ARTIGO: O que podemos aprender com a catástrofe de Brumadinho


Sobrevoo da área atingida pelo rompimento da barragem em Brumadinho (MG). Foto: Presidência da República/Isac Nóbrega

Por Rafael Muñoz, coordenador da área econômica do Banco Mundial para o Brasil*

Três anos após o maior desastre ambiental da história do Brasil, em Mariana, nos defrontamos com mais uma tragédia, com o rompimento de uma barragem de mineração em Brumadinho. Vários especialistas já alertavam sobre os riscos das barragens a montante que não deveriam ser utilizados em países úmidos como o Brasil, por causa do alto risco de infiltração. Enquanto o governo continua a realizar buscas, salvamentos e resgates, e atender a população afetada, esta tragédia já pode ser considerada uma das maiores da história do Brasil dado o número de afetados e os danos ambientais.

Enquanto aguardamos os laudos finais da perícia sobre as causas deste acidente, é necessário repensar o modelo de gestão da segurança de barragens e de gestão de riscos de desastres no Brasil. De acordo com a ANA (Agência Nacional de Água), existem 790 barragens de rejeito de mineração de um total de mais de 24 mil barragens no país, a maioria de pequeno porte. Todas as barragens são categorizadas com base no risco de rompimento e no potencial impacto que causarão nas comunidades próximas e no meio ambiente em caso de acidente. Após a tragédia em Brumadinho, o governo publicou uma portaria que recomenda a fiscalização de todas as barragens com alto dano potencial associado e cobra os órgãos fiscalizadores para que exijam das empresas responsáveis a atualização dos seus planos de segurança. No entanto, tudo isso já está previsto na PNSB (Plano Nacional de Segurança de Barragens). Fica portanto a pergunta: por que este acidente aconteceu e, além disso, o que fazer para que haja mecanismos de previsão e alerta para que eventos como esses possam ser evitados e as consequentes tragédias jamais se repitam?

Como sabemos, qualquer barragem tem um risco que precisa ser gerenciado de forma efetiva e transparente para minimizar a probabilidade de rompimento e os potenciais danos a jusante. No Brasil, a avaliação de segurança de barragens é feita por meio de inspeções periódicas para identificação de anomalias estruturais e funcionais do barramento e de suas estruturas auxiliares. Essa avaliação é o principal instrumento para auditoria e prevenção de possíveis acidentes. Porém, ela só se torna eficaz se acompanhada de testes regulares para assegurar o comportamento correto e o bom funcionamento, dentre outros, de sensores de pressões internas, estáticas e hidráulicas da barragem – os “piezômetros”. Auditorias independentes são necessárias para assegurar que os instrumentos estão funcionando e os dados gerados sejam confiáveis e representativos da situação real do barramento.

Além disso, a coleta, interpretação e divulgação dos dados precisam ser feitas de forma mais transparente e automatizada, com acesso direto por órgãos de fiscalização e controle do Estado, bem como de todos os atores envolvidos na gestão dos riscos. Esses dados não devem ser tratados como sigilosos, mas prontamente disponibilizados a especialistas independentes dos órgão púbicos. O que está em jogo é o risco dos afetados, da população e do meio ambiento a jusante da barragem, sendo que o poder público, responsável pela segurança e preservação ambiental, deve intervir com agilidade para prevenir ou responder aos vários estágios e situações de emergência que possam advir. Problemas devem ser detectados com antecedência e medidas preventivas e corretivas devem ser discutidas e adotadas rapidamente. Ainda que não saibamos em detalhes as causas do rompimento em Brumadinho, é certo que nenhuma barragem se rompe sem dar sinais prévios de vulnerabilidade. Resta saber se houve problemas na coleta, no gerenciamento ou na divulgação dos dados.

