Independentemente de quem será eleito como futuro presidente do Brasil no dia 28-10-2018, a defesa da pauta ambientalista no país “exigirá do campo democrático-popular e das lideranças uma extrema capacidade de rearticulação e a construção de novas bandeiras que permitam também para as cidades compreender a importância das questões ambientais”, alerta Moema Miranda, assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica – Repam, na entrevista a seguir concedida por telefone à IHU On-Line.
Ao comentar os primeiros resultados do primeiro turno das eleições deste ano, Moemamenciona que o elemento “extremamente novo” na história política do Brasil é o surgimento de uma “base popular votando pela direita”. No passado, lembra, “tivemos uma ditadura militar que foi implantada à força, mas a eleição e a escolha de candidatos de direita e de extrema direita, que se apresentam como tais, é uma coisa inédita do ponto de vista da história brasileira”. Essa mudança, avalia, “é motivada por um sentimento de traição pelas acusações de corrupção, e esse sentimento foi mobilizado por uma capacidade de expressão de um sentimento de revanche que se configurou na busca de um herói”. Entretanto, pondera, “existe uma mudança muito mais profunda do que as nossas análises conseguirão dar conta neste momento”.
Nesta entrevista, a assessora da Repam também reflete sobre a situação da Amazônia brasileira e explica as motivações do Sínodo Pan-Amazônico, que será realizado em outubro do ano que vem. Entre elas, diz, está a constatação de que a Amazônia é uma terra que está sendo disputada e, nesse contexto, “temos que nos dar conta de qual é a nossa proposta, qual é a nossa visão e a nossa perspectiva, de que lado e como caminhamos nessa disputa. (…) O Sínodo é parte dessa grande dinâmica e da tentativa da Igreja de reencontrar seu lugar ao lado dos que lutam pela vida”.
Moema pontua ainda que a evangelização das comunidades indígenas, tal como sugere o papa Francisco ao convocar o Sínodo Pan-Amazônico, “não é só um processo de ocupar a região e dizer aos indígenas o que eles devem fazer. A evangelização é uma proposta de encontro, é uma teologia nova, uma abordagem nova, é uma novidade, de fato, nova e inovadora de como nós juntos nos colocamos no caminho de defesa da vida. Isto é, não é uma evangelização que vem de um lado só. (…) A base de toda a proposta evangelizadora é a Teologia do Encontro, a Teologia do Diálogo; é uma proposta totalmente nova desse ponto de vista”.
Moema Miranda é graduada em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e em Administração Pública pela UFMG. É mestra em Administração pela UFMG e doutora em Administração pela Universidade de São Paulo – USP. É professora emérita da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, onde se aposentou como professora titular depois de atuar como docente, pesquisadora e de ter ocupado cargos de direção.
Moema Miranda está na Unisinos campus São Leopoldo nesta semana participando da III Semana de Estudos Amazônicos – Semea, que está sendo realizada entre os dias 16 e 18-10-2018.
Por ocasião deste evento, no Campus Unisinos Porto Alegre há uma exposição dos mártires da Amazônia.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Qual sua avaliação do resultado do primeiro turno das eleições presidenciais?
Moema Miranda — Eu, como a maioria das pessoas que trabalha no campo ambiental, democrático e que luta por justiça social, como uma pessoa que participou ativamente dos processos de organização do Fórum Social Mundial, muito vinculado à Igreja que caminha na noção dessa luta por maior consciência, avalio que o resultado nos surpreende. Essa surpresa é reveladora. Temos dito que estamos em um tempo novo da Terra: o Antropoceno é um tempo muito inesperado em muitas coisas e também muito inesperado do ponto de vista da política, porque um conjunto de formas de fazer política, um conjunto de jeitos de se expressar, está naufragando e se acabou. Então, a conversa, o diálogo e a reflexão mais ampla hoje se limitam a discursos muito mais sintéticos e emocionais.
