“As águas subterrâneas são um recurso pouco entendido e ainda pouco apreciado”


Entrevista especial com Ricardo Hirata

“Nos aquíferos é que se encontra reservada a maior parte da água do mundo — 97% das águas doces e líquidas do planeta. Quando vemos problemas de estiagem, que serão agravados pelas mudanças climáticas, podemos supor que é no recurso subterrâneo que está a possibilidade de superação”, destaca o hidrogeólogo.

 
 
Foto: iThirst

“O usuário não tem ideia dos custos de extração das águas e, sobretudo, de que problemas advindos da falta de controle afetam a sua extração. Ele está pagando mais pela água sem saber que muitas vezes é a irregularidade dos poços do seu vizinho que está provocando esse incremento de gastos. Isso ocorre também com grandes usuários, incluindo as companhias municipais de água. É um conflito não percebido pela população, que não tem ideia de causa e efeito nesse ambiente. Mesmo os técnicos do estado têm muitas vezes uma percepção bastante restrita desses problemas, ainda mais em áreas urbanas. As empresas, os condomínios e mesmo as concessionárias poderiam economizar muito se medidas simples, mas bem equacionadas, fossem implementadas em suas captações”, aponta o hidrogeólogo Ricardo Hirata.

O pesquisador lidera o Centro de Pesquisas de Água Subterrânea – CEPAS, instituição vinculada à Universidade de São Paulo – USP e que há mais de dez anos investiga os índices de nitrato em águas subterrâneas no estado de São Paulo. “O nitrato é o contaminante mais comum encontrado nas águas subterrâneas no Brasil e no resto do mundo”, enfatiza Hirata. As principais fontes de contaminação são o esgoto urbano, proveniente de fossas sépticas ou negras ou mesmo do vazamento das redes de saneamento que sofrem com a falta de manutenção, e o uso excessivo de fertilizantes nitrogenados no meio rural. As pesquisas do CEPAS vêm demonstrando aumento na concentração de nitrato nas águas subterrâneas, mesmo naquelas áreas em que há redes antigas de saneamento — o que é indicativo da existência de vazamentos nos canos de esgoto.

“As águas subterrâneas são um recurso pouco entendido e ainda pouco apreciado pela população, embora elas sejam utilizadas por mais de 35-40% da população brasileira. No estado de São Paulo, mais de 70% de seus municípios são total ou parcialmente abastecidos pela rede pública com águas de aquíferos. Isso é mais notável em cidades de médio e pequeno porte, onde os recursos subterrâneos são comparativamente mais vantajosos que os recursos superficiais. Cidades como Ribeirão Preto – SP, Porto Alegre – RS, Manaus – AM, Natal – RN, Brasília – DF, São José dos Campos – SP, Jales – SP, Marília – SP dependem fortemente das águas subterrâneas”, ressalta o pesquisador.

Foto: bloggeografiaf

Ricardo Cesar Aoki Hirata é diretor do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas – CEPAS da Universidade de São Paulo – USP e professor do Instituto de Geociências da mesma instituição. Possui graduação em Geologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, mestrado e doutorado em Geociências com área de concentração em Recursos Minerais e Hidrogeologia pela USP e pós-doutorado pela Universidade de Waterloo, no Canadá. É consultor da UNESCO e da International Atomic Energy Agency – IAEA, tendo atuado também como consultor da Organização Pan-Americana da Saúde – OPAS/OMS.

Confira a entrevista.

Ricardo Hirata. Foto: arquivo pessoal

IHU On-Line – Que relação há exatamente entre os índices de nitrato e a contaminação de aquíferos por infiltração de esgoto urbano?

Ricardo Hirata – O nitrato é o contaminante mais comum encontrado nas águas subterrâneas no Brasil e no resto do mundo. As suas características de alta mobilidade e grande persistência nas águas subterrâneas fazem com que plumas de nitrato sejam encontradas em quase todos os aquíferos urbanos no Brasil. Nesse caso, a principal fonte é o esgoto proveniente de fossas sépticas ou negras ou mesmo do vazamento da rede de esgoto, que carecem de manutenção.

