Especialista em poluição diz que São Paulo está mudando para melhor


O pesquisador Paulo Saldiva, da USP e de Harvard, afirma que incentivar o uso de bicicletas beneficia todo mundo, até mesmo quem não pedala, e lamenta que o debate sobre o assunto esteja tão contaminado pela política partidária

 

Paulo Saldiva é um dos maiores especialistas do mundo em poluição e em seus efeitos à saúde. Pesquisador da USP e da Universidade Harvard, ele se locomove tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos de bicicleta. Lá, ele é muito respeitado no trânsito. Aqui, sempre foi um horror, mas, segundo ele, está melhorando. Nesta entrevista, ele fala sobre bicicletas, poluição, saúde pública e elogia as novas políticas de mobilidade na cidade de São Paulo.

Bicicleta é bom para a saúde? 
Parece que sim. Afinal, eu estou com 61 anos e comparo meu estado de saúde com o dos meus pares na medicina, que andam nos seus Audis, nas suas Mercedes. Minha conclusão é que ou o Audi faz muito mal ou a bicicleta realmente faz bem. Mas, falando sério, se você tiver um medidor de frequência cardíaca, fica fácil perceber os benefícios fisiológicos imediatos do ciclismo para o coração. Além disso, a bicicleta fortalece os grupos musculares das pernas e da bacia, que são muito importantes para você ter autonomia quando ficar mais velho. É essa musculatura que permite ao idoso caminhar sem tropeçar. 

E isso vai fazê-lo viver mais? 
Sim, tem vários estudos médicos mostrando que o ciclismo, mesmo não profissional, aquele em que o indivíduo anda uma hora por dia, gera um aumento de expectativa de vida considerável. E a saúde não melhora só no aspecto cardiovascular e ortopédico, mas principalmente no mental. Quando Londres passou a cobrar pedágio de carros para circular no centro da cidade, um dos indicadores de saúde que tiveram mudanças mais robustas foram os de depressão. Porque o carro coloca você numa bolha de isolamento. As pessoas blindam o carro, escurecem o vidro, controlam o clima, escolhem o som, usam o GPS, mudam o cheiro com sachê – falta só inventarem o supositório veicular pra que o carro preencha todos os nossos orifícios. E isso desacopla o sujeito do convívio das pessoas.

Como especialista, você acha que as novas políticas de mobilidade em São Paulo, que buscam incentivar as bicicletas e a ida às ruas, terão algum efeito para a saúde pública?
Sem dúvida. Todos os estudos realizados no mundo indicam que o estímulo à mobilidade ativa têm um impacto positivo para a saúde, expressos em termos de redução das taxas de obesidade e melhoria da qualidade de vida. Além disso, a redução de carros nas ruas melhoraria o clima e reduziria a poluição, que é minha especialidade. Hoje, numa cidade como São Paulo, quando a umidade do ar baixa 30%, o risco de um idoso morrer de enfarte aumenta quatro vezes, por causa da poluição. Os médicos legistas não conseguem mais saber, na autópsia, se uma pessoa era fumante ou não – todos nós temos pulmão de fumante. Os altos níveis de ruído gerados por essa nossa opção pelo carro pioram a qualidade de sono e aumentam a mortalidade por pressão arterial e cardiovascular, além de estarem ligados a problemas de aprendizado nas crianças. Uma criança hoje não anda, não pedala, não joga bola – só se for no videogame. A violência urbana e as condições de tráfego que a cidade colocou fazem com que ela passe pelo menos uma hora e meia sentada num banco de carro entre ir e voltar da escola. Isso causa uma explosão da obesidade infantil e faz com que os custos de saúde pública disparem.

E como ciclista, como você avalia as novidades? São Paulo está mudando?
Tenho certeza que sim, e para melhor. Como ciclista há mais de 40 anos, sinto-me hoje muito mais seguro em fazer os meus deslocamentos, e isso acaba beneficiando todo mundo. Infelizmente, o debate atual sobre mobilidade e saúde na cidade está muito pobre, e muito contaminado pelo quadro macropolítico do Brasil.
 
Parece que as pessoas se acostumaram com o fato de que as cidades são feitas para os carros, e não para as pessoas…
Pois é, até as calçadas são projetadas para o carro não sofrer tranco no caminho para a garagem. O tempo da faixa de pedestre é controlado de forma que o fluxo dos carros seja maximizado. Eu disse ao antigo diretor da CET (Companhia de Engenharia do Tráfego) que eles podem mudar o nome para Companhia de Extermínio de Transeuntes. Todo ano, eu vou pesquisar na escola de saúde pública da Harvard, nos Estados Unidos. Lá é o contrário. Se eu quiser ir de carro, vou ter que pagar caro, porque Harvard não considera sua obrigação oferecer estacionamento. E o que é paradoxal nessa opção brasileira pelo carro é que, mesmo com todo esse esforço, com esse custo humano, a gente não ganhou mobilidade. Eu chego mais rápido à USP de bicicleta do que se eu sair de casa de carro e empato com o metrô. 