Quando olhamos o quadro das eleições pelo número de votos recebidos pelo que podemos chamar de “esquerda”, vemos que o PT se mantém na Câmara Federal com a maior bancada, que a votação no PSOL aumentou, porque o partido tem hoje mais deputados do que antes, e a votação no PDT também aumentou. Então, a esquerda, desse ponto de vista, está mais ou menos onde sempre esteve. O que houve de diferente foi uma imensa mudança do centro para a extrema direita, porque até então o centro ocupava um espaço maior na política brasileira. Portanto, a extrema direita e a extrema esquerda eram menos representativas. O que tivemos foi uma implosão do centro e uma ida para a extrema direita.
Outro elemento que é extremamente novo no caso da história do Brasil é uma base popular votando pela direita, porque tivemos uma ditadura militar no passado que foi implantada à força, mas a eleição e a escolha de candidatos de direita e de extrema direita, que se apresentam como tais, é uma coisa inédita do ponto de vista da história brasileira. Essa é uma mutação que é motivada por um sentimento de traição pelas acusações de corrupção — e quando somos traídos esse é um sentimento muito profundo — e esse sentimento foi mobilizado por uma capacidade de expressão de um sentimento de revanche que se configurou na busca de um herói, uma figura forte que diz: “Deixa que eu resolvo, deixa que eu faço sozinho; não preciso de ativismo e de sociedade organizada, cada um na sua trincheira e eu resolvo em nome de todos”. Existe, portanto, uma mudança muito mais profunda do que as nossas análises conseguirão dar conta neste momento.
IHU On-Line — Alguns têm avaliado que a agenda ambiental dos candidatos não é clara. Como os candidatos Haddad e Bolsonaro têm se pronunciado sobre a agenda ambiental, especialmente sobre a questão das terras indígenas e os licenciamentos ambientais?
Moema Miranda — Eles já começaram a se pronunciar. O candidato Jair Bolsonarodisse que irá terminar com o que ele chama de a “indústria das multas” e a “indústria da concessão da demarcação de terras”. A lógica desses pronunciamentos é a de que as terras indígenas são terras a serem comercializadas pelo capital, para que os indígenas façam o que quiserem com suas terras, abrindo caminho para a concessão de capital. Em relação a Fernando Haddad, precisamos exigir dele uma maior clareza em relação a essas temáticas, porque não foram temáticas que ganharam expressão na campanha dele e, portanto, cabe a todos nós um questionamento em relação a essa pauta.
IHU On-Line — Os últimos governos petistas foram bastante criticados pela insistência na construção de novas hidrelétricas, a exemplo de Belo Monte, e pela transposição do rio São Francisco. Como os dois candidatos têm se pronunciado sobre esse tipo de projeto? A agenda de ampliação das hidrelétricas deve continuar?
Moema Miranda — A lógica dos governos Lula e Dilma foi desenvolvimentista e baseada no grande pacto das commodities. O governo Lula aconteceu na égide do boom das commodities, do aumento estrondoso do preço do minério no mercado internacional. Nós, inclusive, no Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração muitas vezes nos pronunciamos em relação à importância de uma inflexão sobre o ritmo da mineração, mas o que vimos foi a construção de uma lógica, inclusive territorial, a serviço da mega e rápida exploração dos recursos minerais com vistas à exportação. Desse ponto de vista, qualquer defesa do campo ambientalista exigirá de nós, do campo democrático-popular e das lideranças, uma extrema capacidade de rearticulação e a construção de novas bandeiras que permitam também para as cidades compreender a importância das questões ambientais.
