Uma interpretação do Código Florestal pode anistiar quem desmatou o Cerrado


Se essa interpretação valer, a maioria dos fazendeiros estará livre de qualquer obrigação de recuperar as áreas de reserva legal do Cerrado, bioma fundamental para garantir a água e o clima do país

Canavial no interior de São Paulo. Sobrou pouco do Cerrado original (Foto: José Reynaldo da Fonseca/ Wikimedia Commons)

Uma interpretação jurídica do Código Florestal pode anistiar quase toda a devastação que aconteceu no Cerrado brasileiro. Se essa interpretação valer, a maioria dos fazendeiros estará liberada de qualquer obrigação de recuperar as áreas de reserva legal do Cerrado.O bioma, um dos mais maltratados do país, fundamental para manutenção do clima e reabastecimento dos rios e aquíferos, pode ter sua regeneração ameaçada.

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A polêmica envolve a segunda fase do maior esforço nacional para regularizar a situação ambiental das propriedades rurais. Na primeira fase da empreitada, os fazendeiros preenchem o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Ali declaram as medidas e a localização de seu terreno. Indicam detalhes como rios e florestas. E apontam como estão as áreas de preservação permanente (como margens de rios ou topos de morro) e a reserva legal (parte da área que precisa guardar vegetação nativa). Depois que o CAR é aprovado pela autoridade responsável (geralmente o órgão estadual de meio ambiente), o fazendeiro parte para uma regularização do terreno. Se ele tiver desmatado mais do que podia, precisa recuperar ou comprar créditos de quem tem vegetação sobrando. É o Programa de Regularização Ambiental (PRA). O PRA segue regras que são estabelecidas para cada estado em leis próprias. Os estados têm liberdade para fazer essas leis, desde que não entre em conflito com a lei nacional, o Código Florestal, aprovado em 2012.

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A disputa gira em torno dessa regulamentação estadual do PRA, que determina entre outras coisas o que deve ser restaurado nas áreas de Cerrado. A obrigação de recuperar depende do que dizia a lei quando foi feito o desmatamento. Quem tirou a vegetação original antes da obrigação de conservar não está em desacordo com a lei. Segundo o Código Florestal de 2012, “os proprietários ou possuidores de imóveis rurais que realizaram supressão de vegetação nativa respeitando os percentuais de Reserva Legal previstos pela legislação em vigor à época em que ocorreu a supressão são dispensados de promover a recomposição, compensação ou regeneração para os percentuais exigidos nesta Lei”.

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O primeiro Código Florestal do Brasil foi aprovado em 1934 em pleno ciclo do café no Sudeste do país. A preocupação na época era evitar a falta de lenha. O Código obrigava os proprietários a manter 25% da área dos imóveis com a cobertura de mata original. O problema é entender o significado semântico da palavra “mata” nos anos 1930.

O Código de 1934 foi complementado pelo de 1965 promulgado pelo presidente Castello Branco. Essa nova lei não fala de reservas legais, mas cria a figura das áreas de preservação permanente, que devem ser resguardadas. Diz a lei: “As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País”. Ou seja, a lei inclui não só florestas, mas outras formas de vegetação. A lei diz que será considerada área de preservação permanente a vegetação ao longo de rios, ao redor de lagoas, no topo de morros, nas encostas, nas restingas e em altitude acima de 1.800 metros. Se o termo “demais formas de vegetação” incluir o Cerrado, a lei de 1965 passa a impedir o desmatamento desse bioma nas áreas de preservação permanente.

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A primeira menção explícita ao Cerrado em algum Código Florestal nacional é de 1989. Ela apareceu na Lei 7.803 que foi inserida no Código Florestal antigo de 1965. A lei de 1989, assinada pelo presidente José Sarney, declara a necessidade de preservar a reserva legal de imóveis rurais em area de Cerrado. Diz: “Aplica-se às áreas de cerrado a reserva legal de 20% para todos os efeitos de lei”. Diante disso, alguns argumentam que quem desmatou o Cerrado até 1989 estava de acordo com a lei vigente e não precisa recuperar nada agora.

Segundo o advogado Paulo Daetwyler Junqueira, do departamento jurídico da Sociedade Rural Brasileira, o termo “mata” do Código de 1934 excluiria o Cerrado. “Logo, no nosso entendimento, a área de Cerrado poderia sim ser utilizada.” Para ele, isso isenta quem desmatou antes de 1989 de qualquer obrigação. “Para nós, quem usou área de Cerrado antes de 1989 não precisa recompô-la”, diz.

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O principal terreno da disputa legal é o estado de São Paulo. Não que São Paulo seja pioneiro na regulamentação do PRA. Outros estados como Mato Grosso, Pará, Rondônia, Goiás e Bahia já fizeram suas leis. Mas a decisão de São Paulo têm consequências nacionais. Primeiro, ela é usada para balizar a legislação em outros estados. Além disso, São Paulo importa porque pode alimentar o mercado de créditos ambientais. “São Paulo tem o agronegócio mais rico do país”, diz Roberto Resende, da Iniciativa Verde. “Se os produtores paulistas tiverem demanda de compensação em áreas de Cerrado, eles podem alimentar o mercado de créditos no Cerrado de outros estados como Bahia e Goiás. Podem ajudar a incentivar e financiar as áreas de Cerrado no resto do Brasil.”

