A marginalização da agricultura é resultado do atraso, não do progresso.


Entrevista especial com Antonio Buainain

 

“A postura adequada não é de se colocar contra a modernização, mas ver como é possível capacitar os agricultores familiares para se beneficiar das ondas de progresso”, declara o economista.

 Foto: agropecuariadoreino.com.br

“A insistência em afirmar que a agricultura familiar é responsável pela produção de 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros” é uma das teses equivocadas acerca da realidade agrícola, diz Antonio Buainain, ao defender que “há um descompasso entre a realidade rural de hoje e as interpretações dominantes, tanto nos meios acadêmicos como governamentais, que parecem não incorporar plenamente as transformações ocorridas, e com isto negam a realidade”.

Editor do livro O mundo rural no Brasil do Século 21: A formação de um novo padrão agrário e agrícola, juntamente com Eliseu Alves, José Maria da Silveira e Zander Navarro,Buainain explica que a obra recém-lançada apresenta algumas teses sobre o desenvolvimento agrário brasileiro, considerando um amplo período em que o setor vem sofrendo transformações.

Entre as teses apresentadas, o economista salienta as mudanças no desenvolvimento agrícola e agrário desde os anos 1990, entendida como “inédita e irreversível dinâmica produtiva e econômica social, um verdadeiro divisor de águas em nossa história geral”, que gerou um novo padrão agrário e agrícola. Esse processo, pontua, começou a ser modelado ainda na década de 1950, mas ganhou impulso nos anos 1970, “com o estímulo à modernização tecnológica, e se consolidou a partir dos anos 1990, colocando o capital, em suas várias modalidades, no centro do desenvolvimento agrícola e agrário, deslocando a importância econômica e o poder político associado à propriedade da terra para os detentores de capital”.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Buainain argumenta que o “Estado continua desempenhando funções antigas, em prejuízo de novas funções que são absolutamente relevantes para o desenvolvimento rural”, e isso explica, em parte, a disparidade entre as condições de investimento dos pequenos agricultores e do agronegócio.

Apesar das “contradições” evidenciadas no novo modelo, ele assegura que se trata de “um padrão de produção e organização que intensifica o uso dos recursos disponíveis a partir de investimentos em todas as áreas, desde investimentos na própria terra até nos equipamentos e na gestão. É um padrão que segue as exigências, crescentes, do mercado e da sociedade, que querem alimentos seguros, produção sustentável, relações sociais decentes, etc. Uma parte da agricultura familiar se encaixa e é líder em vários segmentos, e outra parte, infelizmente em grande número, está marginalizada e não consegue se inserir por falta de condições para atender estas exigências”. E acrescenta: “Quando olhamos os indicadores sociais das cidades nas fronteiras, constatamos que são bem superiores à média nacional. Ora, onde está o lado tão negativo deste novo padrão? Eu insisto: a pobreza e a exclusão se devem ao atraso, e não ao novo padrão”.

Na nova conjuntura agrícola, Antonio Buainain insiste que não há necessidade de levar adiante o projeto da reforma agrária, porque ele “correspondia à realidade dos anos 1950 e 1960”. E explica: “Quando o Estatuto da Terra foi definido, fazia sentido falar em latifúndio improdutivo e na desapropriação destas unidades para fins de reforma agrária. Também se vivia uma situação de carestia devido à dificuldade que a agricultura tinha para abastecer os mercados urbanos, em expansão acelerada. E havia jovens que de fato gostariam de ter um pedaço de terra para produzir, criar a família, ali sobreviver. Tudo isto mudou: a agricultura brasileira é hoje uma grande produtora de alimentos, e passamos de importadores a exportadores; a improdutividade, quando ocorre, não tem nada que ver com a figura do latifundiário absenteísta, explorador, que não quer produzir porque é um simples especulador”.

Para ele, o desenvolvimento do Brasil depende do investimento na agricultura e no modelo exportador, já que a indústria “está falindo porque não conseguiu acompanhar o novo padrão mundial”. E conclui: “No fundo é isto: temos que reconhecer que a dificuldade da indústria se deve ao atraso da indústria, que pode ser explicado por muitas razões, desde uma política pública equivocada, condições sistêmicas ruins, instabilidade macro, custos de energia elevados, distorções institucionais, etc. A agricultura não apenas acompanhou as mudanças globais, como liderou alguns processos”.

Antonio Buainain é graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e em Ciências Econômicas pela Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas do Rio de Janeiro, mestre em Economia pelaUniversidade Federal de Pernambuco – UFPE e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde leciona atualmente.

Confira a entrevista.

 Foto: www.unicamp.br

IHU On-Line – Quais são as principais mudanças evidenciadas no mundo rural brasileiro nesta primeira década e meia do século XXI?

Antonio Buainain – O livro o Mundo rural no Brasil não trata de mudanças nesta primeira década e meia do século, mas em um arco temporal mais largo, sem a preocupação de datar, com precisão, as mudanças que são hoje visíveis e, do nosso ponto de vista, incontestáveis, pelo menos à luz das informações objetivas sobre o mundo rural brasileiro. Estas mudanças dizem respeito à organização, forma e conteúdo da produção agropecuária; dizem respeito à ocupação e organização social no meio rural; dizem respeito à dinâmica populacional e às condições de vida. No artigo 7 teses sobre o desenvolvimento agrário brasileiro, publicado no ano passado, cada tese se referia, de maneira provocadora, a um conjunto de mudanças.

