Crise hídrica: em SP, o abastecimento por um fio


                   

Dados técnicos revelam: “volume morto” da Cantareira pode acabar em dias. Governo Alckmin tenta manobras cada vez mais arriscadas, procurando liquidar eleições antes que problema exploda. 

Na última sexta-feira a saga da crise hídrica passou por mais um momento relevante e, dessa vez, de cunho institucional: diante da recusa da Sabesp em cumprir um acordo firmado no âmbito do comitê anticrise a respeito da redução das vazões de saída de água do Sistema Cantareira, a Agência Nacional de Águas (ANA), órgão regulador federal, optou por sair do grupo, solicitando ainda o seu cancelamento. É difícil, ainda, saber com clareza quais serão as consequências desse acontecimento, mas é possível conjecturar que, a partir de agora, a Sabesp poderá ter maior autonomia na determinação do quanto deverá ser retirado das represas. Isso poderia significar, na prática, a aceleração do volume de água retirado, caso levemos em conta o raciocínio eleitoral de se buscar evitar ao máximo a realização de um cenário de escassez. De fato, verificamos um crescimento de quase 20% da quantidade de água retirada nesse fim de semana (as médias passaram de 18 para aproximadamente 21,5 m³ por segundo). Contudo, apostar na continuidade dessa tendência não parece ser uma obviedade. De todo modo, o caso nos dá indícios para pensarmos sobre a eventual inadequação de modelos de governança como o comitê anticrise para lidar com situações como essa, especialmente em um contexto em que o componente eleitoral é vital para se explicar decisões que foram tomadas ao longo do tempo.

Na verdade, a Sabesp pode estar lidando com uma imensa “sinuca de bico” na gestão operacional da crise: a extração do volume morto do Atibainha já se encontra em seus últimos momentos. Resta pouco mais de 1 metro, ou cerca de 15 bilhões de litros de água para serem extraídos. Salvo a existência de precipitações de mais de 100 mm nos próximos dias – o que é extremamente improvável -, será inevitável que, ainda antes do primeiro turno o Governo de São Paulo seja obrigado a voltar a buscar captar o volume morto da represa Jaguari-Jacareí. Como sabemos, há cerca de 30 bilhões de litros da primeira cota dessa “reserva técnica” ainda por serem retirados, além de 106 bilhões de litros de uma segunda cota. Para quem acompanha diariamente os dados de transparência da Sabesp e da ANA, foi possível verificar que, desde que começou a extração do volume morto do Atibainha, a empresa pública paulista passou a preservar ao máximo a represa Jaguari-Jacareí, em geral adotando a estratégia de manter seu volume remanescente estável (equalizando a vazão transferida para a represa Cachoeira com o total que entrava, naturalmente, por dia, reduzida da vazão transferida a jusante para o PCJ, por determinação da outorga).

No entanto, uma notícia publicada pelo Estadão neste sábado – a qual teve pouquíssima repercussão – faz acender o alerta vermelho para quem está acompanhando a crise. De acordo com a matéria, a companhia de abastecimento de São Paulo estaria tendo dificuldades para retirar essa pequena parte que resta da primeira cota do volume morto, aparentemente em razão da insuficiência das vazões de entrada. Em outras palavras, aquele improviso montado para retirar o volume morto e lançado pomposamente por Alckmin (em um dos atos políticos mais surreais da história republicana brasileira) não é mais capaz de cumprir a sua função. A cota da represa alcançou um nível tão baixo que as bombas não mais conseguem alcançá-la para captar a água com eficiência. A Sabesp, então, tem passado a fazer as dragagens de terra e os canais de interligação para tentar levar a água que resta da represa para aquela região da captação – algumas dessas “artes” puderam ser vistas nos vídeos do Du Dias compartilhados na semana passada.

A situação é desesperadora porque será absolutamente necessário retirar esses 30 bilhões de litros restantes daqui a menos de 15 dias, e neste momento ainda não sabemos se a SABESP dará conta de fazê-lo. Ou seja, no mínimo 10 milhões de pessoas poderão enfrentar um racionamento no curto prazo e poderão vir a ficar sabendo disso com pouquíssima antecedência. É por isso que causa espanto que a notícia do Estadão tenha tido tão pouca repercussão.

Nesta matéria do G1 de sábado, por sinal, ficamos sabendo que só nesta semana é que a Sabesp passou a realizar as obras para buscar extrair o segundo volume morto do Jaguari-Jacareí (as quais demandarão que um nível muito mais profundo da represa possa ser captado, haja vista que hoje ela se encontra pouco abaixo da cota 817 e, caso toda essa reserva seja extraída, ela chegaria à cota 806). A reportagem do G1, por sinal, é interessante por se arriscar um pouco mais – do ponto de vista da grande mídia – na apresentação de imagens do estado atual (dramático) do reservatório.

Estadão, na matéria supracitada, entrevista o professor Antonio Carlos Zuffo, da Unicamp, o qual explica que a parcela d’água correspondente ao segundo volume morto se encontra, é claro, não só em um nível inferior, mas em uma parte mais baixa do reservatório – uma desvantagem topográfica sensível, visto que essa condição demanda que dragagens sejam feitas continuamente (de outra forma, em razão da diferença de altura entre as porções de água e os canais, tende a ocorrer a sedimentação da terra). Em síntese, será particularmente difícil extrair essa segunda cota do volume morto – isso é claro, se conseguirem, realmente, retirar a primeira cota.

Estamos chegando, então, a uma espécie de “hora da verdade” na crise hídrica, a qual coincide, curiosamente ou não, com as eleições para o governo do estado de São Paulo. Parece que nos aproximamos, lamentavelmente, do momento em que nem mais os improvisos de engenharia poderão dar conta de contornar o cenário trágico da indisponibilidade hídrica para milhões de pessoas, nem mais serão eles capazes de escamotear o imenso estelionato eleitoral em curso. A não ser é claro, que Alckmin seja reeleito já no primeiro turno. De outra forma, contudo, talvez até possamos ser testemunhas da falência do Cantareira antes de 26 de outubro. Que a água vai acabar e que o estrago (à cidadania, ao meio ambiente, à produção industrial, aos serviços, etc) já está feito, parece claro – não está evidente, contudo, o grau de responsabilidade do governo Alckmin, tão brilhantemente blindado pelos meios de comunicação. A questão é quando ocorrerá, qual será a reação das pessoas e como poderemos, quem sabe, superar esse quadro? E, a partir da hora em que todo mundo ficar sem água, será que a população realmente continuará a acreditar no discurso de que é tudo culpa de São Pedro? Uma hora, a paciência acaba.

Fonte: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=36819

Laísa Mangelli