Um fermento na democratização do Brasil


 

O MST tem muitas razões para celebrar os seus 30 anos. Primeiro, é um grande feito histórico e político a sua autoconstrução como movimento social, como sujeito coletivo, tendo por base uma grande fração de trabalhadores rurais composta por grupos sociais heterogêneos, mas tendo em comum a marca da exclusão, da insegurança econômica, da desestruturação sociocultural e da dominação imposta por séculos de domínio dos senhores donos de terra e gente, do Sul ao Norte do Brasil.

 

Ainda temos muitos assim, sem eira nem beira, migrando de um canto ao outro em busca de algum trabalho e renda, fora da cidadania elementar, condenados a viver como lumpesinato, nas terras degradadas, nas periferias das grandes propriedades e das cidades do interior.

 

Devemos ao MST a transformação politicocultural de importante contingente dessa massa submissa, dependente do favor dos poderosos e seus mandantes, – tão presente até hoje no nosso ambiente rural do agronegócio modernizado – em gente com identidade social, “sem terra” mas visível, que se orgulha de si mesmo, confiante em sua própria cidadania e titularidade de direitos, coletivo que acredita ser possível mudar. Isto, em si mesmo, é uma marca, uma conquista a comemorar.

 

Tão importante quanto a primeira razão, e a ela diretamente ligada, cabe destacar a relação entre MST e democracia no Brasil. Desde o início, até antes de virar o MST, tendo o Coronel Curió e outros truculentos no encalço lá em Encruzilhada Natalino, Rio Grande do Sul, e todo Oeste de Santa Catarina e Paraná, o nascente movimento torna-se parte do caldeirão social e político que leva ao fim da ditadura militar e nos permite conquistar a democracia.

 

Mas mais do que isto, coube ao MST em particular radicalizar a democracia, trazendo ao debate público e ao processo de democratização a questão fundamental da tensão entre direito legítimo e direito legal. Não foi e não é a legalidade em si que move o MST, mas é a legitimidade da condição de cidadania, entendida como direito igual de todas e todos.

 

Sua luta é por direitos legítimos de cidadania que não são reconhecidos, devido aos privilégios de classe que impregnam nossas leis, os tribunais, o Estado. A lei de terras, certidão de nascimento da sociedade excludente e desigual que somos até hoje, é para os donos de gado e gente, nunca foi para a cidadania.

 

O que o MST sempre afirmou e praticou é que em nome de direitos de cidadania e contra privilégios, mesmo legais, é legítimo ocupar terras. Nisto reside o caráter de fermento do MST na democratização. Ele inspira outros grupos excluídos a se organizar e lutar por seus legítimos direitos, com insubordinação e desobediência civil, se necessário for.

 

Neste aspecto fundamental para uma sociedade patrimonial como a brasileira, o MST merece celebrar mudanças que vem operando na cultura política democrática do país.

 

O MST é imediatamente associado à Reforma Agrária. Fazendo um balanço dos 30 anos, sem dúvida o movimento vai lembrar muitas conquistas, outras tantas derrotas, com tragédias inclusive.
Vai lamentar até o impasse em que nos encontramos hoje, num governo de origem democrática e popular, mas…dependente do agronegócio, de exportações primárias e da Bancada Ruralista.

 

Erros políticos? Sim, ocorreram erros e são parte do processo de qualquer movimento. O importante seria que o próprio movimento prestasse contas à sociedade sobre seus aprendizados com os erros. Não vou lembrá-los aqui pois penso que, no seu todo e sobretudo pelas razões apontadas acima, o MST tem que celebrar seus feitos nesse seu aniversário de 30 anos.

 

E, nós, organizações de cidadania ativa, devemos agradecer pelo que a própria existência do movimento provoca e obriga a mudar em termos de ideias, visões e possibilidades para a democracia. Por definição em lutas democráticas a gente nunca consegue tudo, mas continua a lutar para tornar possível o que parece impossível. O MST é exemplo desta tenacidade em busca do legítimo. Distante, difícil, quase impossível, mas de esperança e busca de direitos legítimos. Na sua legitimidade reside a inspiração e a força política para se tornar possível.

 

Mas qual é o legítimo, afinal? Não tenho dúvidas em responder que, do ponto de vista de cidadania e democracia, é legítimo radicalizar e querer transformar as estruturas da face agrária da sociedade brasileira. A luta do MST mostra que Reforma Agrária não é só desapropriar e distribuir terras por aí.

 

Reforma Agrária é mudar estruturas agrárias e, mais do que isto, mudar a sociedade no modo como se relaciona, organiza e usa os recursos do território, um bem comum de todas e todos na sociedade. Claro que existe um confronto de paradigmas entre agronegócio e agroecologia, com impacto na soberania e segurança alimentar, no combate à fome e pobreza, no padrão de consumo e de saúde de toda a população.

 

Existe o confronto entre, de um lado, as grandes explorações econômicas, com enorme concentração de terras e utilização de água, com máquinas, agrotóxicos, transgênicos, homogeneidade de cultivos e criações, com destruição da biodiversidade, voltada à produção de commodities e não necessariamente alimentos; e, de outro, a agricultura familiar, de pequena escala, com pouca terra, mas onde a terra em si não é tratada como negócio antes de mais nada, pois é meio de vida, estilo de vida familiar e comunitária, cultura alimentar e identidade social.

 

Mas existe um confronto maior de que a Reforma Agrária faz parte: a disputa de territórios, tanto no campo como nas cidades, entre capital e cidadania. Aqui a dimensão da luta do MST se soma às lutas de povos indígenas, de quilombolas, de ribeirinhos e pescadores, de extrativistas dos frutos da floresta, de posseiros, de comunidades expulsas por grandes obras, atingidos por barragens, mineração e exploração do petróleo (terra e mar), favelados ameaçados de remoção nas grandes cidades, populações das periferias atingidas por obras de infraestrutura ou grandes empreendimentos industriais, mesmo os atingidos pelas grandes obras para Copa e Olimpíadas.

 

As disputas territoriais, de que faz parte a Reforma Agrária, estão no centro da grande questão para o avanço da democracia no Brasil hoje: como mudar de paradigma? Os territórios são para gente viver, em primeiro lugar, ou para o negócio, para acumulação privada? Para cidadãs e cidadãos que vivem e dependem do território local ou para capitais de fora, sem rosto, em busca de sua única e exclusiva valoração?

 

Que modelo de sociedade, economia e poder queremos? Para promover justiça social, direitos de cidadania de todas e todos, participação democrática, sustentabilidade socioambiental, bem viver, enfim? Ou, o contrário, queremos continuar sendo terra de conquista, colonização e exploração, fazendo tudo para seremos uma potência capitalista emergente, território de especulação e negócio a serviço do cassino global que domina o mundo?

 

Obrigado, MST! Obrigado por ser um real sujeito coletivo que nos aponta toda esta agenda cidadã e nos fazer ver que precisamos acreditar ser possível mudar. Incluo-me entre os muitos democratas de diferentes costados, que não temem ser solidários com o movimento, mas também críticos, sempre que considerarmos não legítimos seus passos em alguma frente de luta.

 

Texto por: Cândido Grzybowski – Sociólogo, diretor do Ibase

Foto: Reprodução

Fonte: Canal Ibase