IHU On-Line – Este cenário é também verificado no meio rural? Qual a incidência de contaminação das águas por fertilizantes e agrotóxicos?

Ricardo Hirata – O nitrato também é bastante comum no meio rural, pois em áreas agrícolas o excesso de fertilizantes nitrogenados, que é bastante comum, acaba chegando até o aquífero, contaminando-o. Neste caso, não temos muitos estudos no Brasil e, portanto, temos ainda pouca ideia de sua extensão. Mas, a partir da experiência em outros países, é de se acreditar que haja problemas no Brasil, atingindo-se grandes áreas, sobretudo pela sua grande vocação agrícola, de alta técnica.

IHU On-Line – Quais são os principais riscos da ingestão de nitrato para a saúde humana?

Ricardo Hirata – O nitrato é um contaminante de média toxicidade. Assim, em concentrações acima de 10mg/L (como nitrogênio-nitrato; e 45mg/L, como nitrato), pode provocar a meta-hemoglobinemia, que afeta bebês. Há igualmente suspeitas de que, em concentrações bastante menores, ele também seja carcinogênico [que pode provocar câncer].

IHU On-Line – Que outros contaminantes nocivos à saúde humana são encontrados nas águas subterrâneas? Que riscos provocam?

Ricardo Hirata – Há uma infinidade de compostos que podem, em concentrações excessivas, provocar problemas à saúde humana. Um grupo de contaminantes bastante preocupantes são os solventes sintéticos clorados. Esses apresentam grande toxicidade e são bastante persistentes e móveis em aquíferos. O interessante é que, devido a sua grande volatilidade, esses contaminantes não têm a mesma importância para as águas superficiais. Isso faz com que os órgãos de controle ambiental do Brasil não deem atenção a eles em programas de monitoramento regular nas águas subterrâneas. Metais pesados formam outro grupo bem importante e nocivo às águas subterrâneas, embora eles não apresentem a mesma mobilidade que o nitrato ou os solventes clorados nos aquíferos.

IHU On-Line – Nesta perspectiva, quais foram os principais resultados encontrados pelas pesquisas realizadas pelo CEPAS?

Ricardo Hirata – Os resultados que o CEPAS tem acumulado ao longo desses 10 anos no estudo do nitrato fez concluir que esse contaminante tem sido detectado cada vez mais no estado de São Paulo, permitindo afirmar que todas as cidades paulistas apresentam, em variados graus, problemas com esse contaminante. A rede oficial de monitoramento do estado, operada pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo – CETESB, tem inclusive mostrado aumentos nas concentrações desse contaminante em seus poços, corroborando com os resultados de nossas pesquisas.

Outra importante constatação que não era considerada pelos gestores ambientais é que grandes plumas de nitrato estão sendo detectadas em aquíferos urbanos, mesmo que a área já tenha há muito tempo rede de esgoto. Embora a existência de rede de esgoto diminua substancialmente a carga contaminante ao subsolo (comparativamente a fossas sépticas e negras), a falta de manutenção da rede pública e os seus vazamentos são suficientes para criar importantes plumas contaminantes. O que preocupa nesse cenário é que simulações em computador feitas pelo nosso grupo com as plumas observadas em cidades (mesmo com rede de esgoto) têm mostrado que estas levariam, caso cessadas completamente as fugas de esgoto, mais de 60 anos para ter os seus aquíferos novamente limpos, mostrando claramente que evitar o problema é a melhor e mais barata solução para o nitrato. Neste caso, o que se conclui é que a rede de esgoto moderna, com tubos plásticos, deve anteceder a qualquer ocupação do terreno urbano.

IHU On-Line – Estes resultados servem de parâmetro para outras realidades regionais e/ou para um cenário nacional?

