A legislação de agrotóxicos e a “pseudoirresponsabilidade” do usuário. Entrevista com Paulo Engel


“Os operadores do direito não devem se curvar diante das dificuldades por falta de normas ou incoerências das existentes, devendo, assim, lançar mão da criatividade e buscar a tutela da qualidade ambiental com as ferramentas disponíveis; amparando-se, portanto, na Constituição da República de 1988, na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, na Lei dos Crimes Ambientais e até mesmo no Código Penal”, afirma o mestre em Direito.

                                            

A legislação brasileira acerca dos agrotóxicos “está mais afinada com questões de princípios comerciais do que ecológicos”, diz Paulo Engel à IHU On-Line, autor da dissertação A Teoria da Agroartificialidade e o uso de agrotóxicos no Brasil: uma releitura da tutela jurídica das águas subterrâneas. De acordo com ele, a influência econômica impede “um diálogo sério, técnico-científico entre as ciências envolvidas, inclusive a jurídica”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Engel critica o sistema de reavaliação por expiração do prazo de registro dos agrotóxicos, o qual foi “banido” da legislação. “Antes, sob as regras do Dec. 98.816/90, que foi o primeiro a regulamentar a Lei 7.802, o prazo de validade de um registro de agrotóxico era de cinco anos. Transcorrido esse período, a indústria deveria pleitear a renovação do mesmo, ou seja, passar um outro processo de licenciamento onde poderia ser exigido algo a mais em favor da sanidade ambiental. Porém, já em 1993, o Decreto 991 eliminou essa exigência, que continua ausente no atual Decreto 4.074/2002”, informa.

Paulo Engel é mestre em Direito Ambiental pela Escola Superior Dom Helder Câmara de Belo Horizonte.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Em que consiste a teoria da agroartificialidade e como a relaciona com o uso de agrotóxicos no Brasil?

Paulo Engel – O ramo do Direito Agrário é o responsável por regulamentar as atividades agrárias. Para tanto, restava saber quais atividades poderiam ser, juridicamente, reconhecidas como agrárias para que fossem assim abarcadas por esse ramo do direito.

Neste cenário, em um primeiro momento, foi definida como agrária aquela atividade que se desenvolve mediante o trabalho do homem em cultivar a terra, em total simbiose com o processo natural agrobiológico (germinação, fotossíntese, florescimento, chuvas, frutificação). Portanto, este fator agrobiológico presente na referida atividade a qualificaria como agrária, o que deu origem à “teoria agrobiológica”, desenvolvida pelo argentino Rodolfo Ricardo Carrera.

Na medida em que o homem buscou controlar as etapas do processo produtivo agrícola, mediante a inserção de práticas artificiais estranhas ao processo agrobiológico natural, o italiano Antônio Carrozza desenvolveu a segunda teoria, que consiste em adicionar à primeira um elemento extrajurídico, qual seja, o risco advindo da natureza que influencia a atividade produtiva. Assim, seria agrária qualquer atividade cujo ciclo biológico estivesse sujeito às ações da natureza, ações essas que escapariam do controle humano, pois, se o homem as controlasse, não mais seria agrária a atividade, mas sim industrial.

A terceira teoria que conceitua a atividade agrária, desenvolvida por outro argentino, Antônio C. Vivanco, veio definida como “teoria da acessoriedade”, que define seis critérios que seriam conjugados para fins de diferenciar a atividade agrária de outras não agrárias, de acordo com o grau de interdependência entre as atividades envolvidas no processo produtivo. Assim, sendo a atividade principal a agrária, as demais a ela vinculadas, como processamento do produto final, assim também seria; do contrário, a própria atividade tida como agrária pelas outras duas teorias, seria incorporada pela industrial subsequente e assim seria caracterizada.

Como se percebe, o Direito Agrário se desenvolveu, a reflexo da própria atividade agrária, por um viés econômico em detrimento de uma caminhada em consonância com as necessidades ecológicas inerentes e essenciais à respectiva atividade, pois sem uma planta produtiva, ou seja, sem o meio ambiente equilibrado, a atividade agrária se torna uma incógnita futura.

