A Amazônia já passou por vários fluxos migratórios. O de maior expressão no passado foi o dos nordestinos, fugindo da seca em busca de condições de sobrevivência. Quando aqui chegaram encontraram uma floresta hostil com todas as endemias que lhe é natural e ainda sem a tecnologia da motosserra, para amenizar a labuta das derrubadas e queimas para preparo de áreas de cultivo. Adequaram-se ao novo ecossistema, manejando foices e machados, com todas as perdas e ganhos que a história nos registra. A outra parte da população nordestina se deslocou para o sudeste, mais especificamente para São Paulo, responsável em grande parte, pela mão-de-obra protagonista do crescimento da maior metrópole brasileira.
Estamos hoje, 70 anos mais tarde, prestes a presenciar na Amazônia um novo êxodo, desta vez da população do sudeste do Brasil, que se soma à nordestina, fugindo da maior crise de água que nossa história pode registrar. É preocupante e qual será a dimensão do impacto que esse fluxo migratório poderá provocar na região não se pode prever. Ironicamente constituído por um grande contingente de desempregados e ao mesmo tempo por numerosas empresas, se deslocando em busca de condições de água para produzir, tanto na indústria como na agropecuária.
A FIESP anuncia que cerca de 60.000 empresas estão sendo prejudicadas pela crise de água em São Paulo e que se somente 5% destas fecharem as portas, já se vislumbra a dimensão da calamidade. Afirma que algumas empresas se anteciparam e que estão deslocando suas atividades para a Zona Franca de Manaus. No avanço sobre as terras há rumores de grilagem até no Amapá, estado que dispõe de áreas de cerrado e que facilita o avanço da fronteira com as pastagens e culturas anuais.
Nas discussões acirradas sobre os efeitos do aquecimento global, as atenções tem se voltado mais para os efeitos da elevação do nível dos oceanos promovendo inundações nas regiões litorâneas, que pode ser uma reação de mais longo prazo, mas que provoca impacto na opinião pública. Pouca atenção tem sido dada aos efeitos do ar aquecido sobre as lâminas d`água, áreas úmidas e no ressecamento dos solos agricultáveis, principalmente em ecossistemas frágeis. A elevação de 0.5 C° na temperatura média do ar pode ter um grande impacto na velocidade de retirada de vapor d`água desses corpos úmidos. Com a retirada da vegetação das nascentes e de matas ciliares, reduz-se a evapotranspiração (evaporação do solo + transpiração das plantas) e a capacidade de retenção de água (efeito esponja) da interação solo/vegetação. Neste cenário se configuram todas as condições favoráveis a uma crise de déficit hídrico.
É preocupante a Amazônia receber essa nova leva de brasileiros sem a infraestrutura necessária, tanto no campo quanto nas cidades. A região carece de zoneamentos ecológico-econômicos e nos poucos existentes não são colocadas em prática as suas recomendações. As áreas de proteção permanente e as pertencentes a populações tradicionais ainda não demarcadas, a dimensão continental da região com precária fiscalização dos delitos ambientais, podem facilitar as ações predatórias e elevar o desmatamento.
A retirada da floresta para substituição com pastagens ou culturas anuais pode agravar a situação hídrica. Retira-se a floresta que tem a evapotranspiração média diária de 7 mm/dia e se substitui por pastagens ou culturas anuais que tem evapotranspiração média de 3-4 mm/dia. Não se tem hoje definido qual o percentual de desmatamento que a floresta amazônica pode suportar, sem que seja quebrado seu equilíbrio hidrológico. Isto é, com o desmatamento progressivo, não se sabe quando a floresta deixará de reciclar água para formação de chuvas suficientes ao ciclo das culturas anuais ou pastagens. Poderá se instalar um circulo vicioso: pressão migratória, mais desmatamento, mais déficit hídrico. Fora o fogo que é o maior aliado da seca.
A crise hídrica na região sudeste deveria servir de indicador para as providencias necessárias e imperiosas. Desmatamento zero para a floresta amazônica e reposição florestal de nascentes e de matas ciliares na Mata Atlântica. A área ambiental, tanto pública como da iniciativa privada, tem pela frente um colossal desafio, para evitar que a crise hídrica do sudeste se transforme no epicentro de uma calamidade que, lamentavelmente, pode no futuro se irradiar para todo o Brasil.
Raimundo Nonato Brabo Alves
Pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental
Publicado no Portal EcoDebate, 19/02/2015