“Lixo é riqueza, não pode ser desperdiçado”


Entrevista com Ricardo Abramovay

                                            

 

Responsabilidade compartilhada, poluidor-pagador, logística reversa. Daqui em diante vamos conviver com esses e outros termos até agora estranhos. Eles passam a fazer parte do cotidiano dos brasileiros e revelam uma nova era na destinação do lixo, com o início da vigência, a partir de meados de 2014, da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Ela prevê o fim dos malcheirosos lixões a céu aberto e a certeza de que a sociedade terá papel decisivo na destinação adequada do lixo. Inclusive o cidadão comum.

Quem revela o significado dessas expressões e como será a vida quando vigorar a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) é Ricardo Abramovay, professor de economia da Universidade de São Paulo especializado em desenvolvimento sustentável.

A reportagem é de Alexandre Severo e publicada por Planeta Sustentável, 19-12-2013.

Sobre o tema, ele e colegas lançaram o estudo Lixo Zero – Gestão de Resíduos Sólidos para uma Sociedade Mais Próspera, disponível em formato digital pelo Planeta Sustentável (que lançou Muito Além da Economia Verde, de sua autoria, em 2012), do qual é conselheiro. O economista alerta que se deve frear a exploração dos recursos naturais e estimular a reciclagem: “Lixo é riqueza, não pode ser desperdiçado”.

Eis a entrevista.

Qual é o ponto crucial da Política Nacional de Resíduos Sólidos?

É a chamada responsabilidade compartilhada. Ela sinaliza que estamos todos incumbidos de dar destinação correta ao lixo produzido: as prefeituras, os governos estaduais e federal, as empresas e o próprio consumidor. É importante delimitar em que consiste o compromisso de cada um; sobretudo, saber quem paga a conta. Para o consumidor, a responsabilidade compartilhada exige que ele separe seu lixo, preparando-o para a reciclagem, sob pena de multa. A lei prevê também o conceito da responsabilidade estendida. Com ela, o produtor ou o importador (denominados poluidores-pagadores) terão de responder pelo envio apropriado dos rejeitos do que venderem ao consumidor final, incluindo a estruturação da logística reversa – o recolhimento e a devida reciclagem desses produtos pós-consumo –, para que tenham destinação mais adequada que não os aterros.

Mesmo os aterros controlados não são apropriados?

Não. Temos três tipos de aterro: os lixões a céu aberto, os aterros controlados e os sanitários. Todos são inadequados porque o resíduo sólido é uma riqueza que pode e deve, em sua esmagadora maioria, ser reaproveitada pela sociedade.

Será preciso fazer campanhas para conscientizar o consumidor?

Sim. A experiência internacional mostra que o consumidor só faz a parte dele quando recebe boa educação ambiental. Na Europa, as empresas gastam muito dinheiro com publicidade pedagógica, e aqui será preciso fazer o mesmo. Também é necessário ter um sistema de coleta coerente com essa nova obrigação do consumidor. Em muitas cidades brasileiras é frequente as pessoas mais conscientes fazerem a triagem de seu lixo domiciliar e depois constatarem que o caminhão da coleta mistura todos os rejeitos de novo. Isso desmoraliza o processo. É mais um fator institucional, que precisa ser organizado de forma coerente nos municípios por três atores importantes: as prefeituras, os catadores e as empresas.

O senhor concorda com o pagamento de uma taxa sobre os resíduos produzidos pelo consumidor?

É polêmico, mas creio que essa deva ser outra responsabilidade das pessoas. Na cidade de São Paulo, a taxa chegou a ser cobrada, anos atrás, e depois foi suspensa. Houve o erro de demonizar essa cobrança, e sua suspensão foi tratada pelos paulistanos como uma vitória da cidadania. Mas a taxa do lixo continua sendo paga, agora embutida no imposto predial e territorial urbano (IPTU).
Sem a cobrança explícita, as prefeituras não podem premiar quem faz a separação correta de seu lixo nem oferecer incentivos às pessoas que produzem menos resíduos e promovem a reciclagem.

Quem irá financiar o sistema de logística reversa?

Serão os fabricantes e importadores; por isso, agora são chamados de poluidores-pagadores. O sistema já é praticado, de forma eficiente, no Brasil, com pneus, embalagens de óleos combustíveis e de agrotóxicos, além de baterias automotivas. Esses cinco setores privados organizam e pagam os custos da coleta e da reciclagem dos produtos, antes mesmo da nova lei. Em meus tempos de criança, o que mais se encontrava nos rios Pinheiros e Tietê, em São Paulo, eram pneus velhos. Hoje, eles são reciclados. Há uma agência chamada Reciclanip responsável por essa tarefa. No caso das embalagens de agrotóxicos, o setor gasta R$ 80 milhões por ano para organizar sua logística reversa.

A dificuldade maior está em produtos com venda descentralizada e descarte domiciliar.

Quais são esses produtos?

São embalagens em geral, desde latinha de bebida até garrafa PET e caixinha longa-vida. Nesse ponto, a lei quer aguardar o que os respectivos setores têm a dizer. Aí, há uma queda de braço entre fabricantes e governo: a proposta das empresas é apenas auxiliar com recursos financeiros os catadores de rua, oferecendo a eles infraestrutura para melhorar o trabalho e a produtividade.

E só. No entender desses fabricantes, a tarefa de coleta e logística reversa ficaria a cargo das prefeituras, com os catadores.

A alegação é de que não é possível ir aos domicílios recolher as embalagens descartadas. Acontece que esse tipo de argumento está enfraquecido. Ao contrário do que propõem no Brasil, essas mesmas empresas se comprometem com o pagamento da logística reversa nos países desenvolvidos.

Essa responsabilidade empresarial deve ser cada vez maior?

Sim. A responsabilidade estendida não pode mais ser vista como excesso ambientalista ou exagero. É uma tendência de comportamento das grandes marcas globais. As empresas cada vez mais começam a pensar em sua cadeia de valor como um todo, e a reciclagem faz parte dessa crescente preocupação.