Pois bem, durante nossa pesquisa, se propôs a “Teoria da Agroartificialidade” para definir as atividades agrárias utilizadoras de agroquímicos em seu processo produtivo, na busca pelo controle do ciclo biológico envolvido nesse processo.

Diferentemente das outras teorias, que buscaram definir a atividade agrária para inseri-las ao ramo do Direito Agrário, a presente “Teoria da Agroartificialidade” visa definir aquela que se utiliza de mecanismos artificiais específicos (agroquímicos) para majorar sua produção, mesmo expondo toda a qualidade ambiental a um risco, muitas vezes sequer levados em consideração para se definir se compensaria ou não tal prática.

A decisão de se utilizar das técnicas agroartificiais não deve levar em consideração apenas critérios econômicos, mas também, e principalmente, ecológicos. Portanto, para se definir ao menos onde se poderia fazer uso de referidas técnicas, deveria se submeter a decisão à análise de órgãos ambientais, mais próximos do Direito Ambiental do que do Direito Agrário.

Trata-se de uma possibilidade de alinhamento da atividade agrária com o Direito Ambiental, que por sua vez visa assegurar um equilíbrio que beneficiaria, inclusive, a própria atividade.

IHU On-Line – Quais são as leis referentes aos agrotóxicos no país? Quais os princípios jurídicos que as orientam?

Paulo Engel – A Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989, dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras providências. A referida Lei foi regulamentada pelo Decreto nº 4.074/2002.

Essas, sem dúvida, são as principais fontes legislativas nacionais. Porém, sua ótica está mais afinada com questões de princípios comerciais do que ecológicos, como quando, por exemplo, em seu art. 14, alínea e, aduz que o usuário de agrotóxicos estaria isento de qualquer responsabilidade de danos decorridos desse uso, se o mesmo se deu em conformidade com o receituário, bem como com a bula.

Ora, as responsabilidades civis, penais e administrativas por danos causados ao meio ambiente estão consagradas pela Constituição da República de 1988 em caráter independente, bem como pela Lei 6.938 de 1981, que cria a Política Nacional do Meio Ambiente, como sendo, no caso da responsabilidade civil, de forma objetiva com adoção da teoria do risco integral, bem como solidária entre todos os agentes envolvidos no caso.

Assim, vale dizer que não há sequer a perquirição de culpa do agente, no caso do agricultor, bem como este não pode se valer de excludentes de ilicitude como força maior ou culpa de terceiros, além de responder solidariamente ao emitente da receita, por exemplo.

Todavia, como se entende, a legislação de agrotóxicos lança mão de uma “pseudoirresponsabilidade” do usuário, talvez, mais uma vez, atendendo aos anseios comerciais dos produtores desses venenos, e, com o perdão do trocadilho, estimula uma geração de agricultores irresponsáveis.

IHU On-Line – Há uma polêmica em torno da liberação de agrotóxicos altamente tóxicos pela Anvisa. Como a instituição dialoga com a área jurídica ao aprovar a comercialização destes produtos? Como a liberação e o uso de agrotóxicos são abordados pelo setor jurídico brasileiro?

Paulo Engel – Hoje podemos dizer que temos uma atividade agroempresarial instalada por todo o país. Sabemos também da força política dos atores envolvidos, sejam eles multinacionais produtores dos agroquímicos, sejam produtores iludidos pelos “ganhos” aparentes e momentâneos.

Neste cenário, podemos afirmar que a Anvisa, bem como os Ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura, também envolvidos no processo de liberação, sofrem pressões políticas para liberação de determinados princípios ativos, pois nada justifica autorizar o uso no Brasil de um veneno já proibido ou, até mesmo, nunca liberado, por exemplo, em seu país de origem. Ou seja, o que leva o Brasil a aceitar o uso de um veneno proibido de ser usado no país da sede da empresa que o criou? Seria a saúde da população daquele país mais importante que a nossa?