Ricardo Hirata – Sim, a presença de nitrato em outros aquíferos fora do estado de São Paulo deve ocorrer, e até em maiores proporções, pois as cidades possuem menor cobertura de rede de esgoto comparativamente às cidades paulistanas. O melhor exemplo disso é Natal – RN, cidade abençoada pela excelente qualidade de suas águas subterrâneas, mas onde a concessionária tem dificuldades de fornecer água sem nitrato (e potável) à sua população. A combinação entre poços mal localizados (dentro da malha urbana densa) e a falta histórica de rede de esgoto tem criado os sérios problemas lá observados.

IHU On-Line – Há fiscalização sobre a potabilidade da água de poços tubulares (artesianos)?

Ricardo Hirata – A legislação que controla o uso da água subterrânea é estadual e em muitos estados há mecanismos para a fiscalização da qualidade das águas extraídas por poços tubulares. O problema é que essas leis são pouco seguidas, foram daqueles instrumentos que não “pegaram” ainda. O usuário não vê importância na regularização de seu poço e nos benefícios que isso pode trazer para ele e para toda a comunidade, e, por extensão, ao ambiente. De outro lado, o estado não tem oferecido nenhum dos serviços pelos quais ele é responsável, como o de implementar a sustentabilidade do recurso, fazendo com que o controle evite a contaminação e os problemas de superexploração.

A falta de um controle das demandas de água pode levar a importantes problemas, muitas vezes desconhecidos pelos usuários, incluindo:

a) redução dos níveis aquíferos, encarecendo o bombeamento das águas subterrâneas pelo aumento do consumo de energia ou necessidade de aprofundamento do poço;

b) redução dos fluxos de base a corpos de água superficial, como rios e lagos, causando problemas de vazão durante, sobretudo, as estiagens;

c) indução de contaminação e salinização das águas;

d) indução de problemas geotécnicos, como afundamentos do terreno;

e) exaustão do recurso e sua perda.

Outra área de pesquisa do CEPAS está concentrada na gestão dos recursos hídricos subterrâneos e tem concluído que o usuário não tem ideia dos custos de extração das águas e, sobretudo, de que problemas advindos da falta de controle afetam a sua extração. O usuário está pagando mais pela água sem saber que muitas vezes é a irregularidade dos poços do seu vizinho que está provocando esse incremento de gastos. Isso ocorre também com grandes usuários, incluindo as companhias municipais de água. É um conflito não percebido pela população, que não tem ideia de causa e efeito nesse ambiente. Mesmo os técnicos do estado têm muitas vezes uma percepção bastante restrita desses problemas, ainda mais em áreas urbanas. As empresas, os condomínios e mesmo as concessionárias poderiam economizar muito se medidas simples, mas bem equacionadas, fossem implementadas em suas captações.

IHU On-Line – Qual é a relevância dos poços tubulares para o abastecimento de água no Brasil?

Ricardo Hirata – Muito maior que a percepção que o brasileiro e seus gestores têm. As águas subterrâneas são um recurso pouco entendido e ainda pouco apreciado pela população, embora elas sejam utilizadas por mais de 35-40% da população brasileira. No estado de São Paulo, mais de 70% de seus municípios são total ou parcialmente abastecidos pela rede pública com águas de aquíferos. Isso é mais notável em cidades de médio e pequeno porte, onde os recursos subterrâneos são comparativamente mais vantajosos que os recursos superficiais. Cidades como Ribeirão Preto – SP, Porto Alegre – RS, Manaus – AM, Natal – RN, Brasília – DF, São José dos Campos – SP, Jales – SP, Marília – SP dependem fortemente das águas subterrâneas. Mesmo na Bacia do Alto Tietê, as águas subterrâneas são o quarto mais importante manancial, fornecendo mais de 10 metros cúbicos por segundo de água, superando os outros cinco mananciais superficiais operados pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – SABESP. Na agricultura, o censo agrícola do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE computa mais de 450 mil poços tubulares (não cacimbas) em áreas rurais brasileiras.

