A Carta da Terra


        

A Carta da Terra, um dos documentos mais inspiradores do início do século XXI, nasceu de uma consulta feita durante oito anos (1992 – 2000) entre milhares de pessoas de muitos países, culturas, povos, instituições, religiões, universidades, cientistas, sábios e remanescentes das culturas originárias. Ela representa um chamado sério acerca dos riscos que pesam sobre a humanidade. Ao mesmo tempo enuncia, cheia de esperança, valores e princípios a serem compartilhados por todos, capazes de abrir um novo futuro para a nossa convivência neste pequeno e ameaçado planeta.

O texto, breve, denso e facilmente compreensível abre com uma frase grave: “Estamos diante de um momento crítico da história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro […]. A escolha é nossa e deve ser: ou formar uma aliança global para cuidar da Terra e cuidar uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a destruição da diversidade da vida.”

Pelas palavras da Carta da Terra, a sustentabilidade comparece como uma questão de vida ou morte. Nunca antes na história conhecida da nossa civilização, corremos os riscos que atualmente ameaçam nosso futuro comum. Estes riscos não diminuem pelo fato de que muitíssimas pessoas, de todos os níveis de saber, dêem de ombros a esta máxima questão. O que não podemos é, por descuido ou ignorância, chegar tarde demais. Mas vale o principio de precaução e de prevenção do que a indiferença e a despreocupação irresponsável. Se dermos centralidade à aliança de cuidado, seguramente chegaremos a um estágio de sustentabilidade geral que nos propiciará desafogo, alegria de viver e esperança de mais história a construir rumo a um futuro mais promissor.

A redação da Carta da Terra envolveu o mais inclusivo e participativo processo associado à criação de uma declaração internacional.  Esse processo é a fonte básica de sua legitimidade como um marco de guia ético. A legitimidade do documento foi fortalecida pela adesão de mais de 4.500 organizações, incluindo vários organismos governamentais e organizações internacionais. À luz desta legitimidade, um crescente número de juristas internacionais reconhece que a Carta da Terra está adquirindo um status de lei branca (soft law). Leis brancas, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos são consideradas como moralmente, mas não juridicamente obrigatórias para os Governos de Estado, que aceitam subscrevê-las e adotá-las, e muitas vezes servem de base para o desenvolvimento de uma lei stritu senso (hard law).

A Carta da Terra ainda possui uma versão para o público infantil, levando aos pequenos um texto original de forma acessível e lúdica. Contribuindo desta maneira para um despertar ambiental naqueles que formarão a nossa próxima geração.

Leia a Carta da Terra na íntegra AQUI.

Fonte: Carta da Terra Brasil e Livro Sustentabilidade – O que é – O que não é (Leonardo Boff) – Editora Vozes 2012.

Foto: Akatu

 

Laísa Mangelli

 

 

Estamos num vôo cego: para onde vamos?


Por Leonardo Boff, filósofo, teólogo, escritor e comissionado da Carta da Terra.

Quem leu meus dois artigos anteriores “O funesto império mundial das corporações” e “Uma governança global da pior espécie: os mercadores” terá seguramente concluído que na única nave espacial-Terra, seus passageiros viajam em condições totalmente diferentes. Um pequeno grupo de super-ricos ocuparam para si a primeira classe com um luxo escandaloso; outros felizardos ainda viajam na classe econômica e são servidos razoavelmente de comida e bebida. O resto da humanidade, aos milhões, viaja junto às bagagens sujeita ao frio de dezenas de graus abaixo de zero, semi-mortos de fome, de sede e no desespero. Esmurram as paredes dos de cima, gritando: “ou repartimos o que temos nesta única nave espacial ou, num certo momento, acabará o combustível e pouco importam as classes, morreremos todos”. Mas quem os escutará? Impassíveis dormem depois de um lauto jantar.