 

Bruno Fernandes

O professor Paulo Saldiva, um dos maiores especialistas em poluição do mundo


Você sempre andou de bicicleta? 
Sempre, desde moleque. Quando entrei na faculdade, eu não tinha nem idade nem grana pra ter carro, então eu ia para a USP de bicicleta. Era meio folclórico. Estávamos nos anos 70 e quem andava de bicicleta era pobre. Quando comecei a dar aulas, uma secretária me falou: "Professor, não venha mais de bicicleta a partir de agora". Era um conselho bem-intencionado, que revelava a visão dela do que era ser um professor. Mesmo nas instituições de saúde, a visão da bicicleta ainda é muito caricata. Quando assumi a direção do Instituto do Coração, cheguei à porta do estacionamento com a bicicleta e me disseram que eu não podia parar ali. Num hospital especializado em coração, era proibido fazer exercício físico que promove a saúde do coração. 

Quem é que paga o preço da opção pelo carro?
Nós todos. Pagamos vivendo menos, ficando mais doentes, perdendo tempo. Sem tempo, as pessoas se educam menos, e isso também tem um efeito na economia. Pagamos com 4 mil mortes a mais por ano apenas em São Paulo, por causa da poluição, mais 1.500 mortes no trânsito. Pagamos com três anos a menos de expectativa de vida por causa da baixa qualidade do ar, que é a situação de São Paulo. Hoje a poluição em São Paulo causa um impacto à saúde pública maior do que o cigarro, e a gente bate pesado no fumo e nem fala do sistema de mobilidade urbana. A verdade é que nós já pagamos um "pedágio urbano": pagamos com nossa vida, com nosso tempo, com combustível gasto para ir para lugar nenhum, com o estacionamento na avenida Paulista que custa 50 reais. Olha que patriótico: o brasileiro dá a vida pela economia. Literalmente. E uns pagam mais do que outros. O cara que mora na Zona Leste de São Paulo e trabalha na Zona Sul pega o trem e gasta três horas para ir e três horas para voltar. Num dia de 24 horas, se ele trabalhar oito, sobram só dez para dormir, conversar, comer, pensar. É esse cara que paga a maior parte do preço. É ele que vai passar mais tempo respirando a poluição e que vai ter a saúde mais afetada. 

E qual a solução? 
Priorizar as pessoas. Por isso que eu digo que temos que fazer a sociedade protetora dos seres humanos. Para fazer uma grande obra, como uma estação, é preciso fazer um monte de estudo de impacto ambiental. Mas, para licenciar 2 mil carros por dia, que têm um impacto muito maior, não precisa de estudo nenhum. Isso mostra como esse sistema maluco se apoderou da nossa cultura. A gente age como se o controle da poluição fosse incompatível com a riqueza, mas, se você olhar os dados, vai perceber que poluição é problema de país pobre, não de país rico. Aqui a gente não tem cidadania suficiente pra exigir processos mais limpos. Por isso essas montadoras estão migrando para países onde as leis ambientais são mais frouxas e eles trabalham em Brasília pra que continuem frouxas. Nosso padrão de qualidade do ar é dos anos 1980 e não muda há 30 anos porque há uma pressão imensa da indústria e dos políticos para que não mude.

Eu deveria ganhar dinheiro para andar de bicicleta, já que isso beneficia a todos?
Deveria. Deveria ter um incentivo. Se eu fosse de uma empresa, eu daria bicicleta para os funcionários porque a empresa ganharia com isso. Ela iria gastar muito menos com seguro médico, teria menos faltas e economizaria com espaço de estacionamento. A universidade deveria dar incentivos também, como acontece nos Estados Unidos e na Europa. 

Seria um jeito de criar incentivo financeiro para as pessoas fazerem o que é melhor para elas. 
Sim. Apesar de que andar de bicicleta ou a pé já é muito mais barato do que qualquer outra opção. Uma pessoa que pega condução todo dia gasta mais de 200 reais por mês, fora o tempo que perde, que vale ainda mais dinheiro. O ciclista economiza muito em saúde. E em academia, claro. Além de escapar daquela coisa deprimente de academia, que só tem dois tipos de pessoa: o que não precisa e o que não adianta. O que não adianta chega lá, olha para o corpo do que não precisa, desanima e desiste. Andar de bicicleta não é assim: qualquer um pode. Adianta sempre.

(Esta entrevista, feita originalmente para a revista Vida Simples, foi revista e atualizada em 2015.)

Fonte: Planeta Sustentável