IHU On-Line – É viável a descontaminação da água com incidência de nitrato?

Ricardo Hirata – Sim, há tecnologias, como os sistemas de osmose reversa, que são bastante caras. Há técnicas de descontaminação das águas dentro do aquífero, com a injeção de produtos que provocam a desnitrificação, mas essas técnicas estão ainda no campo da pesquisa. O que as empresas concessionárias de água têm feito é mesclar águas contaminadas com outras em que a concentração de nitrato é menor, permitindo fornecer águas não contaminadas.

Foto: Mundo das Tribos

IHU On-Line – O que pode ser feito para a reversão deste quadro de contaminação contínua das águas subterrâneas?

Ricardo Hirata – Um dos grandes problemas que as águas subterrâneas enfrentam é o desconhecimento de sua importância, o que leva à falta de atenção por parte dos gestores. As águas subterrâneas não estão na agenda dos governos nem do setor agrícola. De um lado há um recurso já bastante utilizado no Brasil, cujos ganhos econômicos, sociais e ambientais não são percebidos, entretanto, pela população. Isso faz com que esse recurso não seja discutido nas grandes tomadas de decisão no planejamento urbano ou mesmo rural.

De outro lado, nos aquíferos é que se encontra reservada a maior parte da água do mundo — 97% das águas doces e líquidas do planeta estão nos aquíferos. Quando vemos problemas de estiagem, que serão agravados pelas mudanças climáticas, podemos supor que é no recurso subterrâneo que está a nossa possibilidade de superação do problema, a partir do uso conjunto e racional do recurso subterrâneo e superficial. É uma imensa caixa de água de excelente qualidade esperando para ser convenientemente aproveitada. Assim, investir no conhecimento do recurso, buscando as novas oportunidades, é imperioso para aumentar a segurança hídrica em cidades.

Um segundo ponto é que os estados, por meio de seus órgãos gestores, realmente gestionem as águas subterrâneas, fazendo com que as leis sejam de fato cumpridas, e que a população e usuários sejam informados dos benefícios e limitações que podem surgir pelo mau uso do recurso ou do solo.

IHU On-Line – As políticas públicas de saneamento e a legislação brasileira dão conta da preservação das águas e, consequentemente, da saúde humana?

Ricardo Hirata – Em parte sim, mas é importante notar que a simples presença de redes de esgoto não elimina o problema da contaminação por nitrato em áreas urbanas. Novas redes, com novos materiais, e manutenção periódica é que vão garantir a qualidade das águas. Da mesma forma, os planejadores devem levar em consideração que é importante construir redes de esgoto nas novas áreas urbanas (preferencialmente antes de sua ocupação), antecipando-se aos problemas.

Outro ponto importante é que muitos sanitaristas acreditam que se deveria fechar os poços tubulares quando a área já tenha rede de água potável. A motivação para isso é muitas vezes simplista e não leva em consideração o real papel que o abastecimento privado tem nas nossas cidades. Por exemplo, considerando-se as cidades da Bacia do Alto Tietê. A população é razoavelmente bem servida de água, mas o que os dados estatísticos oficiais esquecem é que temos mais de 10 metros cúbicos por segundo advindos de 12 mil poços privados que suplementam o abastecimento. Sem essa água, o sistema de abastecimento não daria conta e teríamos sérios problemas. O mesmo é para Recife, onde mais de 13 mil poços (a maioria privada) suplementam o abastecimento da Companhia Pernambucana de Saneamento – COMPESA e fazem a diferença, sobretudo em períodos de estiagem como o que ocorreu recentemente.

Adicionalmente, deve-se considerar a economia que as águas subterrâneas trazem para o usuário. Um poço bem operado em um aquífero produtivo geralmente fornece água com menores custos, comparativamente às águas das concessionárias, e muitas vezes com qualidade superior. Vide as águas minerais. Todas elas são subterrâneas!

