a atividade de carcinicultura de forma geral, igualando os que atuam de forma ilegal e irresponsável aos que a fazem de forma sustentável e legal, convivendo perfeitamente com a conservação dos manguezais conforme preconiza o Código Florestal e todos os dispositivos complementares”.

A pasta afirmou ainda que “camarões, assim como outros organismos aquáticos dependem de um ambiente saudável, o que traz a responsabilidade aos carcinicultores para a preservação do meio ambiente”. E diz que o “PAN Manguezal deve continuar com o foco de proteção aos manguezais e fiscalização ativa, permitindo efetiva proteção aos manguezais”. Na nota, o Mapa também pontuou que “é importante o equilíbrio entre uma atividade econômica e o meio ambiente, dando origem a produção de alimento saudável, gerando emprego e renda nas regiões inseridas, de forma sustentável”.

O ICMBio e o Ministério do Meio Ambiente, ao qual o órgão é vinculado, foram procurados pela reportagem, mas não se manifestaram.

Especialistas

A carcinicultura, explica a oceanógrafa Yara Schaeffer-Novelli, professora sênior da USP, é danosa para o sensível ambiente dos manguezais, que servem de berçário para diversas espécies, além de serem fonte econômica para comunidades de pescadores e marisqueiras. Yara fez parte do GAT até o começo deste ano, quando ele foi extinto. Ela fazia justamente um estudo sobre impacto da carcinicultura nos manguezais. “A exclusão desse item acaba fazendo com que esses resultados sejam jogados para debaixo do tapete.”

Segundo Yara, um dos problemas é que os manguezais são ecossistemas de usos múltiplos. “A carcinicultura acaba tirando isso. Além disso, é introduzida uma espécie exótica naquele ambiente e os despejos da água dos tanques, com alimentação dos camarões, com antibióticos vão parar no estuário”, explica.

Ela lembra ainda que a maior parte dessas fazendas de camarão está justamente no Rio Grande do Norte e no Ceará, alguns dos Estados afetados pelas manchas de óleo. Pondera também que, apesar da permissão do Código Florestal, boa parte do cultivo é ilegal e escapa dos apicuns, atingindo outras áreas dos manguezais.

Ex-presidente do Ibama na gestão Michel Temer (2016-2018), Suely Araújo explica que os PANs acabam servindo também para nortear os processos de licenciamento ambiental. É uma ferramenta usada na gestão ambiental de empreendimentos no País.

“Esses planos são usados no licenciamento quando o órgão licenciador exige do empreendedor programas para mitigar os impactos do empreendimento ou atividade em espécies ameaçadas da flora ou da fauna, conforme determina instrução normativa do Ministério do Meio Ambiente.” Por causa disso, diz ela, “decisões que reduzam a proteção explícita dos manguezais e outras áreas de grande importância ambiental merecem, no mínimo, questionamento”.

Agência Estado

Corrida por terras ameaça comunidades tradicionais e áreas indígenas


Foto: EBC

A demanda crescente por terras, em nível nacional e internacional, está aumentando a pressão de grandes investidores sobre territórios de comunidades tradicionais, unidades de conservação e terras indígenas. Há uma corrida mundial por terras em curso pelo menos desde 2008, que se reproduz também no Brasil por meio de projetos de investimentos produtivos e especulativos. O governo Temer vem trabalhando com a lógica de acelerar esses investimentos alimentando a pressão exercida por interesses do agronegócio, da indústria de mineração, de energia e de fundos de pensão internacionais.

“Os fundos de pensão estão menos preocupados com a produção e muito mais preocupados com o tema dos juros e da valorização da terra, ou seja, da especulação. As linhas de fronteira entre o que é um investimento produtivo e um investimento especulativo acabaram se mesclando muito”, diz Sérgio Sauer, professor da Universidade de Brasília e pesquisador de temas relacionados à Reforma Agrária, terra e território. Sauer esteve em Porto Alegre na última sexta-feira (14), participando de um debate sobre a lei 3465/2017, batizada de “Lei da Grilagem”. O encontro foi promovido pela Rede de Advogados e Advogadas Populares (Renap), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Fórum Justiça, movimentos populares e outras entidades.

Em entrevista ao Sul21Sérgio Sauer fala sobre os interesses que estão por trás dessa lei, sobre a possibilidade dela aumentar a concentração de terras no país e aponta outras propostas que estão tramitando, como a de liberar a mineração em terras indígenas e a de transferir para o Congresso Nacional a prerrogativa de aprovar a demarcação de terras indígenas e quilombolas, que atualmente é responsabilidade do Executivo.

