Biofábricas a pleno vapor no país


Pesquisadores desenvolvem teias sintéticas e usam sementes e folhas como biorreatores para produzir moléculas úteis no combate a doenças.

Por: Marcelo Garcia

Publicado em 31/07/2014 | Atualizado em 31/07/2014

 

                                       Biofábricas a pleno vapor no país

Plantas de soja cultivadas sob condições controladas e com alterações genéticas permitem produzir diversas biomoléculas de uso medicinal. (foto: Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia)

 

Na ficção, os lançadores de teia do Homem-aranha são um prodígio da ciência. Na vida real, porém, ainda buscamos uma forma de produzir ‘teias’ sintéticas, resistentes e flexíveis, a custo razoável. Um grupo de pesquisadores brasileiros pode ter obtido resultados importantes nesse campo: a partir do DNA de aracnídeos brasileiros, eles produziram biopolímeros que poderão ser aplicados a produtos tecnológicos no futuro.

O grupo também estuda a utilização de sementes e folhas de vegetais como biofábricas para a síntese em escala de moléculas naturais das próprias teias e de substâncias importantes no combate a doenças como Aids e câncer.

A pesquisa utilizou avançadas técnicas de biotecnologia e de engenharia genética para a obtenção de biofibras

A pesquisa, feita na unidade de Recursos Genéticos e Biotecnologia da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em Brasília, utilizou avançadas técnicas de biotecnologia e de engenharia genética para a obtenção de biofibras. Os pesquisadores analisaram o genoma de cinco aranhas brasileiras (Nephila clavipesArgiope aurantiaNephylengys cruentataParawixia bistriata e Avicularia juruensis) para identificar os genes expressos nas glândulas responsáveis pela produção e pelas características da teia.

“Trabalhamos com o Instituto Butantan na seleção e coleta das aranhas, escolhidas por se originarem de diferentes biomas – algumas da Amazônia, outras do cerrado e da mata atlântica – e pela resistência de suas fibras”, diz Elíbio Rech, geneticista da Embrapa e coordenador do estudo.

Bactérias Escherichia coli foram geneticamente modificadas para receber as sequências selecionadas e passaram a atuar, então, como biofábricas capazes de sintetizar os polímeros desejados. “As bactérias produzem a proteína em maior quantidade que as aranhas, são biorreatores muito usados na produção de diversas substâncias sintéticas”, conta Rech. “Após a purificação do material produzido, um processo também desenvolvido por nós simula a ação da espirineta, aparelho das aranhas que organiza as proteínas em fibras.”

 

                                      Fios sintéticos
Fios sintéticos semelhantes aos das teias de aranhas produzidos por bactérias modificadas pelo grupo de pesquisa da Embrapa. (foto: Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia)

 

Após nove anos de pesquisas, o grupo aprendeu muito sobre a complexa organização das proteínas das teias de aranha em escala nanométrica que confere as características únicas ao material. O conhecimento acumulado permite que a equipe produza, por exemplo, fibras com diversos graus de resistência e flexibilidade, dependendo das perspectivas de aplicação. A expectativa é que, no futuro, elas possam ser utilizadas na produção de materiais como coletes à prova de bala mais leves, fios biodegradáveis para medicina, para-choques mais resistentes e flexíveis – e, quem sabe, lançadores que permitam a algum maluco corajoso andar dependurado pela cidade!
 

Sementes do futuro 

Esse futuro, no entanto, ainda não chegou e a pesquisa tem muitos desafios pela frente. Segundo Rech, o próximo passo é desenvolver formas econômicas, eficientes e seguras para produzir biofibras em larga escala – em especial porque o uso de bactérias modificadas ainda é muito caro. Uma possibilidade para superar isso é criar ‘biofábricas’ alternativas: o grupo de Rech estuda, por exemplo, o emprego de outras células modificadas para a produção de biomoléculas, como as das sementes da soja.

A intenção do grupo da Embrapa é desenvolver, a partir de plantas já domesticadas, uma plataforma tecnológica diversificada para fabricar uma variedade maior de moléculas de interesse industrial e farmacêutico

Hoje, diversas substâncias, como a insulina, são sintetizadas por processos tradicionais, que usam as bactérias ou células animais modificadas em cultura. Mas o geneticista lembra que o processo apresenta limitações, como o tamanho máximo e a quantidade restrita das moléculas produzidas.

A intenção do grupo da Embrapa é desenvolver, a partir de plantas já domesticadas, uma plataforma tecnológica diversificada para fabricar uma variedade maior de moléculas de interesse industrial e farmacêutico, com baixo custo, maior eficiência e de forma sustentável.

O processo estudado em vegetais é similar ao empregado com as bactérias: as células vegetais são geneticamente alteradas para receber os genes específicos e passam a atuar como biorreatores para produção da substância de interesse. A opção pela soja se deu pelo domínio já existente no país sobre a leguminosa. “No mundo todo há grupos trabalhando com outras possibilidades, como arroz, cevada e milho”, explica Rech.
 

Importância médica 

Na Embrapa, as sementes de soja vêm sendo usadas para a produção de diversas substâncias de interesse médico, como a cianovirina, proteína isolada em algas que pode inibir a replicação do HIV, e antígenos como o NY-ES01 e o Hormad1, importantes no diagnóstico de câncer – trabalhos em parceria com grandes centros internacionais, como Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, de Nova York. O laboratório da Embrapa também tem testado o uso de folhas de tabaco como biorreatores. 

“As sementes são transgênicos estáveis, se perpetuam em gerações, e têm as vantagens de serem fáceis de estocar e de conterem milhões de células para servir de biofábricas”, avalia Rech. “Já as folhas são temporárias: produzem proteínas durante um período de até sete dias.”

O geneticista destaca que a intenção agora é levar as pesquisas para fora do laboratório – e para isso a parceria com o setor privado é fundamental. “Mostramos que o conceito funciona, mas precisamos aliar o trabalho dos biólogos moleculares com o dos engenheiros, atrair a iniciativa privada para escalonar o processo e levá-lo adiante, transformar recurso tecnológico em inovação de fato, o que não é simples no Brasil”, pontua. “Essa é uma demanda da sociedade, uma área potencialmente lucrativa que pode atrair o interesse das empresas para aplicar, na prática, nossos resultados.”
 

Marcelo Garcia 
Ciência Hoje/ RJ

Texto originalmente publicado na CH 316 (julho de 2014). Clique aqui para acessar uma versão parcial da revista.