Nós, infelizmente, perdemos a capacidade de construir um movimento amplo nas cidades e isso é, mais do que nunca, urgente e necessário se quisermos salvar o planeta. Vale lembrar que no mesmo dia em que saiu o resultado das eleições no Brasil, grandes jornais da Europa, como o The Guardian, noticiaram as informações dos cientistas dando conta da crise e do avanço em relação aos pontos de mutação. Os cientistas estão dizendo que os resultados do IPCC estão abaixo da evidência dos riscos aos quais estamos submetidos. Por um lado, toda a comunidade científica renova o reforço da ideia de que estamos chegando à situação-limite na extração e, por outro lado, não conseguimos tematizar essa pauta na política em um país como o Brasil. Além disso, o tema do cuidado com a Amazônia não é um tema central na pauta de nenhum dos dois candidatos.
IHU On-Line — A proposta de ampliação de hidrelétricas deve continuar em qualquer um dos dois governos?
Moema Miranda — A questão toda será como se incrementará a economia. Creio que ambos pensam a incrementação da economia dessa forma, com uma intensificação do uso dos recursos que eles chamam de recursos naturais. É claro que são propostas diferentes, porque uma reconhece direitos enquanto a outra acha que direitos são empecilhos para o desenvolvimento.
IHU On-Line — O governo petista também foi criticado pelos ambientalistas pelo apoio à exploração de minérios. Na mesma direção, Bolsonaro tem insistido em aumentar a exploração de nióbio, considerando que o Brasil tem 90% das reservas. Como vê esse tipo de proposta?
Moema Miranda — Essa é uma situação que estamos vendo em todo o mundo. Donald Trump foi eleito nos Estados Unidos logo após a COP de Paris. O primeiro acordo, com todas as limitações, tinha conseguido chegar a algum tipo de definição sobre limites para as ações que levam ao aquecimento global, indiscutivelmente. Mas cresce nos Estados Unidos a lógica negacionista de negar que é a ação humana, antrópica, de superexploração de recursos que leva ao aquecimento global. O padrão negacionista também está crescendo no Brasil quando escutamos Bolsonaro ou os filhos dele negarem que essas atividades implicam aquecimento global. Eles usam a lógica de que falar sobre aquecimento global é ser contra o progresso e contra o desenvolvimento. Isso é muito sério porque o negacionismo não permite pautar a discussão de que se explorarmos mais, nesse ritmo e sem cuidado, a Terra entrará em um estado ao qual não poderá retornar. O benefício que podemos ter com a exploração não é nem próximo dos custos que teremos com as questões climáticas e de desorganização ambiental a que essa superexploração irá levar.
Hoje, fazer uma discussão sobre o aquecimento da economia e fazer uma discussão sobre o aquecimento da exploração dos recursos minerais sem fazer, ao mesmo tempo, uma discussão sobre o aquecimento global, é uma lógica suicida. Essa é a grande questão. Economia e ecologia falam de “eco”, de “oikos”, da casa comum: uma fala sobre as normas de uso da casa e a outra sobre a lógica de como essa casa se organiza. Se elas não dialogarem, nós, como espécie humana, estaremos cavando um enorme buraco aos nossos pés.
Na Amazônia, todas as áreas de exploração de minérios estão no centro da questão do aquecimento global — no centro, não na periferia. Portanto, é dramático que não falemos sobre isso. O que temos visto, infelizmente, do ponto de vista da campanha de Boslonaro, é um negacionismo absoluto, é a negação de que essas evidências científicas tenham um valor de verdade.
IHU On-Line — Em que consistiria um projeto econômico que levasse em conta as questões ambientais? Como você vislumbra a possibilidade de conciliar crescimento econômico com a agenda ambiental?
Moema Miranda — Desse ponto de vista a Laudato Si’ tem sido o nosso caminho e a nossa resposta. O papa Francisco escreveu a Laudato Si’ às vésperas da COP 21 como uma tentativa de chamar à luz outros elementos para esse debate. O Papa fala de duas questões que são absolutamente importantes quando estamos falando de crescimento. A primeira é adicção, quando ele fala da sobriedade feliz como alternativa. A palavra sobriedade normalmente é usada em relação aos adictos a substâncias químicas que são usadas mesmo sabendo que causam males; e a sobriedade é uma busca de liberdade em relação ao excesso. Então, o crescimento tem que ser pensado para quem, como e onde, porque uma lógica de crescimento ilimitado em um planeta limitado funciona como a lógica do crescimento das células cancerosas, que crescem mesmo que o hospedeiro morra no final.