A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul 21, 17-09-2018.

Eis a entrevista.

Qual o contexto que cerca a edição da Medida Provisória 759 pelo governo Temer, que ganhou o apelido de “Lei da Grilagem”. Qual a lógica que estrutura essa MP?

Eu uso o ano de 2006, quando aconteceu a Conferência Internacional da Reforma Agrária aqui em Porto Alegre, como um certo marco. A partir daí, o tema da terra voltou bastante forte na agenda política internacional e também nas discussões do mercado sobre investimentos. Em 2010, o Banco Mundial publicou um relatório sobre uma corrida mundial por terras que estaria ocorrendo, especialmente a partir de 2008. A partir daí, esse tema explodiu um nível internacional, em diferentes espaços e com objetivos diversos. Aconteceram muitas conferências acadêmicas e publicações, com uma forte expressão política no âmbito do Banco Mundial, da FAO e de outros organismos. Em 2011, criaram o PRI (Princípios de Investimento Responsável na Agricultura), que o G20 assumiu.

Obviamente, todos esses organismos, puxados pelo Banco Mundial, adotaram um discurso de que essa era uma iniciativa importante para o desenvolvimento dos países. Mas tivemos vozes críticas que advertiram que isso se tratava de um “land grabbing”, expressão que não tem uma boa tradução para o português. É a chamada estrangeirização, embora não seja exatamente isso. Fomos percebendo, especialmente a partir de 2012, 2013, a concretização de grandes investimentos, não necessariamente de países, mas às vezes de corporações e, mais recentemente – e muito fortemente -, de fundos de pensão. Esses fundos precisam ter uma parte de seu portfólio constituída por patrimônio que pode ser oferecido como garantia. A terra passou a desempenhar essa função, atraindo o interesse desses investidores em países como o Brasil, Uruguai,Argentina (muito fortemente) e também na África.

Os fundos de pensão estão menos preocupados com a produção e muito mais preocupados com o tema dos juros e da valorização da terra, ou seja, da especulação. As linhas de fronteira entre o que é um investimento produtivo e um investimento especulativo, em ações como a criação de uma fronteira agrícola para cultivar soja e exportar, acabaram se mesclando muito. Esse é, em linhas gerais, o contexto internacional em que esse debate está colocado.

No caso brasileiro, desde 2010 havia uma preocupação do então governo Lula sobre as possíveis conseqüências desses investimentos estrangeiros em temas como, por exemplo, a soberania. Há alguns colegas que não vêem muita diferença se é Blairo Maggi que tem 70 mil hectares ou uma empresa como a Bunge, pois nos dois casos seria terra privada sendo apropriada em larga escala. Mas há algumas dimensões desse processo deestrangeirização que transcendem a mera questão de quem é o proprietário da terra, como é o caso da dimensão da soberania.

Em 2010, o governo brasileiro, por meio da Advocacia Geral da União, resgatou uma lei de 1971, dos militares portanto, que estabelecia certos limites para a compra de terras por estrangeiros. Eram limites extremamente amplos, segundo os quais uma empresa ou pessoa física estrangeira não podia comprar mais que 25% da área de um município…

Até 25% podia…

Pois é…podia. Aqui no Sul, a situação é diferente, mas vale lembrar que, na região da Amazônia, nós temos municípios que são verdadeiros estados em termos de território. Nos anos 90, durante o governo Fernando Henrique, quando se eliminou da Constituição a diferença entre empresa estrangeira e empresa nacional, tanto o Incraquanto os cartórios entenderam que, se não havia mais essa distinção, tampouco havia entre proprietário nacional ou estrangeiro. Assim, de 1996 até 2010, não se fez mais o controle que a lei de 1971 estabelecia. Em todo o investimento estrangeiro, seja de empresa ou de pessoa física, quando se fazia o registro no cartório, isso deveria ser comunicado ao Cadastro Nacional de Terras, do Incra. A iniciativa do governo Lula em 2010 procurou resgatar essa necessidade.

Esse resgate estabelecia que, mesmo com o fim da distinção entre empresa estrangeira e nacional nos anos 90, a lei de 1971 continuava sendo constitucional e, portanto, os cartórios seguiam sendo obrigados a declarar o investimento estrangeiro para o Incra, que deveria ter um registrado separado para esse tipo de investimento. Isso diminuiu um pouco alguns investimentos na região do Cerrado, mas existem vários mecanismos para contornar essa exigência. Se uma empresa multinacional, por exemplo, tiver 1% de investimento nacional pode cadastrar como empresa nacional. Há ainda um sistema de laranjas que pode ser adotado. Nós temos uma dificuldade imensa em termos de cadastro e registro de terras. O Brasil tem vários cadastros mas eles são auto-declaratórios. Se perguntarmos ao Incra hoje qual é a quantidade de terras em mãos de estrangeiros, a quantidade será muito baixa, pois há muitas áreas não declaradas.