E o caso de pilhas, lâmpadas e eletroeletrônicos, que contêm substâncias tóxicas?

A logística reversa de produtos de difícil manuseio e com grande potencial tóxico também será responsabilidade financeira do fabricante ou do importador. Mas ninguém sabe ainda como se organizará a reciclagem. Isso porque a lei brasileira foi sábia em esperar os próprios fabricantes fazerem suas propostas como ponto de partida. O governo está recebendo essas sugestões.

Qual é a tarefa de prefeituras, estados e União com a PNRS?

As prefeituras continuarão respondendo pelo recolhimento do lixo domiciliar e, em parte, pela coleta seletiva porque são elas as primeiras responsáveis pelos resíduos gerados em seus municípios. Portanto, se esses resíduos serão recolhidos por organizações de catadores – além do trabalho das empresas de coleta contratadas –, deverá haver um acordo entre as partes constantes nos chamados planos municipais de gestão de resíduos sólidos. O problema é que, pela nova lei, as prefeituras já deveriam ter elaborado seus planos, e, hoje, menos de 10% delas têm eles prontos. Se não o fizerem, deixarão de receber os recursos para organizar seus sistemas de coleta. Isso revela como o poder público está atrasado, porque a base ainda não fez sua lição de casa.

Além disso, por questões legais, municípios com menos de 15 mil habitantes não podem ter aterros sanitários. Portanto, será preciso montar consórcios municipais e criar aterros conjuntos, o que, é certo, trará dois problemas. Primeiro, o orçamento do lixo no país tem a tradição de ser grande financiador de campanhas eleitorais.

Assim, é muito difícil partilhar esse orçamento com outras prefeituras, até porque isso só pode ser feito sob absoluta transparência, o que não é o que vigora no Brasil. Segundo, há aquela velha questão do “no meu quintal, não”. Ninguém vai querer um aterro em sua cidade. Resumindo: os consórcios necessários para acelerar essa transição dos lixões para os aterros sanitários ainda estão muito atrasados e será uma grande dificuldade implementá-los. Hoje, no Brasil, pouco mais de 40% de todo o lixo tem destinação inadequada. A grande maioria está em cidadezinhas das regiões Norte e Nordeste do país.

Os estados também terão papel fundamental, mas, assim como as prefeituras, os estados do Norte e do Nordeste ainda não têm planos concluídos. Por fim, o governo federal está implementando a lei, tem recursos destinados para tal, mas o dinheiro está bloqueado, pois a maioria das prefeituras e muitos estados não fizeram a lição de casa. Esse cenário fortalece a tese de que é preciso haver maior responsabilidade do setor privado. Não se pode esperar que o poder público conclua suas pendências com rapidez e facilidade, porque isso não vai acontecer.

Como resolver a questão dos catadores? Melhor tê-los regularizados ou dar a eles atribuições mais dignas?
O melhor é tê-los regularizados. A cidade de San Francisco, nos Estados Unidos, tem 800 mil habitantes e dois mil catadores de resíduos sólidos regularizados e equipados. É um trabalho digno. O serviço ambiental que essas pessoas prestam à sociedade é inestimável. No Brasil, quem faz esse trabalho é vítima das piores formas de exclusão social; por isso, associa-se essa tarefa à degradação, quando não deveria ser assim. Em uma sociedade saudável, em que não há trabalho indigno, é preciso ter uma forma de coleta destinada à reciclagem como a dos catadores.

As associações de catadores estão procurando organizar a categoria, mas a grande maioria deles está na informalidade.

Incinerar lixo para gerar energia pode ser um bom modelo?

Estudo recente compara biodigestores e incineradores convencionais. Biodigestores são mais adequados na produção de energia porque funcionam só com resíduos orgânicos, deixando os inorgânicos para reciclagem. É preciso comparar o valor potencial que provém da reciclagem com o valor do que é incinerado para produzir gás e gerar energia. Mesmo que haja vantagem ambiental e econômica em incinerar, não considero como a melhor solução. Queimar resíduos pode ser um estímulo ao desperdício para uma sociedade que ainda cultua o vício do “jogar fora”. Nós, brasileiros, e também os americanos somos sociedades assim. A vantagem de optar pela reciclagem é que esse fator incidirá também na concepção dos produtos. Até agora, não vi nenhum caso no Brasil de empresa que, com base na PNRS, tenha modificado o desenho de seus produtos em função da necessidade de facilitar a separação dos diferentes materiais para a logística reversa.

No Brasil, a quantidade de resíduos aumenta de forma vertiginosa à proporção do crescimento econômico. Como estancar isso?

Com o aumento na renda, a quantidade de lixo também cresceu. Não há orientação na publicidade ou nas políticas de crédito ao consumidor no que diz respeito ao destino do lixo. Dados recentes apontam que cada ser humano consome 10 toneladas por ano de recursos naturais. É a nossa chamada pegada material, e ela só faz aumentar: no início dos anos 2000, foram extraídos 60 bilhões de toneladas de matéria orgânica, minérios e combustíveis fósseis. Em 2008, esse número saltou para 70 bilhões de toneladas. Esses recursos não são infinitos. Se não tivermos inteligência para usar o que foi retirado do planeta, chegará o momento em que não teremos mais de onde tirar.

 

Fonte: IHU – Unisinos

A revolução silenciosa das energias renováveis


“O mais importante para os países em desenvolvimento não é garantir e ampliar seus direitos de emitir gases de efeito estufa. O princípio de justiça ambiental, contido no Protocolo de Kyoto, tem que se converter numa ampla cooperação global para universalizar o acesso às energias renováveis e descentralizadas”, escreve Ricardo Abramovay, professor Titular do Departamento de Economia da FEA e do Instituto de Relações Internacionais daUSP, em artigo publicado por Outras Palavras, 09-06-2014.

Eis o artigo.