A questão ambiental é uma questão que se coloca depois da vírgula: temos crescimento econômico e, se der, o conciliamos com a questão ambiental; mas não é assim. Toda a economia se faz a partir do planeta Terra, desse planeta que temos. Então, qual é a economia e o crescimento possíveis neste planeta? Se não levarmos isso em consideração, estaremos falando de algo que não existe. Agora, existem formas de viver bem neste planeta e isso é o que deve ser o centro da nossa busca. Quais são as formas de geração de renda, de bem viver e de qualidade de vida adaptáveis a isso? Essas formas são possíveis? Sim. É possível a agroecologia, o uso manejável de recursos, o uso sustentável da água e a produção de energia renovável e sustentável. As alternativas para um crescimento econômico com base no respeito às dimensões ecológicas existem em profusão, mas exigem uma mudança nos nossos padrões de consumo e nos padrões de desejo.
É claro que um acúmulo ilimitado de recursos é impossível, que todos tenham tanto dinheiro quanto o Bill Gates, é impossível; então esse crescimento econômico é incompatível. Mas uma dinâmica econômica com a administração de uma qualidade de vida com dignidade para todos é absolutamente compatível com o planeta. No entanto isso exige recolocar as questões ecológicas não como posteriores para discutirmos a questão principal que é a economia, como se só uma lógica de mercado pudesse determinar a melhor forma de viver. O papa Francisco diz “muito cuidado” porque a lógica do mercado não pode resolver os problemas que ela mesmo está criando. Para resolvê-la precisamos de política e de política de qualidade, de espaço democrático com debate em profundidade.
IHU On-Line — Que questões seriam importantes de serem discutidas nesta eleição sobre a pauta ambiental, especialmente em relação à Amazônia? O que seria uma proposta adequada de desenvolvimento para a região, na sua avaliação?
Moema Miranda — É sempre necessário fazermos uma reflexão sobre a palavra “desenvolvimento”. Quando se “desenvolve”, o que se “desenvolve”, o que fica de fora? Quando se está envolvido com alguma coisa, se está envolvido com a Terra, com o planeta, com os animais, existe uma lógica. Quando se “desenvolve”, quando se desliga disso, a lógica passa a ser outra. Então, a palavra desenvolvimento em si é uma palavra que precisaríamos qualificar melhor. Será que a forma de estar bem no mundo, a forma do bem viver é desenvolver no sentido de se desvincular dessas dinâmicas que são as dinâmicas do mundo que habitamos? Ou será que é ao contrário, é preciso se “reenvolver”? Se reenvolver com as matas, as populações e os rios e, a partir daí, construir uma forma de bem viver e bem conviver? O Papa fala sobre isso na Encíclica: bem viver tem quer ser bem conviver com a vida que vai além da vida dos humanos. Não é só a vida dos humanos que importa; nós somos parte de uma grande cadeia de vida, de um grande encontro cósmico, que permite que a vida se faça. Sem o todo, o conjunto da vida não se faz.
Hoje, a questão principal da Amazônia é como conviver bem com essa exuberância de vida que é uma floresta capaz de gerar frutos, ar puro, de estimular pelos rios a dinâmica das chuvas para o Sul, é pensar e de fato ter uma reflexão sobre desenvolvimento do ponto de vista da complexidade da teia da vida, é recolocar a ideia da teia da vida como elemento fundamental. A aquisição ilimitada de recursos materiais não pode ser considerada como o fim último da economia — não pode ser só isso. É claro, existe e sabemos que são necessários recursos para um conjunto de coisas, mas o argumento normalmente usado para quem se contrapõe a esse modo de desenvolvimento é: “ah, você não quer que as pessoas tenham celular? Não quer que as pessoas tenham computador?” Não se trata disso; nós podemos ter tudo isso, mas devemos ter tudo isso vinculado aos limites do planeta.