Com o processo do golpe que resultou na deposição da presidenta Dilma e a mudança de governo em 2016, esse tema voltou à tona com bastante força no debate político. Tivemos declarações de Michel Temer e de Henrique Meirelles dizendo que era muito importante liberar a venda de terras para estrangeiros porque isso traria novos investimentos. Mas há um elemento político importante aí. O ministro da Agricultura é um grande proprietário de terras, numa área de produção de grãos bastante cobiçada por investimentos estrangeiros. Essa liberação significaria, para ele, maior competição. Apesar de haver uma pressão muito forte da chamada bancada ruralista, há um desacerto importante entre eles para ser resolvido.

A nossa grande dificuldade é que não temos hoje um quadro nacional suficientemente confiável para ter uma dimensão exata do que há efetivamente hoje em termos de investimentos estrangeiros em terras brasileiras. Recentemente, a revista Carta Capitalpublicou uma matéria sobre os investimentos da Universidade de Harvard em terras na região de Matopiba (NR: região que abrange os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). Há vários como esse, especialmente em regiões de fronteira agrícola, porque a terra é mais barata e há uma certa disponibilidade de terras. Com a expansão dessas fronteiras, é possível comprar fazendas que, ou estão quebradas ou não foram ainda devidamente modernizadas. Isso permite comprar mais barato e fazer uma modernização ou comprar barato e vender mais caro.

Qual o problema disso? Um deles é o fato de se ter grandes áreas controladas por estrangeiros, seja empresas ou pessoas físicas. O controle por países é um pouco mais raro. Mais recentemente tem se falado muito dos chineses, mas eles têm investido mais na parte de infra-estrutura e na compra dos produtos da terra, como soja e minérios. Até onde acompanhamos, há menos investimentos chineses em terras que japoneses, por exemplo. Os japoneses, sim, estão investindo fortemente nesta área, comprando terras, construindo infra-estrutura e investindo na agroindústria. Há investimentos coreanos também, especialmente na região do Matopiba, e norte-americanos, na região de Luis Eduardo Magalhães.

Outro problema é que isso tem conseqüência para as comunidades dessas regiões. O caso envolvendo a Universidade de Harvard chama a atenção. Eles compraram áreas onde viviam comunidades tradicionais. Com isso, os conflitos envolvendo a luta pela terra se acirraram.

A MP 759 foi batizada de “Lei da Grilagem”. Poderia falar um pouco sobre as razões da escolha desse nome? Em que medida ela estimula a grilagem?

Em dezembro de 2016, Temer publicou essa medida provisória que hoje é a lei 3465/2017. Há duas razões para a escolha da palavra “grilagem” para designá-la. Ela mudou uma série de leis agrárias, inclusive a lei de 1993, e alterou o programa Terra Legal, criado pelo governo Lula como uma política de regularização fundiária na Amazônia. O limite de 1.500 hectares foi ampliado para 2.500 hectares pelo governo Temer. A segunda mudança importante é que o programa foi ampliado para o país inteiro, não se restringindo mais à região amazônica. 2.500 hectares na Amazônia é uma coisa. Agora, 2.500 hectares em um Estado como o Rio Grande do Sul é algo bem diferente. A denominação de “grilagem” vem dessas mudanças e do que elas possibilitam.

Aquilo que a gente criticava, já na lei promulgada no governo Lula, eles ampliaram. O limite passou de 1.500 para 2.500 hectares, valendo para o Brasil inteiro e não só para a Amazônia. Pela lei atual, se alguém tem 5 mil hectares, ele pode regularizar até 2.500 hectares. E a lei não diz o que ele tem que fazer com o restante da terra. Outra situação: a pessoa tem mil hectares na Amazônia e ele pode regularizar a terra vizinha dizendo que é dele. A lei foi flexibilizada de tal forma que praticamente tudo é permitido. Alguém que legalize 2.500 hectares, por exemplo, só vai pagar até 50%, não do valor de mercado, mas de uma tabela de referência que o Incra vai elaborar. Se ele pagar à vista, ainda ganha um desconto ou paga em até 20 anos. Então, há áreas, calculamos, que vão custar 2 ou 3 reais o hectare.