Metaforicamente esta é a situação real da Humanidade. Na verdade, estamos perdidos e num vôo cego. Como chegamos a esta situação ameaçadora?

Temos experimentado dois modelos de produção e de utilização dos bens e serviços naturais para atender as demandas humanas: o socialismo e o capitalismo. Ambos fracassaram. Não cabe detalhar os dados. O sistema do socialismo real era de economia de planejamento estatal centralizado. Chegou a níveis razoáveis de igualdade-equidade nos campos da educação, da saúde e da moradia, mas por razões internas e externas, especialmente por seu caráter ditatorial não conseguiu resolver suas contradições e ruiu.

O sistema capitalista neoliberal de mercado livre com parco controle do Estado também fracassou em razão de sua lógica interna, a de acumular de forma ilimitada bens materiais sem qualquer outra consideração. Produziu duas injustiças graves: uma social a ponto de 20% dos mais ricos controlarem 82,4% das riquezas da Terra e os 20% mais pobres devendo-se contentar com 1,6%; e outra injustiça ecológica devastando inteiros ecossistemas e eliminando espécies de seres vivos na ordem entre 70-100 mil por ano. Este sistema quebrou em 2008 exatamente no coração dos países centrais.

O comunismo chinês é sui generis: pragmaticamente combina todos os modos de produção, desde o uso da força física das pessoas, dos animais, até a mais alta tecnológica, articulando a propriedade estatal com a privada ou mista, desde que o resultado final seja uma maior produção com mínimo sentido de justiça social e ecológica.

Mas importa reconhecer que está crescendo o convencimento bem fundado de que o sistema-Terra limitado em bens e serviços, pequeno e superpovoado já não suportam um projeto de crescimento ilimitado. Ele perdeu as condições de repor o que lhe tiramos, por isso se torna cada vez mais insustentável. Mas por ser uma super-entidade viva, a Terra reage de forma cada vez mais violenta: mudanças climáticas bruscas, furacões, tsunamis, degelo, desertificação espantosa, erosão da biodiversidade e um aquecimento global que não pára de aumentar. Quando vai parar esse processo? Se continuar para onde nos vai levar?

Somos urgidos a mudar de rumo, vale dizer, assumir novos princípios e valores, capazes de organizar de forma amigável nossa relação para com a natureza e para com a Casa Comum. O documento mais inspirador é seguramente a Carta da Terra, nascida de uma consulta mundial que durou oito anos, sob a inspiração de Michail Gobachev e aprovada pela UNESCO em 2003. Ela incorpora os dados mais seguros da nova cosmologia que mostram a Terra como um momento de um vasto universo em evolução, viva e dotada de uma complexa comunidade de vida. Todos os seres vivos são portadores do mesmo código genético de base de sorte que todos são parentes entre si.

Quatro princípios axiais estruturam o documento: o respeito e o cuidado pela comunidade de vida(1); a integridade ecológica (2); a justiça social e econômica (3); a democracia, a não-violência e a paz (4). Com severidade adverte:”ou formamos uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscamos a nossa destruição e a da diversidade de vida”(prêambulo).

As palavras finais do documento apelam para uma retomada da humanidade: ”Como nunca antes na história, o destino comum nos conclama a um novo começo. Isso requer uma mudança na mente e no coração. Requer um novo sentido de interdependência global e de responsabilidade universal. Só assim alcançaremos um modo de vida sustentável nos níveis local, regional, nacional e global”.

Repare-se que não se fala de reformas, mas de um novo começo. Trata-se de reinventar a humanidade. Tal propósito demanda um novo olhar sobre a Terra (mente), vista como um ente vivo, Gaia, e uma nova relação de cuidado e de amor (coração), obedecendo à lógica universal da interdependência de todos com todos e da responsabilidade coletiva pelo futuro comum.

Este é o caminho a seguir que servirá de carta de navegação para a nave-Terra aterissar segura num outro tipo de mundo.

Laísa Mangelli