                       

A renovação do Protocolo de Kyoto não pode ser o objetivo dos países em desenvolvimento nas duas próximas conferências do clima, a que acontece em dezembro deste ano em Lima e a de 2015, em Paris, onde se espera um novo acordo global. A afirmação é chocante, uma vez que Quioto apoia-se em dois princípios aparentemente incontestáveis, sob o ângulo da justiça ambiental. O primeiro é que embora as responsabilidades pela redução nas emissões de gases de efeito estufa sejam comuns, elas devem ser diferenciadas: quem mais emite hoje e mais emitiu no passado deve obter as menores possibilidades de continuar lançando na atmosfera os gases que respondem pelo aquecimento global. Se há lugar remanescente para emissões este deve ser preenchido pelos países cuja ocupação do espaço carbono foi, até aqui, relativamente baixa. Disso decorre o segundo princípio que distingue países que historicamente mais emitiram (os do Anexo I, no jargão da diplomacia do clima) e os outros (não Anexo I). Os países do Anexo I deveriam, pelas regras de Quioto, ter responsabilidades legalmente obrigatórias de reduzir as emissões, enquanto que para os demais os compromissos seriam bem mais tênues.

Até recentemente, estes princípios e a diferenciação deles decorrente poderiam ser defendidos sobre a base da constatação de que as formas predatórias de acesso à energia eram as mais baratas: carvão, petróleo, gás e hidrelétricas construídas em situações que comprometem os serviços ecossistêmicos correspondiam à maneira mais acessível de garantir o direito à energia elétrica a populações pobres. E é sobre a base deste argumento que se intensifica a pressão sobre as áreas de reserva na Amazônia, bem como para novos empreendimentos em petróleo, gás e carvão, no mundo todo e em particular na América Latina.

O que fica cada vez mais evidente, a partir do início da atual década é que este argumento vai deixando de ser verdadeiro. O avanço recente nas energias renováveis modernas (solar, eólica, biomassa e geotérmica) está superando as mais otimistas expectativas. E parte decisiva deste avanço ocorre acoplada à própria revolução digital, dando lugar a um processo inédito e altamente promissor de descentralização na maneira como, desde o início do século XX, a energia foi gerida.

Mas como é possível depositar tanta esperança em fontes que até aqui são consideradas caras, intermitentes e respondem por não mais que 3% da matriz energética global? Não será mais prudente garantir energia por meios convencionais (fósseis e grandes hidrelétricas) para só então poder dar-se ao luxo de incorporar, aos poucos, solar, eólica e biomassa?

O começo da resposta está na noção matemática de crescimento exponencial, como mostra um dos mais importantes inventores norte-americanos, Ray Kurzweil. Nos últimos vinte anos, o total da oferta de energia solar no mundo está dobrando a cada dois anos. Se dobrar mais oito vezes ao longo dos próximos 16 anos isso significa que 100% da oferta de energia do Planeta poderá ser solar. David Crane e Robert Kennedy Jr. mostram que os preços dos painéis solares caíram 80% entre 2008 e 2012. Como resultado disso, o preço do quilowatt gerado por painéis solares que era de cinco dólares em 2008, deve cair a US$ 0,50 em 2020. Já são vinte os Estados norte-americanos em que a energia solar compete com vantagem com fontes convencionais. Entre 2009 e 2013 a produção de energia elétrica por painéis solares nos EUA aumentou nada menos que 63,2% ao ano. A quantidade de energia gerada por painéis fotovoltaicos nos EUA em 2013 foi nada menos que quinze vezes maior que a gerada em 2008. Esta mesma tendência pode ser observada com a energia eólica, a fonte de geração de eletricidade que mais cresce no mundo. As turbinas dos geradores a vento são hoje mil vezes mais eficientes que em 1990. Em 2013 a oferta de energia eólica aumentou 33% relativamente ao ano anterior e vem dobrando, desde 1998, a cada dois anos. O resultado é que mesmo num país tão rico em carvão como a África do Sul a energia gerada por este mineral é mais cara que a eólica.

O avanço das energias renováveis já ameaça o próprio funcionamento da rede centralizada, uma vez que parte crescente da oferta é realizada a partir da auto produção dos domicílios e dos estabelecimentos comerciais. A unidade entre energias renováveis e revolução digital vai quebrar a associação, que marca de forma trágica a história do Século XX, entre energia e poder. Como bem mostra um relatório recente do Rocky Mountain Institute, “grid defection” (abandono da rede) é um território que não fazia parte dos cenários das empresas convencionais de energia. A organização financeira global UBS prevê que ainda nesta década, as contas de energia elétrica na Itália, na Alemanha e na Espanha cairão de 20 a 30%, como resultado do aumento da autoprodução. As empresas convencionais de energia na Europa devem perder 50% de seus lucros antes de 2020. E a chegada de baterias capazes de acumular energia vão compensar os momentos de ausência de vento ou a falta de insolação.

Neste contexto, o mais importante para os países em desenvolvimento não é garantir e ampliar seus direitos de emitir gases de efeito estufa. O princípio de justiça ambiental, contido no Protocolo de Kyoto, tem que se converter numa ampla cooperação global para universalizar o acesso às energias renováveis e descentralizadas.

Para isso há dois desafios centrais. O primeiro consiste em generalizar o avanço da revolução digital e as conquistas tecnológicas que marcam o vertiginoso declínio nos preços das renováveis modernas. Da mesma forma que os celulares se difundiram em países que não dispunham de rede telefônica convencional universalizada, o mesmo pode ocorrer agora com a energia renovável e descentralizada. O que supõe um desafio ainda mais difícil: enfrentar os interesses que tentam mostrar o atraso representando pelos fósseis e pelas hidroelétricas predatórias como único caminho para a energia barata.