Outro elemento ainda está ligado ao debate sobre o marco temporal, pelo qual indígenas e quilombolas só poderiam ter a terra reconhecida se em 1988 estivessem lá. Essa nova lei ampliou a posse até 2014. Assim, alguém que ocupou uma área em 2013, tem direito à regularização.

Isso se aplica também às áreas urbanas?

A Medida Provisória 759 mexeu em 11 leis, inclusive na legislação relacionada ao Minha Casa Minha Vida e no Estatuto das Cidades. Então, ela também tem conseqüências para a regularização de posses urbanas, mas essa é uma área que entendo menos. Foram feitos três decretos (9.309, 9.310 e 9.311), um especificamente sobre áreas urbanas. Uma questão importante é que ficou a cargo dos municípios definir o que é área rural e área urbana, o que abre espaço para várias formas de flexibilização dos marcos de fronteira entre esses territórios.

Em resumo, há duas grandes críticas que fazemos a essa nova lei. A primeira diz respeito à ampliação e flexibilização do Terra Legal. A segunda se refere às mudanças na lei agrária inclusive no regramento da titulação dos lotes. Na longa luta dos movimentos sociais pela Reforma Agrária, não dá para pensar os lotes com título individual. A lei 13.001/2014 estabeleceu que seriam concessões de direito real de uso. A nova lei troca para título individual e estabelece uma carência de apenas dez anos a partir do estabelecimento do assentamento. Como a grande maioria dos assentamentos tem já mais de dez anos, teoricamente esse período de carência já terminou.

Na nossa avaliação, há dois grandes elementos por trás disso. O primeiro deles é retirar a responsabilidade do Incra sobre esses temas, utilizando o discurso da austeridade, corte de gastos, etc. Na medida em que se dá o título individualmente ao assentado, o Incra não precisa mais investir nem auxiliar o assentamento. Além disso, eles estabeleceram que, se o assentamento tem mais de 15 anos ele é automaticamente considerado consolidado e pode ser titulado, ou seja, os títulos seriam distribuídos individualmente aos assentados. Mas há ainda outra dimensão associada à crescente demanda por terras, inclusive em regiões consolidadas como Rio Grande do Sul e São Paulo. A partir do momento em que você titula, abre-se a possibilidade de essas terras irem para o mercado e serem vendidas, arrendadas, etc.

Voltamos aí à nossa conversa inicial. Qual é a intenção de acelerar o processo de titulação individual para as famílias? Permitir que haja um aquecimento e uma reorientação do mercado de terras em nível nacional. Considerando só o universo de assentamentos que poderiam ser titulados, estamos falando de algo entre 35 e 40 milhões de hectares. Cerca de 80% dos assentamentos existentes hoje no Brasil entrariam nesta condição. Alem disso, a lei estabelece que, se um assentado está num lote e ainda não recebeu a autorização do Incra, isso significa que ele está irregular. Até quatro módulos, a sua situação pode ser legalizada, desde que ele não tenha outra propriedade. Praticamente a totalidade dos lotes são abaixo de um módulo fiscal (NR: unidade de medida, em hectares, cujo valor é fixado pelo INCRA para cada município) , especialmente em estados como o Rio Grande do Sul. Na região de Ijuí, onde cresci, um módulo fiscal corresponde a 15 hectares. Os assentamentos tem isso ou menos. Se você permite a uma pessoa, que está irregular no assentamento, registrar ou legalizar até quatro módulos, abre-se a possibilidade de reconcentração dessas terras. Isso também pode ser considerado como um mecanismo de grilagem.

Há um tema, que não está diretamente ligado a essa lei, mas que envolve a disputa por terras, relacionado às terras indígenas, que vem sofrendo uma pressão muito grande de projetos de mineração, de energia e do agronegócio. Com o governo Temer, essa pressão aumentou ainda mais. Como vê essa situação?

A demanda crescente por terras, em nível nacional e internacional, vai empurrando essa pressão na direção dos parques, das unidades de conservação e das terras indígenas. O fato de existir um governo que atua com a lógica de liberar esses investimentos acaba, mesmo que indiretamente, favorecendo a invasão dessas áreas e o aumento da pressão sobre elas. Como as commodities, especialmente minérios, estavam em alta, muitas dessas terras indígenas, onde há reservas desses minérios, passaram a ser alvo dessa pressão. Há projetos no Congresso, apoiados pela bancada ruralista, propondo a liberação da mineração em terras indígenas. Alem disso, há um projeto de emenda à Constituição (PEC 215), transferindo para o Congresso Nacional a prerrogativa de aprovar a demarcação de terras indígenas e quilombolas, que atualmente é responsabilidade do Executivo. Também tivemos uma tentativa desses setores contra as demarcações de territórios quilombolas, que acabou sendo barrada no Supremo.