O porto de São Luís do Maranhão está sendo ampliado para os navios chineses atracarem ali trazendo lixo para ser armazenado no Brasil. Ou seja, é uma economia totalmente louca, sem nenhuma vinculação com a casa onde ela habita. Portanto, o desenvolvimento da Amazôniatem que estar nessa raiz do que a Amazônia representa para o conjunto do planeta, para o equilíbrio climático, para a chuva no país, para a saúde dos rios e para a fertilidade do solo em todos os biomas que estão no entorno. Inclusive, o procurador Felício Pontes Jr. tem feito o diálogo sobre o que está em disputa na Amazônia hoje. A Amazônia — o papa tem dito isto e estamos indo para o Sínodo Pan-Amazônico com esta lógica — é uma terra disputada. Em Porto Maldonado o Papa disse aos indígenas: vocês nunca estiveram tão ameaçados por uma lógica da ganância ilimitada como estão por esses projetos que têm a ver com o agronegócio, com a intensificação da mineração.
O que nós precisamos hoje é pensar uma economia que parta da forma como a vida se faz e se refaz na Amazônia, com a floresta em pé. Ela gera imensos recursos: se olharmos toda a produção de açaí, as exportações que existem em relação a isso são enormes. Logo, tem toda uma vida exuberante que pode dar rendimentos econômicos através do respeito à fonte e à diversidade. O que não dá é para ser uma economia, como Felício Pontes Jr. aponta, completamente predatória em relação a esses recursos. Ao contrário, a economia que acontece a partir dessa lógica da vida é, essa sim, uma economia ilimitada, porque gera mais vida. Como exemplos desse tipo de economia temos a produção de frutos, de fitoterápicos, o manejo responsável da madeira, a produção de energia que não seja uma produção que devaste o meio ambiente, a pesca comandada pelo tempo dos rios; tudo isso é extremamente rentável. Em relação aos fitoterápicos, por exemplo, nós ainda nem estudamos um enésimo do potencial da Amazônia. Essas são coisas que podem ser usadas de forma responsável, rendendo um enorme recurso para toda a Amazônia, para os povos que moram lá e que moram no entorno.
IHU On-Line — Essa sua proposta se assemelha à proposta que tem sido feita pelo professor Carlos Nobre?
Moema Miranda — Exatamente. Carlos Nobre tem feito esse estudo, que é muito importante. Ele foi a pessoa que sistematizou, do ponto de vista da ciência, a ideia dos rios voadores. A ciência e a tecnologia podem ajudar no desenvolvimento desses saberes tradicionais se conseguirem entrar em uma dinâmica produtiva a partir da realidade do que é a produção incessante de vida na Amazônia. A questão toda é a pergunta que fazemos: se supomos que o sistema, como ele existe hoje, é inquestionável, e assim estamos falando da sustentabilidade do sistema e não da sustentabilidade do planeta, a pergunta já induz a uma falta de resposta. Logo, recolocar as perguntas é absolutamente essencial também.
IHU On-Line — Como você avalia a proposta do Papa de sugerir um Sínodo para a Amazônia? Quais são os desafios da evangelização na Amazônia, tal como proposta pelo Sínodo?
Moema Miranda — Temos visto e compreendido o Sínodo como uma continuação e aprofundamento da Encíclica Laudato Si’, que foi lançada no contexto da discussão daCOP 21. Nesse sentido, o Sínodo é quase um aprofundamento da Encíclica, porque na própria carta o Papa fala da importância da Amazônia, como fala também da importância da floresta do Congo. A questão é como nós, enquanto Igreja universal, lidamos com essa região tão importante para o planeta. Acredito que o Papa se dá conta da presença histórica da Igreja que caminha no chão da Amazônia, que é uma igreja martirial, presente nas lutas e firme com a caminhada do povo, mas ele vê que ainda podemos fazer mais. E o que podemos fazer? Onde estão as falhas e as faltas?