Fonte: IHU – Unisinos

Casos de contaminação da água são mais comuns do que se conhece


Entrevista especial com Ricardo Hirata

      

“Há ainda várias contaminações que carecem de estudos, como o nitrato em grandes cidades, fertilizantes e agroquímicos nas zonas rurais e solventes clorados em áreas industriais”, destaca o diretor do Centro de Pesquisa de Águas Subterrâneas.

 
 

A grave crise de abastecimento de água que vem assolando aregião metropolitana de São Paulo chamou a atenção do País para um problema que vinha sendo anunciado há muito tempo. A crescente demanda hídrica, seja para o fornecimento de eletricidade, seja para o consumo ou para a produção industrial, aumentou a níveis muito superiores do que as alternativas tradicionais são capazes de suprir.

Falar em desertificação talvez seja um exagero. No entanto, o fato obrigou governos e especialistas a buscarem alternativas para o abastecimento, e uma delas é o uso de águas subterrâneas. Para o diretor do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas – CepasRicardo Hirata, enquanto países da Europa e da América do Norte são fortemente dependentes das águas subterrâneas, no Brasil seu uso ainda é tímido frente à potencialidade de aproveitamento.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-LineHirata defende que o uso da água subterrânea de forma mais ampla e integrada aos demais recursos hídricos é uma solução que vem chamando atenção do mundo inteiro. “Isso é particularmente verdade quando analisamos que as cidades que são abastecidas por mais de um recurso de forma integrada e inteligente são mais resilientes a problemas de longos períodos de estiagens, como os observados hoje em São Paulo”, destaca.

No entanto, esta alternativa deve ser bem estudada e medidas de suporte devem ser tomadas para permitir sua viabilidade. Isto porque, ainda que institutos de pesquisas como o próprio Cepas analisem a qualidade destas águas subterrâneas, Hirata reconhece: há muito menos casos de contaminação conhecidos do que a realidade apresenta. “Há ainda várias contaminações que carecem de estudos, como o nitrato em grandes cidades, fertilizantes e agroquímicos nas zonas rurais e solventes clorados em áreas industriais”, destaca o diretor.

O nitrato é um contaminante pouco tóxico, mas muito insidioso nas águas subterrâneas. É possível afirmar que quase todas as cidades do país sofrem em algum grau desse problema, advindo de vazamento da rede pública de esgoto ou da sua ausência, quando a população faz uso de fossas negras. O grande problema é que em áreas onde há algum monitoramento da qualidade das águas subterrâneas, vê-se que as concentrações estão aumentando persistentemente. Resolver esse problema que atinge áreas tão grandes é difícil e caro.

Alternativas de tratamento da água também são caras, e em algumas cidades, como Natal (RN), a solução tem sido de mesclar as águas contaminadas com águas de outras fontes, sem nitrato.

Foto: Cecília Bastos/Jornal da USP

Ricardo Hirata é geólogo formado pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, com mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo – USPe pós-doutorado na Universidade de Waterloo, no Canadá. Atualmente é professor do Instituto de Geociências da USP e Diretor do Cepas.

Hirata atua ainda como consultor da Unesco e de diversas outras organizações sobre o tema hídrico.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Com a crise de abastecimento em São Paulo, fala-se em possíveis riscos de desertificação, como de extermínio das reservas hídricas existentes no subsolo. Esse risco existe de fato? Em que proporção, no atual momento?

Ricardo Hirata – É um exagero pensar que temos risco de desertificação de parte do Estado de São Paulo. A crise da água é muito mais um descompasso entre a produção da água e a demanda. Ou seja, as concessionárias públicas, sobretudo a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – SABESP, não se prepararam adequadamente para eventos climáticos dessa natureza, embora os hidrólogos e outros especialistas tenham previsto que eles poderiam ocorrer. A desertificação existe em outras áreas, mas não há riscos na Região Metropolitana de São Paulo.