Sabendo-se que, mesmo com a melhor engenharia e monitoramento do mundo, sempre haverá um risco “residual” de um eventual acidente, precisamos investir muito no gerenciamento integrado de riscos de desastres. Infelizmente, desastres fazem parte do nosso dia a dia como foi mais uma vez evidenciado com as chuvas torrenciais no Rio de Janeiro na semana passada. A tendência é que eventos extremos como esse se agravem com as visíveis e severas mudanças climáticas, embora, infelizmente, o maior problema não seja climático, mas sim a falta de percepção e de reconhecimento do perigo e a ausência de políticas e planejamento efetivo e preventivo, visando evitar e atenuar os riscos. O Chile, o Japão e a Holanda são bons exemplos de países que investiram muito na redução de riscos de perigos naturais que sempre existirão (como terremotos e enchentes) com engenharia, planejamento e sistemas eficazes de resposta a emergências, minimizando impactos sociais e econômicos.

Assim, é necessário ir além da fiscalização, da recuperação ou do descomissionamento destas barragens, que devem levar anos. É necessário desenvolver sistemas integrados de redução de riscos. A começar, precisamos fortalecer rapidamente os sistemas de alerta e de resposta a acidentes, principalmente nas comunidades próximas às barragens de alto risco. Além dos sistemas de alarmes sonoros, deverá ser cogitado o desenvolvimento de aplicativos para alertar a população. O planejamento e ocupação territorial é talvez a ferramenta mais importante para reduzir riscos. Retirar antecipadamente habitantes e evitar a ocupação de áreas de alto risco e de amortecimento, muito próximas às barragens, deve ser efetivada como medida de redução de impactos. A onda de rejeitos chegou às instalações da empresa e em Brumadinho em poucos segundos, impossibilitando qualquer evacuação pós-rompimento. Canteiro de obras e outras atividades não essenciais relacionados a barragens (tal como o refeitório diretamente afetado) devem ser planejados a montante de barragens. Finalmente existem maneiras de conter e direcionar a fluxo de rejeito com barragens emergenciais a jusante da barragem em análise. Esse planejamento integrado de riscos deve se iniciar imediatamente e em paralelo à recuperação do acidente de Brumadinho. Porém, é importante integrar todos os outros riscos relacionados a enchentes, desmoronamentos e outros desastres que se tornaram “corriqueiros e recorrentes” no Brasil.

Infelizmente, como em muitas outras ocasiões, não são as políticas que falharam, mas sim a sua implementação. A legislação brasileira é robusta, comparável, e, em alguns casos, mais severa, que a de outros países no mundo. Porém, há falta de clareza sobre o papel, incumbências e responsabilidades de cada instituição nos âmbitos federal, estadual e municipal, e sobre a capacidade para monitorar e fiscalizar o cumprimento das normas (que devem ser constantemente aperfeiçoadas, principalmente após situações limites como o dessas ocorrências), o tão famoso “compliance”. O licenciamento ambiental no Brasil, por exemplo, é desproporcionalmente burocrático com o licenciamento de certos empreendimentos de pequeno porte e baixo risco. Os requerimentos e a documentação vão muito além da capacidade dos próprios órgãos públicos em processá-los e aprová-los, atrasando obras ou simplesmente deixando empreendimentos em situação irregular. Por outro lado, falta fiscalização e indenização efetiva de obras e empreendimentos de grande porte e risco, onde muitas vezes interesses específicos prevalecem acima da lei. Esses projetos de grande risco precisam, muito além do licenciamento, um monitoramento diferenciado das áreas passíveis de serem afetadas, instruindo possíveis e/ou necessárias medidas, ações e obras de prevenção.

Após o desastre em Mariana, muitas medidas foram discutidas, porém poucas foram efetivamente implementadas. Esperamos que desta vez haja um acompanhamento mais contundente, envolvendo todos os interessados e todos os atores, e assegurando a punição dos culpados e que todas as medidas identificadas sejam adotadas, implementadas e monitoradas.

Coluna escrita em colaboração com Paul Procee, coordenador da área de Desenvolvimento Sustentável do Banco Mundial no Brasil.

*Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo, em 12 de fevereiro de 2019.