E temos ainda os famosos projetos de REED (Reducing Emissions from Deforestation and Forest Degradation/Redução de emissões decorrentes do desmatamento e da degradação de florestas). Há projetos envolvendo empresas estrangeiras e governos estaduais, como os do Acre e do Mato Grosso, que também estão pressionando comunidades tradicionais. Os casos que a gente conhece envolvem contratos draconianos, onde as empresas ficam com todos os direitos sobre essas áreas. E a compensação não é exatamente uma compensação milionária para se abrir mão da autonomia de territórios extensos, como é o caso de algumas terras indígenas que estão sendo pressionadas. Esse conjunto de pressões sobre as terras indígenas tem mais ou menos a mesma lógica que anima a demanda crescente por terras e os investimentos relacionados aos setores do agronegócio, energia e mineração.

IHU

Uso de agrotóxicos no Brasil


Não existe país economicamente desenvolvido que possua uma população doente, rios poluídos e terras estéreis (Divulgação/Idec/CFN)

Andressa Souza Oliveira*

Uma das notícias que mais repercutiu no último mês foi o registro, e consequente permissão, para uso de mais 63 agrotóxicos, além dos já permitidos no Brasil. O número causou impacto nas manchetes não só por ser maior do que os do mesmo período do ano passado, mas principalmente por ter se dado em virtude de desburocratização do processo de registro, que só tende a aumentar.

Apesar de serem dotados de princípios ativos tóxicos à saúde e ao meio ambiente, a utilização desses produtos é social e legalmente aceita. As justificativas mundiais para seu uso vêm sempre atreladas à necessidade de maior produção de alimentos para atender ao crescimento populacional. Inclusive, recentemente, durante o Fórum Global para Alimentação e Agricultura, representantes da ONU informaram que se o ritmo atual de consumo e progressão populacional se mantiverem, em 2050 será preciso que a produção de alimentos cresça, no mínimo, em 60%.

Nesse contexto, os agrotóxicos sempre aparecem como solução possível devido à promessa de aumento da produtividade com baixo custo. Contudo, é importante salientar que a quantidade de alimentos produzida no mundo hoje é suficiente para que toda a população mundial se alimente e, ainda assim, cerca 820 milhões de pessoas vivenciam a fome. Desse modo, conclui-se que a diminuição da fome e a produção de alimentos não possuem nexo causal direto.

Todavia os dados que realmente deveriam chamar nossa atenção referem-se à força econômica do agronegócio. Atualmente o Brasil é um dos maiores produtores de alimentos no mundo e o agronegócio é responsável por cerca de 21,6% do PIB. Tendo em vista a grave recessão econômica em que o país se encontra, o agronegócio é um campo promissor para os investimentos, pois mesmo em momentos de recessão há alta demanda devido à sua essencialidade.

As liberações em tela não são de mera casualidade. Um dos objetivos centrais do novo governo é o reaquecimento da economia e o agronegócio é um dos meios escolhidos para tal feito.

Entretanto devemos analisar de maneira realista se esse caminho é realmente o mais interessante para a saída da crise atual. Existem centenas de estudos científicos que apontam o rastro de destruição deixado pelos agrotóxicos. Já restou comprovado que, com o passar do tempo, os reagentes tóxicos afetam a produtividade do solo, contaminam os lençóis freáticos e rios adjacentes, contribuem para poluição atmosférica e afetam significativamente a saúde da população.

Ao colocarmos na balança todos os gastos estatais futuros que deverão ser redirecionados para a despoluição das águas, restauração do solo e saúde pública, a operação já não parece tão vantajosa. Não existe país economicamente desenvolvido que possua uma população doente, rios poluídos e terras estéreis. Ademais, existem alternativas para o aumento da produção agrícola com diminuição dos agrotóxicos, contudo elas não possuem o devido investimento ou atenção do Estado.

Dado o exposto, é preciso que sejam sopesados os lucros imediatos e os custos a longo prazo, principalmente considerando o objetivo do Estado, proporcionar vida digna aos seus cidadãos.

*Bacharel em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Cursando pós-graduação em Advocacia Criminal. Estagiária de pós-graduação na Vara de Inquéritos do TJMG. Membro do grupo de pesquisa CEBID (Centro de Estudos em Biodireito) da Escola Superior Dom Helder Câmara.