Fonte: IHU – Unisinos

Para superar a sociedade do lixo e desperdício


Por Antonio Martins, do Outras Palavras

Um júbilo talvez precipitado espalhou-se, há três anos, entre os que lutam para que o Brasil combata a cultura do lixo e do desperdício. Aprovou-se, após duas décadas de lutas, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Alcançaram-se conquistas importantes – a substituição dos “lixões” por aterros sanitários está em curso. Mas muitos se esqueceram do principal. Aquela vitória era apenas o primeiro passo para a urgente (e já muito atrasada) adoção de políticas efetivas de reciclagem e reaproveitamento.

O economista Ricardo Abramovay acaba de lançar  um livro,com Juliana Simões Speranza e Cécile Petitgand , o Lixo Zero1. A obra lembra que, em termos gerais, o país gera um volume imenso e desnecessário de detritos, que emporcalham as cidades e a natureza, e desperdiçam vasta riqueza, contida no que é tolamente descartado.

Muito além do diagnóstico, o livro vai à busca das causas e saídas. Falta estabelecer efetivamente no Brasil, diz Abramovay, o princípio do poluidor-pagador. Só ele será capaz de desarmar uma cadeia de irresponsabilidade cujas consequências sociais e ambientais são indesejáveis.

Abramovay explica: os custos do processo de reaproveitamento de materiais (separação, coleta, transporte, reaproveitamento) não podem continuar despejados sobre as costas do setor público. Do contrário, a limpeza pública será sempre ineficiente: o volume de lixo produzido por fabricantes e consumidores crescerá rápida e incessantemente.

O caminho é cobrar o setor privado. Do ponto de vista ético, significa responsabilizar quem suja por limpar. Em termos de eficiência, é o único caminho para pressionar os produtores a adotar práticas e métodos mais limpos. Um punhado de setores – pneus e óleos combustíveis, por exemplo – alcançou índices autos de reaproveitamento, mesmo para padrões internacionais. Em outros – eletrônicos, pilhas, lâmpadas –, o trabalho começa.

Mas a própria PNRS é omissa em relação a algo decisivo: as embalagens. Isso permite a inúmeros setores optar pelo descartável (por exemplo, as garrafas pet que infestam e entristecem a paisagem dos rios), onde a alternativa do reaproveitamento (garrafas de vidro retornáveis) seria plenamente viável e já foi usada no passado.

Obrigar os poluidores a pagar inclui reabrir debates-tabu – por exemplo, sobre a justiça e o papel pedagógico das taxas do lixo. Além disso, abre espaço para importantes avanços sociais. Pois permitirá ao poder público, por exemplo, remunerar os catadores pelo trabalho de limpeza urbana que executam. Estas dezenas de milhares de brasileiros, cuja renda parca provém hoje apenas do que coletam e vendem, não têm hoje condições práticas de recolher, por exemplo, vidro e papel – cujo preço de mercado é irrisório.

                     

Segue a entrevista com Ricardo Abramovay, concedida ao site Outras Palavras:

No debate público, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) é vista quase sempre como um grande avanço – ainda mais por ter sido concebida por meio de debate amplo entre governo, sociedade civil e empresas. Mas o livro que de que você é co-autor toca numa ferida importante: passam-se os anos e o país parece avançar muito pouco na reciclagem, na valorização dos catadores e na recuperação das riquezas contidas no lixo. Quais as razões para isso?

De fato o País avançou muito mais na redução dos lixões do que na transformação dos resíduos em base para a produção de nova riqueza. Hoje quase 60% dos resíduos vão para aterros sanitários. Em 2007, esta destinação não chegava a 40% do que era gerado. O que ainda vai para os lixões e sua forma um pouco menos nociva que são os aterros controlados é gigantesco e representa um desafio extraordinário. Esta destinação absurda marca, sobretudo, os pequenos municípios e as regiões mais pobres do País e só poderá ser suprimida se houver consórcios entre municípios para organizar a coleta e a destinação dos resíduos. Mas mesmo que se resolva esta questão elementar, básica, de saúde pública, resta o mais importante: a maior parte do remanescente do consumo dos brasileiros não é reutilizada como riqueza. Que os resíduos dirijam-se a aterros sanitários, é melhor do que mandar estes materiais para lixões. Mas o mais importante não é isso.

Ao longo do livro, vocês parecem insistir na efetivação de um princípio, sem o qual as políticas de sustentabilidade relacionadas ao lixo seriam inefetivas: a noção de poluidor-pagador. Por que ela é tão importante?

A PNRS está inspirada numa sequência muito construtiva. Seu ponto de partida é e só poderia ser de natureza ética. O valor do qual tudo depende é (para usar uma expressão aplicada na política pública japonesa) a emergência de uma sociedade saudável do ponto de vista do ciclo de vida dos materiais que utiliza, ou seja, o contrário do que prevalece hoje. Deste valor, decorre um princípio: o princípio do poluidor pagador.

Os resíduos (inevitavelmente inerentes aos bens e serviços que a sociedade consome) não podem emporcalhar as ruas, os rios, o mar e o ar, mas, mais que isso, eles devem ter uma destinação que permita sua reinserção em novos ciclos produtivos, convertendo-se em fontes de nova riqueza e não em base para a destruição dos ecossistemas. Para isso, é necessário que todos os responsáveis por sua geração paguem para que esta recuperação seja levada adiante, sobretudo, quem fabrica ou importa o produto. E claro que isso será repassado para os preços e, portanto, para os consumidores.

Definidos estes valores e este princípio, é fundamental que a política tenha objetivos: no caso brasileiro, além de passar a uma sociedade de reciclagem e estimular que a concepção dos produtos incorpore esta opção social, é fundamental o objetivo de valorizar o trabalho dos catadores de resíduos sólidos, modernizando suas formas de atuação. Um objetivo que muitos municípios no mundo hoje definem (São Francisco, por exemplo) é lixo zero, o que inspirou o título de nosso livro. Dos valores, dos princípios e dos objetivos decorrerão estratégias (que deveriam materializar-se nos Planos estaduais e municipais de resíduos sólidos), táticas com a organização imediata da coordenação dos atores voltados ao cumprimento dos objetivos estabelecidos e, por fim, métricas capazes de avaliar como este conjunto funciona. Esta ordem é fundamental e seu ponto de partida é de natureza ética, são valores que a sociedade deve discutir e pelos quais ela vai optar.