O processo sinodal é extremamente interessante porque abre para um papa, como ele mesmo diz, que veio do “fim do mundo”, a possibilidade de escuta da própria Igreja, mas além da Igreja. Como deveria ser uma Igreja com rosto amazônico? Como deveria ser uma Igreja que defende a ecologia integral? O que a igreja deveria fazer e como ela deveria se constituir como pastoral, como teologia, como proposta e profecia nessa Amazônia que hoje está sendo disputada, por um lado, por um projeto predatório e, por outro, pela possibilidade de um projeto socioambiental e sustentável? O Sínodo é parte dessa grande dinâmica e da tentativa da Igreja de reencontrar seu lugar ao lado dos que lutam pela vida.
IHU On-Line — O que a Igreja pode fazer de diferente neste momento na Amazônia, além do que já tem feito ao longo dos últimos anos?
Moema Miranda — Muita coisa. Primeiro, a Igreja se dá conta da grande disputa que estamos vivendo. O Papa falou sobre isso em Porto Maldonado. A Amazônia é uma terra disputada, então como Igreja precisamos nos dar conta dessa disputa. Se existe uma disputa, temos que nos dar conta de qual é a nossa proposta, qual é a nossa visão e a nossa perspectiva, de que lado e como caminhamos nessa disputa. Depois, é preciso reconhecer os povos indígenas como protagonistas da região, porque eles estão lá há muito mais tempo do que todos nós, e foram eles que conseguiram lutar para preservar a Amazônia. Também é importante perceber que existem muitas “Amazônias”; quanto mais nós avançamos no caminho de preparação do Sínodo, mais nos damos conta disso.
Quando falamos da Amazônia brasileira, é preciso considerar que ela envolve nove estados. Quando falamos da Amazônia Legal, incluímos estados como Mato Grosso, Tocantins e Maranhão, que estão na franja da Amazônia, que estão na fronteira entre a Amazônia e o Pantanal e entre a Amazônia e o Cerrado. Com isso, vemos a importância dessa compreensão de totalidade e de integração entre os biomas e como o avanço do agronegócio ameaça a floresta, porque a lógica é sempre esta: derrubar madeira, vender as madeiras mais caras, colocar gado, destruir a terra e depois plantar soja. O Sínodo também tem a importância de fazer com que a Amazônia reconheça a diversidade das formas de ser e estar na Amazônia.
Você me pergunta o que a Igreja pode fazer a mais pelos povos indígenas, e é muito importante sabermos o que podemos fazer, mas é importante também nos perguntarmos sobre o que podemos fazer pelos povos indígenas que estão nas cidades. Como podemos levar a Amazônia, que também é cidade, aos jovens urbanos? Como podemos fazer com que os jovens se concebam na Amazônia? Depois, como aqueles que estão fora da Amazônia — como vocês no Sul e eu no Rio de Janeiro — podem se sentir como parte da Amazônia e como alguém que defende a Amazônia? Talvez a questão mais importante seja o papel das mulheres, pois quanto mais caminhamos na Amazônia, mais vemos que ali temos uma Igreja feita por mulheres no seu dia a dia, na catequese e na pastoral. Então, como podemos ter, de fato, uma Igreja com rosto feminino, uma Igreja mulher que cuida e que incorpora a questão das mulheres e que dá às mulheres um lugar de voz e de fala? A partir da Amazônia podemos aprender e avançar nessas questões.