IHU On-Line – A partir da sua experiência de trabalho em outros países, é possível fazer comparações entre os recursos hídricos e as águas subterrâneas brasileiras com a de outros locais do mundo, tanto em relação ao atual quadro das águas subterrâneas quanto às políticas públicas desenvolvidas para garantir a qualidade dos recursos hídricos?

Ricardo Hirata – Muitos países da Europa e da América do Norte são fortemente dependentes das águas subterrâneas, assim como na Ásia, onde há milhões de poços fornecendo água para a agricultura e para as cidades. No Brasil o uso ainda é pequeno (frente à potencialidade), mas estima-se que 53% dos municípios se abastecem total ou parcialmente do recurso subterrâneo. O uso privado, geralmente complementar à rede pública, faz o diferencial da água subterrânea, embora não apareçam nas estatísticas. Há centenas de milhares de poços pelo Brasil participando da economia e fornecendo água de boa qualidade para os usuários, e em alguns lugares sendo a única alternativa econômica.

 

“Muitos países da Europa e da América do Norte são fortemente dependentes das águas subterrâneas, assim como na Ásia”

Mas o mundo tem acordado para o uso da água subterrânea de forma mais ampla e mais integrada aos demais recursos disponíveis para o abastecimento de uma cidade ou um empreendimento. Isso é particularmente verdade quando analisamos que as cidades que são abastecidas por mais de um recurso de forma integrada e inteligente são mais resilientes a problemas de longos períodos de estiagens, como os observados hoje em São Paulo. Assim, cidades como Madri, que se abastece de água superficial e subterrânea, sofrem menos com as secas.

 

Os países europeus e norte-americanos, com maior tradição na gestão dos recursos hídricos, possuem leis que têm funcionado de forma adequada. O Brasil está apenas iniciando esse processo. O país tem avançado muito nos últimos anos, mas ainda são as águas subterrâneas a parte mais frágil da gestão dos recursos. Como o recurso hídrico subterrâneo é de competência dos estados, há ainda diferenças significativas entre as Unidades da Federação, mas em todas elas ainda há uma grande quantidade de poços ilegais e vários problemas de contaminação de solo e aquíferos que ainda estão para ser estudados, inclusive avaliando os impactos na população e na ecologia.

IHU On-Line – Quais são as principais constatações do Centro de Pesquisa de Águas Subterrâneas – Cepas e do Instituto de Geociências da USP em relação à contaminação da água?

Ricardo Hirata – Acreditamos que o número de casos conhecidos de contaminação das águas subterrâneas e dos solos pelas agências ambientais seja imensamente menor do que os casos existentes. Há ainda várias contaminações que carecem de estudos adequados, como o nitrato em grandes cidades, fertilizantes e agroquímicos nas zonas rurais e solventes clorados em áreas industriais e, sobretudo, em aquíferos profundos fraturados. Em paralelo, ainda estamos começando a descontaminar os aquíferos, e nos faltam técnicas adequadas e adaptadas às condições climáticas e geológicas brasileiras. Ou seja, há muito que fazer, e as universidades e centros de pesquisas ainda não estão respondendo à altura das reais necessidades da sociedade.

IHU On-Line – Quais são as implicações da presença de nitrato na água a ser consumida pela população?

Ricardo Hirata – O nitrato é um contaminante pouco tóxico, mas muito insidioso nas águas subterrâneas. É possível afirmar que quase todas as cidades do país sofrem em algum grau desse problema, advindo de vazamento da rede pública de esgoto ou da sua ausência, quando a população faz uso de fossas negras. O grande problema é que em áreas onde há algum monitoramento da qualidade das águas subterrâneas, vê-se que as concentrações estão aumentando persistentemente. Resolver esse problema que atinge áreas tão grandes é difícil e caro. Alternativas de tratamento da água também são caras, e em algumas cidades, como Natal (RN), a solução tem sido mesclar as águas contaminadas com águas de outras fontes, sem nitrato.