Na apresentação do livro, vocês afirmam que o princípio do poluidor-pagador está diluído na Política Nacional de Recursos Sólidos. Ela não definiria eficazmente a relação de responsabilidades entre empresas e municípios e, ao mesmo tempo, estaria à espera de definições complexas no interior das cadeias produtivas. Poderia desenvolver mais estas insuficiências?

Os países e os setores econômicos que estão conseguindo reduzir a produção de resíduos e aumentar sua taxa de reciclagem são aqueles que adotaram o princípio da responsabilidade estendida do produtor. O produtor ou o importador (e não o serviço de limpeza pública) é que paga para que se retirem das ruas os resíduos decorrentes do consumo daquilo que ele ofereceu. Isso já se faz no Brasil com pneus, baterias automotivas, óleos combustíveis e suas embalagens e embalagens de agrotóxicos. O Brasil tem excelente desempenho, como mostramos no livro, nestes setores. O setor privado é que concebeu, construiu e hoje paga pela logística reversa, ou seja, pelo recolhimento e o reaproveitamento de cada um destes produtos.

No caso dos pneus, por exemplo, eles hoje são um importante componente na produção de cimento e entram na produção de asfalto. E não são as prefeituras, nem os Estados nem o Governo Federal os que pagam por isso. São as empresas. A lei diz que este princípio deve reger a logística reversa não só destes produtos, mas também de pilhas, lâmpadas e eletroeletrônicos. A dificuldade é que contrariamente àqueles anteriormente citados, o descarte de pilhas, lâmpadas e eletrônicos é muito mais descentralizado, depende do que acontece em cada domicílio. Mas a lei determina que o setor privado organize o sistema de coleta e destinação adequada destes produtos.

Ficou, entretanto um segmento fora desta determinação: é o de embalagens. Neste caso, a lei diz que os fabricantes e importadores levarão uma proposta ao Governo Federal e caberá a este dizer se a proposta é ou não razoável. Se não for razoável, a lei dá ao Governo o poder de determinar como a coleta e a reciclagem das embalagens deverá ser feita.

Parece haver um entrave político severo ao estabelecimento do princípio do poluidor-pagador, no Brasil. As medidas de responsabilização do consumidor final pela separação e reciclagem de seu lixo são combatidas ferozmente pela maior parte da mídia e dos políticos e acabam rejeitadas. É o caso da taxa do lixo, que a prefeitura de SP tentou implantar. Como romper este impasse?

Exatamente aí entra o segundo obstáculo que enfrenta a emergência de uma sociedade saudável sob o prisma de seu ciclo de materiais. Cada vez que se fala que o consumidor tem que pagar, isso aparece como extorsão. A supressão da taxa do lixo foi uma das mais irresponsáveis medidas já tomadas no âmbito das políticas públicas. Não conheço nenhum especialista no tema que aprove esta supressão. Ela cria a ilusão de que retirar o lixo da frente da casa das pessoas é gratuito. Pior: ela impede o estabelecimento de políticas que beneficiem os domicílios e os condomínios com uma gestão adequada e que punam os que têm gestão imprópria.

Mas, além disso, existe o mito de que é injusta a incorporação dos custos da coleta e da destinação adequada dos resíduos aos preços. Acreditar nisso é perpetuar o regime de preços mentirosos de nossa vida econômica, em que não pagamos por um imenso conjunto de custos ligados ao que consumimos. Nós pagamos o que é coletado na frente de nossos domicílios (só que hoje isso se esconde no carnê do IPTU) e nós pagamos pela destinação incorreta destes resíduos sob a forma de ruas sujas e desperdício de materiais que poderiam voltar a fazer parte da riqueza social e são simplesmente desperdiçados.

O Brasil, em tempos de muito menor consciência ambiental, já conviveu com práticas importantes de reaproveitamento: por exemplo, a que vigorou por muito tempo na reutilização de garrafas de vidro, para refrigerantes e cerveja, e foi abandonada após a introdução da lata de alumínio. Se temos ao menos vestígios da cultura de reaproveitamento, que impede um debate mais amplo sobre medidas que restabeleçam esta prática, punindo financeiramente o consumidor que não reaproveita embalagens?

Há dois obstáculos importantes, no que se refere aos atores privados, para que deixemos de ser uma sociedade do jogar fora. O primeiro refere-se às empresas: no setor de embalagens, que responde por parte muito importante daquilo que hoje vai para o lixo. O setor privado, no que se refere a embalagens, está muito aquém daquilo com o qual já se compromete há anos em países desenvolvidos, onde as empresas assumem os custos da coleta seletiva. Na União Europeia isso acontece já há vários anos e explica que aí estejam os países de melhor desempenho na gestão dos resíduos.

A grande novidade, neste sentido, é que grandes empresas globais como a Coca-Cola e a Nestlé Waters aderiram à ideia de responsabilidade estendida do produtor nos Estados Unidos. Os americanos, até hoje, estão em último lugar, entre os países desenvolvidos, em matéria de coleta e reciclagem. Foi formada, ano passado, uma ONG chamada Recycling Reinvented, da qual faz parte Robert Kennedy Jr. e que chegou à conclusão que se a coleta seletiva depender de dinheiro dos municípios ela não vai acontecer nunca, na escala compatível com o aumento constante do consumo.

Portanto, as empresas é que devem organizar e assumir os custos desta coleta. A adesão de dois gigantes globais (Coca-Cola e Nestlé Waters) a esta ideia é altamente promissora. Falta agora que isso se aplique também aos países em desenvolvimento.

Vocês se referem diversas vezes às políticas que, em diversos países, estimulam a separação e reciclagem do lixo, estabelecendo taxas de coleta e reduzindo-as, para premiar os cidadãos que tratam devidamente seus resíduos. Pode dar exemplos concretos sobre estas políticas?