Finalmente, em relação aos povos indígenas, como a Igreja pode ser um espaço de encontro e de diálogo não com o indígena folclorizado, mas com os povos indígenas que estão lutando pelas suas formas de vida? Como a Igreja pode se abrir e abrir seus espaços para acolher e buscar saídas junto com os povos nos lugares em que eles estão se defendendo, defendendo a vida e construindo alternativas? A Igreja, de fato, tem um longo caminho a percorrer e o Sínodo abre essa necessidade de renovação da Igreja, que tem que estar sempre se renovando, porque os tempos são muito desafiantes. Os tempos que temos pela frente são muito perigosos e desafiantes e a Igreja Católica precisa se dar conta da dramaticidade do momento presente.
A Igreja tem que se dar conta de que a crise ambiental é parte da crise da política, de como é difícil pautar as questões ambientais como um tema político, e de como isso é parte do próprio desmoronamento da política como um espaço de encontro e de defesa de direitos e do bem comum. O Sínodo vem numa hora muito apropriada para fazermos essa reflexão em profundidade sobre a realidade da Amazônia. No documento preparatório do Sínodo [1], lembra-se um aspecto importante em que o Papa diz que não devemos ser apenas amigos dos indígenas, caminhar com eles nas suas lutas, mas mais do que isso, devemos nos deixar evangelizar por eles. O Evangelho é a boa-nova, logo, os indígenas têm uma boa-nova que podem nos contar. Aprender com eles é algo revolucionário. Nesse sentido, não é só irmos como portadores de uma notícia boa, da novidade de Jesus, da boa-nova de Jesus, mas nos deixarmos evangelizar pela boa-nova dos povos que vivem na Amazônia — que não só os indígenas, mas também os ribeirinhos, as pescadoras e tantas outras populações que vivem na Amazônia —, que é a boa-nova da convivência com a floresta.
IHU On-Line — Pode explicar melhor em que consiste essa proposta de evangelização? Por que a evangelização é um aspecto importante nessa preocupação da Igreja com as disputas que estão ocorrendo na Amazônia? A Igreja não pode ser acusada de estar querendo colonizar os indígenas e os povos tradicionais, como já foi acusada em outros momentos da história?
Moema Miranda — Essa é a grande novidade. Uma coisa é ir como portador de uma notícia em que você vai falar sozinho, outra coisa é quando você vai falar porque reconhece que o mundo está à beira do caos. Quando olhamos todos os dados científicos sobre as mudanças climáticas, vemos que a situação ambiental é extrema, e o dramático é que é extrema e profundamente invisível. Esse choque de uma situação dramática e de uma situação de invisibilidade põe em alarme o Papa.
A evangelização não é só um processo de ocupar a região e dizer aos indígenas o que eles devem fazer. A evangelização é uma proposta de encontro, é uma teologia nova, uma abordagem nova, é uma novidade, de fato, nova e inovadora de como nós juntos nos colocamos no caminho de defesa da vida. Isto é, não é uma evangelização que vem de um lado só. Quando o Papa diz no documento preparatório do Sínodo “nos deixemos evangelizar pelos indígenas”, ele está dizendo que nós temos de construir uma nova forma de falar sobre a mensagem para a defesa da vida. O Papa abre a Laudato Si’dizendo que entre os povos mais pobres hoje está a Terra que clama. Então, a própria Terra começa a falar. É uma situação totalmente inovadora: a Terra, aquilo que nós pensamos que era inerte, sem vida, é um ente vivo e vivente, é um reencontro, uma redescoberta. Essa descoberta é absolutamente compatível com a compreensão que os povos indígenas sempre tiveram. É por isso que o Carlos Nobre fala da possibilidade de um diálogo muito mais próximo entre a ciência e os povos indígenas, porque hoje as ciências mais desenvolvidas do sistema Terra compreendem a Terra como um superorganismo vivo, complexo, em que tudo está interligado, que era o que os indígenas já sabiam.