IHU On-Line – Segundo notícias da imprensa, com base numa pesquisa da USP, aproximadamente 75% das cidades paulistas têm abastecimento de água público feito por águas de aquíferos. O senhor confirma essa informação? O que esse dado representa?

Ricardo Hirata – Sim, o estado de São Paulo é dependente das águas subterrâneas para o abastecimento público nessas proporções. Quando consideramos a população em números absolutos, vemos que 36% da população é abastecida pelas águas subterrâneas.

Adicionalmente, há dezenas de milhares de poços que suprem o usuário privado. A maioria das indústrias e grandes empreendimentos têm poços que servem ao abastecimento adicional e complementar à rede pública. É importante dizer que muitos desses poços ainda são ilegais e desconhecidos dos órgãos gestores, dificultando uma avaliação do real papel que essas águas desempenham na sociedade e na economia do estado.

Veja a Região Metropolitana de São Paulo, que tem o abastecimento público baseado em sistemas de água superficial. Por ano são perfurados mais de mil poços, fornecendo mais de 0,8 m3/s, sem nenhum investimento do poder público. Essa água está aliviando as pressões do sistema público hoje deficitário. No total, temos mais de 10 m3/s extraídos dos aquíferos. É o terceiro maior manancial de água da região, disperso entre 12 mil poços nas mãos da iniciativa privada. Se não fosse a presença desses poços no abastecimento complementar, o sistema público de água já estaria em crise há muito tempo.

IHU On-Line – O senhor concorda com especialistas, que afirmam não haver solução de curto prazo para solucionar a questão do abastecimento de água em São Paulo?

Ricardo Hirata – Todos os sistemas de abastecimento, sejam eles para fornecer água para uma casa ou uma cidade, têm riscos de um dia falhar. Cabe aos tomadores de decisão fazer com que esses riscos sejam mínimos. Em sistemas apoiados em água superficial, os riscos são avaliados estatisticamente baseados no histórico de chuvas de uma região, pois estão associados à intensidade de chuvas que alimentam os reservatórios. Claro que para serem mínimos, precisamos de investimentos para aumentar a produção e/ou reduzir a demanda.

O que houve em São Paulo é que esses riscos foram negligenciados. Estudos mostravam que havia riscos pequenos de secas dessa magnitude. Optou-se por não investir na melhora do abastecimento, em detrimento a outros investimentos de governo. O problema é ainda pior, pois faltou a esses tomadores de decisão uma avaliação correta dos prejuízos que a falta desse investimento na produção de água traria à região. Mas também faltou um plano de contingência. Ou seja, um conjunto de ações coordenadas sobre o que fazer caso determinado problema de estiagem ocorresse. Faltou pesar tudo isso e dizer à população: há um risco pequeno, podemos arriscar? Quais são as perdas? É aceitável? Isso é gestão do recurso hídrico. Hoje fomos todos surpreendidos.

“Em algumas cidades, como Natal (RN), a solução tem sido de mesclar as águas contaminadas por nitrato com águas de outras fontes”

IHU On-Line – Em que medida investimentos em saneamento básico poderiam garantir uma melhora na qualidade da água subterrânea?

Ricardo Hirata – Há uma forte correlação entre a falta de redes de esgoto ou redes antigas de esgoto e a contaminação das águas subterrâneas. Ter redes novas, feitas de tubos de plástico, e com boa manutenção é fundamental para reduzir a contaminação de nitrato em aquíferos urbanos. Aliás, recomendamos que, em qualquer novo empreendimento urbano, a rede de esgoto chegue antes da população, evitando assim a contaminação dos aquíferos e garantindo que a nova população possa inclusive fazer uso dessas águas subterrâneas. A falta de saneamento traz também outro problema de contaminação dos rios, reduzindo a oferta de água de superfície. A falta de saneamento faz com que os rios sejam perceptivamente feios, dando a ideia do “mal cuidado”, não cria o valor do cuidar, que o cidadão deve ter, além, obviamente, da redução da vida aquática, etc.

Por Patricia Fachin e Andriolli Costa