Os países que conseguem reduzir seus resíduos e ampliar sua reciclagem (os mais importantes são os quinze mais ricos da União Européia) obedecem a quatro parâmetros fundamentais. Em primeiro lugar, o produtor e o importador é que pagam pela coleta e destinação correta dos resíduos. Na Europa, isso ocorre com o Ponto Verde. Isso quer dizer que cada empresa vai atrás dos resíduos do que oferece? Claro que não e isso nos leva ao segundo parâmetro: as empresas foram organizações privadas sem fins lucrativos ou públicas e não estatais que organizam e respondem pelo funcionamento deste sistema. E o consumidor?

O terceiro parâmetro é que o consumidor paga tanto a taxa de lixo como é estimulado e orientado na separação correta dos materiais que irão para a reciclagem. Não basta se queixar que as pessoas são descuidadas ou que não têm consciência ambiental. É preciso orientá-las muito especificamente sobre a destinação a ser dada a cada tipo de material.

Quem faz isso e quem paga para que isso seja feito? São e tem que ser as empresas, pois a renda que elas obtêm com aquilo que vendem é indissociável das embalagens em que seus produtos são oferecidos. O Ponto Verde, na Europa investe em publicidade para orientar e educar o consumidor. Por fim, quarto parâmetro, o Estado tem papel decisivo: ele não só fiscaliza, como estabelece metas a serem obedecidas por estas organizações privadas. No início do milênio a União Européia impôs a coleta e reciclagem de quatro quilos per capita de produtos eletrônicos por parte de fabricantes e importadores. Hoje este montante já está em vinte quilos per capita.

Vocês também lembram que o Brasil, embora, em termos globais, recicle pouco, destaca-se positivamente no reaproveitamento de alguns materiais – por exemplo, o alumínio. De que maneira estimular estas pequenas conquistas, e o que isso tem a ver com medidas concretas de valorização dos catadores.

O trabalho dos catadores é fundamental, mas ele não faz do Brasil uma sociedade de reciclagem. Sem os catadores a situação das ruas seria muito pior do que já é, em matéria de lixo. Mas os últimos trabalhos do IPEA mostram que nós desperdiçamos parcela imensa de uma riqueza que poderia ser reutilizada. A estimativa do IPEA é que isso corresponde a R$ 8 bilhões por ano.

É fundamental rever a maneira como se remunera o trabalho dos catadores. Esta remuneração não pode depender apenas da venda do que eles coletam. Alguns dos materiais recolhidos têm valor e uma demanda forte (é o caso das latinhas). Outros têm baixo valor, mas mesmo assim, é importante que eles retirem estes materiais das ruas e os destinem à reciclagem. Quando o fazem, estão prestando um serviço ambiental que deve ser remunerado e que não se confunde com aquilo que obtêm pela venda de seus produtos.

Embora relevante, do ponto de vista cultural e social, o trabalho dos catadores parece muito insuficiente, diante dos imensos volumes de lixo não reciclado no Brasil. Não seria a hora de passar de uma visão romântica sobre o catador para políticas que de fato ampliem o alcance de seu trabalho – entre outras, a remuneração pelo poder público do serviços prestados por eles e o estímulo a cooperativas, à mecanização e à mudança de escala de seu trabalho?

Hoje os próprios catadores encaram sua atividade, cada vez mais, como negócio. Claro que existe um imenso e majoritário contingente que vive e trabalha em condições indignas. Mas aqueles que conseguem organizar suas atividades como negócios, estabelecer alianças com vários tipos de organização e afirmar o interesse público do que fazem, mostram um promissor caminho para o futuro.

A Bolsa Verde do Rio de Janeiro, por exemplo, tem nos catadores um pilar decisivo de sua iniciativa de crédito de logística reversa. A ideia é que as empresas, ao colocarem um produto no mercado, devem comprar um crédito que corresponde ao certificado de que alguém (alguma organização) garante que aquele produto será coletado e destinado de forma adequada. Vale a pena ver, em vídeo, a explicação em seis minutos sobre como funciona este mecanismo.

Você destaca a importância de combater a obsolescência programada. De que maneira fazê-lo estabelecendo, também aqui, o princípio do poluidor-pagador. Não seria possível incorporar ao preço de produtos como eletrônicos e eletrodomésticos um imposto ambiental pago pelo consumidor e restituído em valores crescentes, à medida que os diluído ao longo do tempo, à media em que o uso se prolongasse?

Os mecanismos são vários. O importante são duas coisas. A primeira é que, no caso de produtos eletrônicos, pilhas e lâmpadas, eles não podem ser coletados por catadores, pois muitas vezes contêm elementos tóxicos que exigem manuseio especializado. Mas é fundamental organizar um sistema que estimule sua devolução pelo consumidor e não basta simplesmente dizer que num bairro distante de onde o comprador mora o produto pode ser recebido. A descentralização tem que ser muito forte.

O segundo ponto a sublinhar aí é que a grande inovação, nesta área, é que o design de produtos eletrônicos, de uns dez anos para cá, vem incorporando a destinação correta dos resíduos. Isso não ocorria quando estes produtos eram fundidos em plataformas quase inacessíveis às possibilidades de reciclagem. Hoje a desmontagem ativa é uma das áreas mais importantes do design industrial, pois exige que o fabricante conceba o produto tendo em vista a revalorização, depois de seu uso, dos materiais de que ele é composto. Isso já ocorre com computadores, celulares, cadeiras e materiais de construção, onde o conceito de demolição vai sendo substituído pelo de desconstrução, o que supõe conceber as edificações já no horizonte de reutilização futura inteligente e valorativa dos elementos que a formam. Vale muito a pena ver o recente relatório da Fundação Ellen Macarthur sobre este tema.

Três anos após a aprovação da lei que instituiu a PNRS, que ajustes você considera necessários e como eles poderiam se expressar no debate em torno das eleições de 2014?