No caso de São Paulo, há leis estaduais complementam o Código Florestal nacional e podem aumentar a proteção do Cerrado antes de 1989. A referência mais antiga é a lei estadual de 1927. É anterior ao Código de 1934. Ela diz que: “Os proprietarios dos terrenos de área superior a cem hectares em que existam mattas, são obrigados a reservar dez por cento da área total em florestas, salvo quando se tratar de mattas homogeneas, que se refaçam, ou se regenerem por brotação espontaneas, as quaes ficam insentas desta condição”. A lei fala que a regra dos 10% são aplicáveis a “mattas”, ou “matas” na grafia atual. O proprietário é obrigado a reservar área em “floresta”. Não está claro se essa descrição de “floresta” e “mata” inclui algum tipo de Cerrado.

A primeira menção direta ao Cerrado na lei estadual de São Paulo é no Decreto 49.141 de 1967. Ele cria regras para a exploração dependendo do tipo de Cerrado. Esse decreto exige a preservação de 20% do que é considerado cerradão. Esse cerradão é descrito como  “a formação vegetal constituída de três andares distintos”. O primeiro andar tem espécies rasteiras, o segundo tem arbustos e pequenas árvores. O terceiro andar é a floresta com “árvores geralmente de 5 a 6 até 18 a 20 metros de altura, de troncos menos tortuosos, com predominância de madeiras duras”. Os outros tipos de Cerrado, com predominância de vegetação rasteira ou arbustiva, não contam com a mesma proteção legal.

Vários ambientalistas se amparam nessa na lei de 1927 e no decreto de 1967 para defender que o Cerrado em São Paulo já estava protegido antes de 1989. E que quem desmatou antes disso precisa recompor. “Setores atrasados do país estão dizendo que só se aplica a proteção desde 1989”, diz o advogado e ambientalista Fábio Feldmann. “Mas São Paulo foi o primeiro estado a criar a reserva legal, de 10%, em 1827.”

O problema é que a lei de 1927 fala em “mata” e o decreto de 1965 só protege o cerradão. O resultado prático é que mesmo com a proteção legal do Cerrado florestal, o cerradão, vai ser difícil recuperar o que foi devastado. Provar o que era cerradão e não outro tipo de cerrado antes de ter sido destruído há várias décadas, dentro de terras privadas, é uma tarefa bem complicada. O mais provável é que os fazendeiros que desmataram antes de 1989 digam que cortaram áreas dominadas por gramíneas ou arbustos para escapar de qualquer obrigação agora. Por falta de informação sincera ou má-fé? Quem vai saber? A própria Sociedade Rural Brasileira admite que é difícil saber o tipo de fisionomia de cerrado que existia na fazenda. “Em muitos casos chegaremos a uma situação onde não será possível lembrar qual era a vegetação antes, se cerradão ou campo limpo”, diz Francisco Godoy Bueno, vice-presidente da Sociedade. “Na dúvida, não poderemos condenar o produtor rural. Não se pode assumir que ele cometeu um crime ambiental”, afirma. “Um dos princípios do Código Florestal é procurar manter as áreas produtivas como tais. E não transformar áreas antropizadas em áreas de preservação.”

Mesmo que a interpretação do Código Florestal e das leis estaduais só considere o Cerrado protegido a partir de 1989, há muito desmatamento feito depois disso para recuperar. Segundo dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento dos Biomas Brasileiros por Satélite o Cerrado paulista perdeu 72.108 quilômetros quadrados até 2011. Isso significa que 89% da área total do bioma no estado foi devastada. A mesma pesquisa mostra que as áreas ocupadas por lavouras temporárias e permanentes aumentaram uma vez e meia entre 1975 e 2006. Essas áreas foram abertas em cima da vegetação nativa já depois do código de 1989 em vigor.

Aí o problema é quem faz a interpretação do Cadastro Ambiental Rural para determinar se o produtor precisa recuperar algo. Há possibilidade de deixar quem desmatou escapar impune. A primeira tentativa de o estado de São Paulo regulamentar a regularização ambiental (o PRA), a Lei 15.684 de 2015 não foi bem-sucedida. A lei abria várias brechas para anistiar os desmatadores. Foi suspensa pela Justiça depois que o Ministério Público de São Paulo entrou com uma ação de inconstitucionalidade. O MP alegou que a lei estadual era mais permissiva do que o Código Florestal nacional, o que vai contra a Constitutição.

Uma coalização de ONGs lançou uma campanha, o Movimento Mais Florestas PRA São Paulo, na tentativa de garantir uma regulamentação do PRA que não perdoe todos que desmataram o Cerrado ilegalmente – ou em situação legal ambígua. A recuperação do Cerrado é importante para o estado e para o país. O Cerrado paulista é a área de recarga da maior parte do Aquífero Guarani. Do Cerrado dependem as nascentes que abastecem regiões de cidades como Bauru, Araçatuba e Ribeirão Preto. Em várias regiões do estado, há menos de 5% do Cerrado remanescente. Isso é insuficiente para garantir que a vegetação mantenha o equilíbrio climático e proteja espécies endêmicas. Sem recuperar o Cerrado, o Brasil não vai atingir a meta de combate às mudanças climáticas prometida no Acordo de Paris, diz Roberto Resende, do Movimento Mais Florestas PRA São Paulo. Ainda por cima, o Cerrado é fundamental para os próprios agricultores. Segundo pesquisas recentes, a saúde do Cerrado garante o ciclo de chuvas que alimenta a própria lavoura.

Fonte: Época