Nesse sentido, acreditamos não ser outra razão, senão econômica, a motivação escusa utilizada pelos entes envolvidos na liberação dos agrotóxicos, ao tratar a questão. Ou seja, não acreditamos em um diálogo sério, técnico-científico entre as ciências envolvidas, inclusive a jurídica.

IHU On-Line – Sua pesquisa assinala que o Brasil não tem uma lei sobre a contaminação das águas subterrâneas por agrotóxicos. Como essa questão é tratada pela legislação brasileira?

Paulo Engel – Veja bem. Existe um sistema jurídico de proteção da qualidade ambiental que, por certo, se preocupa com a contaminação de todo e qualquer recurso natural. A água, certamente, é um deles. Todavia, inexiste uma norma específica que vise controlar com fim precípuo de evitar a contaminação das águas subterrâneas por agrotóxicos, quando em efetiva utilização pela prática agrária.

Assim, se pode dizer que essa questão, de forma isolada, não é tratada pela legislação brasileira. Porém, como assinalado acima em outras questões, há, sim, uma grande preocupação com a qualidade de todos os recursos, porém falta uma norma voltada diretamente a essa questão.

Por exemplo, a Resolução CONAMA 375/2006, que regulamenta o uso de lodos de esgoto pela agricultura, prevê restrições locacionais ao uso dessa substância frente à possibilidade de contaminação das águas subterrâneas; assim, se indaga: por que não há algo semelhante especificamente em relação ao uso de agrotóxicos?

IHU On-Line – Quais são os maiores desafios jurídicos em relação ao uso e comercialização de agrotóxicos no Brasil?

Paulo Engel – Acredita-se que o maior desafio seja primeiramente social e cultural. Antes de qualquer coisa, há que se entender que essas substâncias são venenos, e como tais devem ser tratados. Dessa forma, se espera que o legislativo nacional dê uma resposta à altura do risco que esses venenos impõem a toda a população, mediante a confecção de Normas amparadas por critérios ecológicos e sanitários, e não mais atendendo à vertente econômica.

Entretanto, os operadores do direito não devem se curvar diante das dificuldades por falta de normas ou incoerências das existentes, devendo, assim, lançar mão da criatividade e buscar a tutela da qualidade ambiental com as ferramentas disponíveis; se amparando, portanto, na Constituição da República de 1988, na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, na Lei dos Crimes Ambientais e até mesmo no Código Penal, se for preciso, dentre outras normas, não se esquecendo dos Princípios norteadores do Direito Ambiental. Esse é o maior desafio jurídico atualmente.

                           

IHU On-Line – É possível comparar a legislação jurídica brasileira em relação aos agrotóxicos com a legislação de outros países?

Paulo Engel – No que se refere ao posicionamento da legislação brasileira em um cenário internacional, quanto ao nível de excelência da mesma, se acredita esta estar posicionada de forma intermediária.

Se compararmos nossa legislação com a dos outros países do Mercosul, a brasileira se apresenta de forma muito mais apropriada e técnica para regulamentar a questão, haja vista o sistema de registro do Uruguai ser precário; do Paraguai chega até a aceitar o registro de uma substância se ela estiver registrada em seu país de origem; e o da Argentina trabalha com um sistema de registro, no mínimo, questionável quando delega a função ao Ministério da Agricultura e Pecuária, e a avaliação toxicológica para a saúde humana é confeccionada por um especialista, ad hoc, nomeado para o múnus.

A ineficácia do sistema de registro dos agrotóxicos em países do Mercosul reflete diretamente no Brasil, haja vista o acordo de livre comércio existente. A Argentina, por exemplo, já demandou e venceu o Brasil no Tribunal Arbitral do Mercosul, onde ficou estabelecido que os produtos daquele país deveriam, sim, gozar de livre circulação em nosso território. Tal fato fez o Brasil incluir, em seu sistema, o registro por equivalência.

Por outro lado, estamos muito aquém da regulamentação existente na Comunidade Europeia. Como exemplo dessa distância, podemos citar o sistema específico de reavaliação das licenças concedidas aos agrotóxicos. Por lá, essas licenças possuem prazo determinado que, quando expirado, faz com que a empresa interessada em sua comercialização conquiste novo registro, que, por certo, deve levar em conta a evolução da ciência, podendo, assim, serem maiores as exigências preventivas para uma nova liberação.