A Igreja hoje se abre a uma nova Teologia da Criação, em que o último dia da criação, o ápice da criação, não para na criação do ser humano, e sim justamente no sábado, nesse momento de encontro de toda a criação na festa salvífica. Na Encíclica Laudato Si’, o Papa diz — e esse é um momento extremamente importante — que a Igreja também precisa salvar o ser humano de si mesmo. Então, há a possibilidade de que o ser humano não esteja à altura desse grande convite para a festa. Uma nova evangelização significa um processo de autoconversão também. A Laudato Si’ fala da conversão integral e o frei [Luiz Carlos] Susin tem falado da “conversão da conversão”. Ele diz que nos convertemos para pensar que nós, seres humanos, somos quase que superiores à natureza, como se não fôssemos parte dela, mas como se fôssemos os grandes senhores da natureza. Nós precisamos nos converter em relação a isso e compreender que somos integrantes de uma dinâmica da vida que nos transcende, que é maior do que nós.
Essa nova evangelização supõe um processo de conversão de todos, inclusive nosso como Igreja. Não se trata de uma Igreja como portadora de uma perspectiva autoritária, que já tem a verdade, que já sabe o que é melhor, que dirá que os indígenas não sabem. Ao contrário, é uma Igreja que se coloca como companheira de jornada na busca por essa forma de ser e de viver na Amazônia e no mundo, e que seja respeitosa das dinâmicas dos indígenas. Portanto, é uma evangelização de lado a lado: nós temos boas-novas, mas os indígenas também têm boas-novas para nós. O processo de evangelização hoje é um processo de encontro. A base de toda a proposta evangelizadora é a Teologia do Encontro, a Teologia do Diálogo; é uma proposta totalmente nova desse ponto de vista.
IHU On-Line — Como a proposta de realização do Sínodo Pan-Amazônico tem repercutido no território amazônico entre os povos tradicionais, os indígenas, entre a população dos estados da Amazônia e na própria Igreja Amazônica? Como eles sentem esse processo de evangelização?
Moema Miranda — Temos sentido uma enorme abertura, um interesse imenso de todos com os quais temos conversado. Por exemplo, temos dialogado até com as religiões de matriz africana tradicionais, e o Conselho Indigenista Missionário – Cimi tem organizado conversas com todos os povos indígenas. Além disso, muitas dioceses estão organizando escutas com juventudes nas cidades. Os estados de Tocantins, Mato Grosso, Pará, Amazonas, Acre e Rondônia têm formas diferentes e criativas de fazer a consulta e temos sentido uma enorme abertura. Há cada vez mais pessoas se sintonizando nessa possibilidade e nessa coisa extremamente interessante que é a abertura do Papa para escutar como a Igreja deveria se comportar na Amazônia. A diversidade de respostas já começa a emergir e isso tem sido um processo extremamente estimulante para o nosso trabalho.
IHU On-Line — Qual será a participação dos povos tradicionais e indígenas no Sínodo Pan-Amazônico?
Moema Miranda — O Sínodo em si tem um processo. Ele começou com a organização da Secretaria do Sínodo, com a elaboração do documento preparatório, que foi realizada por cinco especialistas. Agora está na fase de consulta, que envolve a Igreja e todos os movimentos que estão no entorno dela. Posteriormente essas respostas serão sistematizadas tanto pela Rede Eclesial Pan-Amazônica – Repam quanto pelas dioceses. Posteriormente, as Conferências Episcopais produzirão um primeiro documento, o qual será enviado a Roma, que trabalhará o documento preparatório; isso deve ficar pronto até abril de 2019, e em outubro acontece o Sínodo. O Sínodo será constituído por todos os bispos da Amazônia, mas também haverá a possibilidade de convidados. Ainda não sabemos totalmente como se dará a presença dos indígenas, mas acreditamos que serão convidados pelo Papa a estarem presentes também.
Nota:
[1] Acesse aqui o Documento Preparatório para o Sínodo. Acesse aqui o Documento Preparatório – versão popular. (Nota da IHU On-Line).
IHU