O mais importante, do qual tudo, absolutamente tudo vai depender é responder a esta singela pergunta: quem paga a conta. Se isso for explícito e visível, as chances de que a capacidade inovadora do setor privado faça dos resíduos uma fonte de riqueza e estimule a transição da sociedade do jogar fora para a sociedade da reciclagem, estas chances serão imensas. Se continuarmos fingindo que as prefeituras terão capacidade de organizar e assumir os custos da coleta seletiva, continuaremos na condição de uma sociedade do desperdício, cujos espaços públicos serão cada vez mais sujos.

Fonte: Envolverde

Reforma agrária assume dimensão estratégica no século XXI


Entrevista especial com Gerson Teixeira

“Nos dias atuais, qualquer avaliação isenta e atenta da realidade brasileira, pautada pelos maiores interesses do país, conclui pela relevância ainda mais superlativa da reforma agrária em nosso país”, pontua o presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA.

Foto: DiárioLiberdade

Os avanços no acesso à terra, proporcionados pelas políticas públicas dos governos FHC e Lula, não afetaram a “estrutura da posse da terra” no Brasil. Pelo contrário, a aquisição de “terras públicas” pelo agronegócio “passou a ameaçar, inclusive, áreas institucionalmente protegidas, como unidades de conservação, áreas indígenas e quilombolas”, assinala Gerson Teixeira, em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail. Ele informa que a concentração fundiária poderá ser ampliada por conta da Medida Provisória nº 636, a qual liberaliza “a aquisição em definitivo dos títulos de domínio dos lotes dos beneficiários do programa de reforma agrária nas condições dadas de carências materiais de toda ordem nos assentamentos”. E acrescenta: “O fato é que condições concretas e subjetivas nas quais se darão a medida tornam viável a transferência de milhões de hectares de terras que estão sob controle dos assentados”.

Para Teixeira, diferente do que ocorreu no final do século passado, quando a reforma agrária se impunha pelas “dimensões relacionadas à superação das inomináveis anomalias sociais, políticas e econômicas decorrentes da extrema concentração da posse da terra”, hoje ela se impõe como estratégia para garantir a soberania nacional. “No período recente, por impulsos produtivos ou especulativos do capital internacional, tem aumentado o controle externo da terra no Brasil e em outros países do Sul. O controle da terra pelo capital externo é a via da apropriação das nossas imensas riquezas naturais do subsolo, do solo, e agora do ar, com os mercados intangíveis (tipo carbono), definidos pela Lei de Mudanças Climáticas e pelo Novo Código Florestal”, esclarece.

Gerson Teixeira é engenheiro agrônomo, especialista em Desenvolvimento Agrícola pela Fundação Getúlio Vargas – FGV/RJ e presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA.

Confira a entrevista.

Foto: Envolverde

IHU On-Line – Na sua avaliação, houve algum progresso na política agrária brasileira nas últimas décadas?

Gerson Teixeira – Houve o avanço no acesso de camponeses às terras públicas por meio das políticas de assentamentos, notadamente, nos governos FHC e Lula. Contudo, além de não ter afetado a estrutura da posse da terra, o agronegócio também avançou na apropriação de terras públicas, e nos anos recentes passou a ameaçar, inclusive, áreas institucionalmente protegidas, como unidades de conservação, áreas indígenas e quilombolas.

Na resultante, tem-se a manutenção da extrema concentração da terra no Brasil, que poderá ser ampliada ainda mais a depender das repercussões práticas dos dispositivos da Medida Provisória nº 636, de dezembro de 2013, que liberalizaram a aquisição em definitivo dos títulos de domínio dos lotes dos beneficiários do programa de reforma agrária nas condições dadas de carências materiais de toda ordem nos assentamentos. Ainda que obviamente não seja este o propósito do governo, que aposta em consequências socioeconômicas virtuosas para um assentado exercendo na plenitude a propriedade da terra, o fato é que condições concretas e subjetivas nas quais se darão a medida tornam viável a transferência de milhões de hectares de terras que estão sob o controle dos assentados.

Também houve a inclusão dos agricultores familiares nas políticas agrícolas, mas sem as devidas diferenciações no fomento produtivo, com vistas a preservar as condições clássicas da produção camponesa, e assim incentivar padrão de consumo diverso do padrão fordista derivado do modelo agrícola produtivista. Considero como as principais conquistas nesse campo, o Programa de Aquisição de Alimentos e as compras da agricultura familiar para a merenda escolar. Esses dois programas precisam ser fortalecidos e ampliados, pois são fundamentais para o processo de resistência dos camponeses no ambiente de mercado. Inclusive, a depender do alcance desses programas, poderíamos alcançar um objetivo absolutamente fundamental para agricultura familiar e camponesa, que é “desbancarização” do crédito que poderia ocorrer via autofinanciamento como decorrência dos efeitos dos programas em consideração.
 

"A ampliação da participação dos camponeses na ocupação do território rural do Brasil passou a ser fundamental para a soberania nacional"

IHU On-Line – Qual é a necessidade de reforma agrária hoje?

 

Gerson Teixeira – Até quase o final do século XX, a reforma agrária se impunha no Brasil pelas suas dimensões clássicas relacionadas à superação das inomináveis anomalias sociais, políticas e econômicas decorrentes da extrema concentração da posse da terra com as suas repercussões no processo de desenvolvimento brasileiro.

A sociedade continua pagando o ônus da continuidade dessas anomalias em pleno século XXI, agora agravadas pelos desdobramentos da hegemonia do chamado agronegócio.

Nos dias atuais, qualquer avaliação isenta e atenta da realidade brasileira, pautada pelos maiores interesses do país, conclui pela relevância ainda mais superlativa da reforma agrária em nosso país.

Aos valores históricos clássicos, em si, já condicionantes do processo de desenvolvimento brasileiro em todas as suas dimensões, agregam-se novos e irrefutáveis atributos estratégicos para a reforma agrária.