Já no Brasil, por incrível que pareça, o sistema de reavaliação por expiração do prazo de registro foi banido. Antes, sob as regras do Decreto 98.816/90, que foi o primeiro a regulamentar a Lei 7.802, o prazo de validade de um registro de agrotóxico era de cinco anos. Transcorrido esse período, a indústria deveria pleitear a renovação do mesmo, ou seja, passar um outro processo de licenciamento onde poderia ser exigido algo a mais em favor da sanidade ambiental. Porém, já em 1993, o Decreto 991 eliminou essa exigência, que continua ausente no atual Decreto 4.074/2002.

Agora, no Brasil, para se reavaliar alguma substância, a fim de cancelar seu registro, é necessário que seja esta solicitada por alguma entidade prevista no rol do artigo 5º da Lei 7.802. Ou seja, inverte-se o ônus para que a sociedade se mobilize contra aquela substância que deveria passar por constantes reavaliações. Incoerente.

IHU On-Line – Em que aspectos o Direito Ambiental tem sido mais atuante? Quais são hoje os princípios e normas jurídicas mais aceitos nesta área?

Paulo Engel – As normas mais aceitas no sistema jurídico ambiental nacional são a Constituição da República de 1988, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente e a Lei dos Crimes Ambientais. O Código Florestal, que poderia ser importante instrumento na busca da qualidade ambiental, a nosso ver, assim como a Lei dos Agrotóxicos, mais busca alinhar o campo com os setores da economia do que com os da ecologia; assim, em ambos os casos, se acredita estar diante de normas alheias ao Direito Ambiental.

Outras fontes legislativas de importância considerável são as Resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente – COANAMA, pois buscam objetivar a aplicação da tutela jurídica ambiental ao caso concreto. Talvez, nesse momento, podemos colocá-las como sendo “a área” onde o Direito Ambiental mais atua, ao menos, com mais eficácia.

IHU On-Line – Quais são os principais desafios do Direito Ambiental, considerando a atenção que tem se dado à área?

Paulo Engel – Como antes exposto, porém especificamente aos casos dos agrotóxicos, acredita-se que o maior desafio do Direito Ambiental seja o reconhecimento, pela sociedade, de sua importância, pois, na verdade, o importante não é o Direito Ambiental, mas sim o que o mesmo visa, ou seja, o equilíbrio do meio ambiente para uma propícia qualidade de vida de todos.

Como qualquer área do direito, ou norma, seu principal desafio é esse reconhecimento social de sua importância, pois, uma vez assim sendo, passa-se a praticar as condutas preconizadas e antes forçadas pelo direito, de uma forma natural e motivada pela consciência de cada um.

Se hoje é preciso lançar mão da coerção pelo Direito, que assim seja, em prol de um amanhã mais consciente; consciência esta que, agindo efetivamente o Estado, inclusive por meio do Judiciário, virá diante da mudança de hábitos.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Paulo Engel – Sim. Mesmo ante a falta de previsão legal protetiva das águas subterrâneas frente a possibilidade de contaminação destas por agrotóxicos, acredita-se que, em especial, a comunidade jurídica não deve crer pela impossibilidade de efetivo controle, pois resta a possibilidade de judicialização, caso a caso, que inclusive não precisa ficar adstrito às ações civis públicas, pois a qualidade das águas facilmente pode ser abarcada pelo direito de vizinhança, utilizando-se como fundamento, em analogia, a Resolução CONAMA 375, bem como a Portaria DNPM 231/98, que protege as águas minerais e/ou potáveis de mesa diante da possibilidade de contaminação destas por qualquer agente; o fato de essa proteção vir prevista quando esta estiver em efetivo processo de comercialização, não retira a capacidade técnica de sua utilização, haja vista o fato da potencialidade de utilização, comercial ou não, de quase todas as águas subterrâneas para o consumo humano.

 

Fonte: IHU Online