Desenvolvimento econômico


É possível perceber como tem sido deturpada a utilização de princípios, como o do desenvolvimento sustentável, a fim de justificar determinadas decisões administrativas. (AquilaSol/Pixabay)

Por Viviane Kelly Silva Sá*

O desenvolvimento do Estado Democrático de Direito é uma realidade desde a criação da Constituição Federal de 1988 (CF/88). Dentre vários fatores, a criação de princípios e normas infra legais levou o Estado a alcançar a era da flexibilização legislativa e do ativismo judicial. Contudo, olvidou-se da lei maior a ser obedecida para a utilização de tais princípios, tanto no Poder Legislativo quanto no Poder Judiciário, qual seja, auxiliar na fundamentação de normas as quais contenham lacunas interpretáveis, a fim de atender, primeiramente, o bem social, de acordo com a necessidade da coletividade.

A grande justificativa para a criação de determinadas normas, bem como o emprego de alguns princípios, tem sido, constantemente, o desenvolvimento econômico. Assim também acontece na esfera ambiental. Ocorre que a real finalidade não é exposta nas justificativas apresentadas ao Congresso Nacional. Os autores de tais flexibilizações – em regra, representantes da população ocupantes de cargos do Poder Executivo – por sua vez, garantem que determinada criação legislativa tenha o condão de desenvolver economicamente o país a ponto da degradação Ambiental parecer irrelevante. É possível perceber como tem sido deturpada a utilização de princípios, como o do desenvolvimento sustentável, a fim de justificar determinadas decisões administrativas.

Diferente não foi o que aconteceu com a inclusão na pasta do Ministério da Agricultura a função de demarcação de terras indígenas. O representante do Poder Executivo brasileiro, investido no cargo de Presidente da República, decidiu por bem devolver a atribuição de demarcação de terras indígenas para o Ministério cuja responsabilidade é fomentar o desenvolvimento agrário brasileiro. O fez por meio de Medida Provisória e assumiu publicamente a intenção de entregar tal incumbência ao órgão, qual seja, evitar que haja mais demarcação de terras as quais, segundo ele, pertencem a “áreas ricas do país”.

Os preceitos inarredáveis para a proposição de uma Medida Provisória, previstos no artigo 62 da CF/88 são a urgência e a emergência do tema tratado no projeto. O ministro chefe da Casa Civil justificou-os afirmando a necessidade de sanar eventuais dúvidas quanto a competência de determinados órgãos, bem como cumprir acordos políticos. Sequer citou o direito às terras ocupadas tradicionalmente pelos indígenas, garantia Constitucional prevista no artigo 231 da Carta Magna.

Além do erro crasso na utilização do instrumento legislativo, qual seja, a Medida Provisória, houve a clara intenção de ampliar a atuação do Ministério da Agricultura em áreas tradicionalmente indígenas. Isso porque, para que haja o desenvolvimento agrário, fundamental que existam terras disponíveis para plantio e pecuária. Mais uma vez o desenvolvimento econômico brasileiro é usado como justificativa para deturpar direitos constitucionais de certa minoria.

Uma segunda justificativa apresentada publicamente pelo atual Presidente da República foi a vontade do indígena de se aproximar da civilização. Ocorre que não é o que vem defendendo a representante da classe na Câmara dos Deputados, Joênia Wapichana, primeira Deputada Federal indígena no Brasil. A representante afirma veementemente a oposição à decisão tomada pelo Presidente da República, ratificando o desejo de sua classe de permanecer sob a égide da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), responsável pela demarcação de terras indígenas anteriormente à Medida Provisória 886 de 2019.

Nenhuma justificativa oficial foi apresentada para a criação da Medida Provisória em comento. Somado ao fato de que a exploração de terras indígenas afetará não apenas o direito a elas previsto no artigo 231 da CF/88, mas também o meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no artigo 225, também da Carta Magna. Há que se concluir que o desenvolvimento econômico tem sido escopo para o Poder Executivo ceifar direitos fundamentais previstos na Lei Maior, através do exercício de uma função que não lhe é atribuída em regra, qual seja, a de legislar.

A divisão dos poderes existe justamente para que cada um possa atribuir a função que lhe seja pertinente. Por vezes, o Poder Judiciário é autorizado a interferir, através do ativismo judicial, na função legislativa. O Executivo, por sua vez, também tem as suas ferramentas de legislação, sendo uma delas a Medida Provisória. O que se tem ignorado, e afirmo que não por acidente, é a função excepcional de tais instrumentos. Assim como o ativismo judicial tem seus limites, a Medida Provisória tem suas prerrogativas que foram ignoradas no caso apresentado, única e exclusivamente com a finalidade – não estampada pelo Poder Executivo – de aumentar a arrecadação Estatal por meio do Ministério da Agricultura.

*Viviane Kelly Silva Sá – Mestranda em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável na Escola Superior Dom Helder Câmara. Integrante do grupo de pesquisa Regulação Ambiental da Atividade Econômica Sustentável (REGA)/CNPQ.