A ampliação da participação dos camponeses na ocupação do território rural do Brasil passou a ser fundamental para a soberania nacional. No período recente, por impulsos produtivos ou especulativos do capital internacional, tem aumentado o controle externo da terra no Brasil e em outros países do Sul. O controle da terra pelo capital externo é a via da apropriação das nossas imensas riquezas naturais do subsolo, do solo, e agora do ar, com os mercados intangíveis (tipo carbono), definidos pela Lei de Mudanças Climáticas e pelo Novo Código Florestal.

Além desse argumento, somente com a ampliação das áreas camponesas teremos possibilidade de evitar a destruição absoluta da biodiversidade, a principal vítima do modelo agrícola dominante baseado na homogeneidade e escala, o que projeta ameaças à segurança alimentar. Não obstante, também está dado, como reconhecem altas autoridades da ONU, que a evolução do processo de aquecimento global deverá resultar em profunda crise alimentar em escala global caso mantido o atual padrão de agricultura. Não há dúvidas sobre a maior capacidade de resiliência da agricultura camponesa às adversidades desse processo, o que requer políticas para a vasta ampliação da base produtiva camponesa. Ou seja, a reforma agrária passa a assumir essa dimensão absolutamente estratégica no presente século.

 

"Por 80 bilhões de dólares aceitamos que dois produtos nobres do agronegócio respondam por 88% da nossa safra de grãos"

IHU On-Line – Como a afinidade entre MST e PT influencia a luta pela terra?

 

Gerson Teixeira – No caso específico dessa relação, o MST se encontra basicamente isolado. Estou convencido de que a maior parte da militância e das lideranças petistas mantém vivos os compromissos programáticos históricos do PT pela reforma agrária. Contudo, a tradução desses compromissos em ações práticas mais arrojadas pela reforma agrária tem sido sobrestada pelas circunstâncias de um governo do PT partilhado ‘além da conta’ por forças muito conservadoras.

Além disso, contraditória e compreensivelmente, o próprio MST teve que reposicionar o nível das lutas sociais pela terra que vinha em um crescente até 2002 para evitar confronto maior com um governo controlado por um aliado histórico, porém pouco diligente na matéria por temor de danos à governabilidade.

Acho, inclusive, que a experiência da difícil sobrevivência nesse ambiente de tensão política já por mais de dez anos refletirá fortemente nos debates e resultados do VI Congresso do MST, que ocorrerá a partir do próximo dia 10 de fevereiro. E não se trata apenas de um reposicionamento na intensidade das lutas de massa, mas, sobretudo, de mudanças conceituais que serão decisivas para o futuro do MST e da luta pela própria reforma agrária em nosso país. Luta essa que por certo conta com outros atores sociais importantes, todavia, no período histórico recente, sem o peso da atuação do MST.

Afinal, precisamos decantar bem e refletir mais ainda sobre os desdobramentos políticos práticos daquilo que o Movimento vem pregando e que será objeto do Congresso, que é a chamada reforma agrária popular.

Não tenho acúmulo nesse debate do Movimento, portanto, não teria condições de opinar a respeito. Mas entendo que somente teremos êxito no objetivo estratégico (para o país) de enfraquecer o agronegócio, com a ampliação do controle da terra pelos camponeses, combinada com formação e organização desse segmento social. Sublinho tanto a terra como a formação e a organização política, pois só assim haverá condições de lutas, por exemplo, por outra matriz tecnológica na agricultura; conquista essencial para a população brasileira e fatal para os interesses dos capitais que controlam o agronegócio. Camponês com terra, mas sem algum nível de formação e desorganizado, é agricultor familiar do agronegócio (agronegocinho).

A estratégia em consideração exige capacidades pensantes e de mobilização para a luta, o que o MST tem de sobra. Resta discutir se cuidados em excesso na luta pela terra para a preservação de uma boa sincronia com o governo não acabam, inclusive, prejudicando o próprio governo, por limitar o salto, para um plano estruturante, dos avanços sociais inaugurados desde 2003.

IHU On-Line – E as relações atuais entre governo e bancada ruralista? Como a participação do agronegócio na balança comercial brasileira impacta a luta pela terra?

Gerson Teixeira – Em que pese as manipulações nesse cálculo, a balança comercial do agronegócio, turbinada pelo boom dos preços das commodities agrícolas desde meados da década anterior, tem sido a “joia da coroa” dos discursos oportunistas dos ruralistas. Junto com as receitas cambiais do mineronegócio, temos a equação que sustenta a opção questionável de uma economia primário-exportadora. Por 80 bilhões de dólares ficamos reféns políticos de um segmento que envenena os brasileiros, destrói o meio ambiente, viola direitos; que retira do país as enormes vantagens econômicas de se tornar território livre dos transgênicos. Por 80 bilhões de dólares aceitamos que dois produtos nobres do agronegócio respondam por 88% da nossa safra de grãos. Por via de consequência aceitamos as pressões inflacionárias, fruto das elevadas vulnerabilidades da oferta interna de alimentos que integram a dieta básica da nossa população. Enfim, por 80 bilhões de dólares mantemos o Brasil entre os líderes da concentração da terra em todo o mundo. Conseguiremos ser desenvolvidos nesses termos?

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?

Gerson Teixeira – Sim, gostaria de desejar muito êxito ao 6º Congresso do MST, e que a partir de então as lutas pela chamada reforma agrária popular tomem o rumo e a intensidade adequados numa relação de parceria com o governo, ainda que mais tensa, contudo construtiva para o bem do próprio governo e do país. Afinal se os ruralistas, que “têm tudo e mais alguma coisa”, ainda assim encurralam o governo o tempo todo na defesa da ampliação dos seus ganhos seccionais, chegando mesmo a constranger publicamente Ministros na Câmara dos Deputados, por que os trabalhadores não animariam a relação com o governo com um upgrade nas lutas em defesa de interesses que, no fim das contas, são de toda a nação?

Fonte: IHU – Unisinos