A primeira tese sustenta que, a partir da década de 1990, o desenvolvimento agrícola e agrário “passou a experimentar uma nova, inédita e irreversível dinâmica produtiva e econômico-social, um verdadeiro divisor de águas em nossa história geral”. Sustentamos que ocorreu uma mudança radical no padrão de acumulação da agricultura, e que “as mudanças dizem respeito às fontes de produção da riqueza social”. No passado, a produção agropecuária dependia do binômio que combinava uma oferta quase ilimitada de mão de obra desqualificada e barata com a disponibilidade de terras baratas e relativamente férteis nas fronteiras. O que estamos chamando “novo padrão” — resultado de um processo que tem início no final dos anos 1950, de forma bem localizada, ganhou impulso nos anos 1970, com o estímulo à modernização tecnológica, e se consolidou a partir dos anos 1990 — coloca o capital, em suas várias modalidades, no centro do desenvolvimento agrícola e agrário, deslocando a importância econômica e o poder político associado à propriedade da terra para os detentores de capital.

As mudanças estão associadas, de forma direta e indireta, à dinâmica imposta pela lógica da acumulação de capital, que é muito distinta da lógica de acumulação patrimonial que historicamente dominou a agricultura.

 

“Em uma sociedade que se move, quem fica parado fica para trás”

IHU On-Line – Antes de aprofundar sobre os fatores que contribuíram para estas mudanças, poderia comentar, brevemente, a motivação dos senhores com as teses?

 

Antonio Buainain – Sim. É bom observar que as teses são, na verdade, hipóteses, que foram propostas para provocar o debate e a maior compreensão sobre o quadro atual e perspectivas da agricultura e mundo rural brasileiro. Em nossa opinião há um descompasso entre a realidade rural de hoje e as interpretações dominantes, tanto nos meios acadêmicos como governamentais, que parecem não incorporar, plenamente, as transformações ocorridas, e com isto negam a realidade. Nosso ponto de vista é mais ou menos o seguinte: cada um tem todo o direito de pensar e defender suas ideias, sejam elas quais forem, desde que não firam a própria democracia e os direitos estabelecidos, incluindo o das minorias. Mas não é saudável, para o debate, negar a realidade para defender as ideias, pois além de se constituir clara mistificação que nada tem de científico, gera políticas equivocadas e trazem prejuízo para o país e até para os grupos que se pretende defender. Quer um exemplo? A insistência em afirmar que a agricultura familiar é responsável pela produção de 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros. O Professor Rodolfo Hoffman, talvez o maior conhecedor das estatísticas sobre a agropecuária e mundo rural brasileiro, já mostrou, usando aritmética bem simples, que esta afirmação é absurda. Não se trata de negar, e ninguém faz isto, a importância destes produtores, mas para afirmá-la não é necessário falsificar a realidade. Este exemplo vale para muitos outros campos, desde a reforma agrária até a questão ambiental, passando pelo latifúndio improdutivo e pelas polarizações que marcam os debates agrários no Brasil, como os que opõem agricultura familiar ao agronegócio, pequenos versus grandes, ou ainda as falsas identidades, como modernização igual à desigualdade, agronegócio igual à pobreza rural, etc. etc.

IHU On-Line – E quais são as demais teses?

Antonio Buainain – A segunda tese sustenta a centralidade da inovação para este novo padrão e, ao mesmo tempo, aponta que a inovação é o principal desafio. Um corolário desta tese é que os produtores que não conseguem acompanhar o ritmo das inovações vão se empobrecendo e tendem a ser marginalizados. Não temos nenhuma futurologia, e esta afirmação, que surpreendentemente é negada por muitos, é apenas uma obviedade: em uma sociedade que se move, quem fica parado fica para trás. Em uma sociedade movida pela inovação, quem não inova fica para trás. A inovação é entendida de forma muito abrangente, mas, sem inovar, não tem futuro. A terceira tese é muito relevante porque sustenta que esta nova fase tem uma dupla face: de um lado, a dinâmica econômica concentra a produção, e de outro, aprofunda a diferenciação social, promovendo um processo seletivo entre os produtores que tende a excluir milhões de estabelecimentos do jogo virtuoso. Veja que não estamos idealizando o mundo rural, nem afirmando que a produção em larga escala — erroneamente associada de forma automática e negativa ao agronegócio — é toda maravilhosa. Estamos constatando a existência, mostrando a enorme capacidade de gerar riqueza, a eficiência econômica e a elevada competitividade, e ao mesmo tempo indicando como este mesmo processo, que gera indicadores positivos, é seletivo e exclui um grande número de produtores. É o que chamamos de desenvolvimento bifronte. No capítulo de políticas agrícolas, não negamos o lado positivo das transformações, nem sustentamos que é preciso destruir o agronegócio para evitar a marginalização, pois isto equivale a jogar fora o bebê junto com a água do banho, mas tratamos de refletir o que pode ser feito para incluir mais, preservando o que funciona. Até porque a marginalização é resultado do atraso, e não do progresso, e querer conter o progresso para evitar a marginalização não parece ser muito inteligente.

A quarta tese, que gera bastante polêmica, sustenta que a questão agrária, tal como vem sendo colocado no Brasil, é uma herança dos anos 1950, no máximo início dos 1960, que já foi superada pelo desenvolvimento histórico. A quinta tese fala do Estado, do seu papel e funções.

“A marginalização é resultado do atraso, e não do progresso, e querer conter o progresso para evitar a marginalização não parece ser muito inteligente”

Mais uma vez questionamos a visão corrente. Sustentamos que o Estado continua desempenhando funções antigas, em prejuízo de novas funções que são absolutamente relevantes para o desenvolvimento rural. A sexta tese sustenta que este processo ativa uma relação perversa, pois mesmo nas regiões rurais que prosperam, observa-se um certo esvaziamento. De um lado, os filhos dos produtores rurais que se saem melhor, mesmo entre os pequenos, não querem ficar no meio rural; de outro, porque ocorre uma redução de demanda por trabalho, e, em muitos locais, mesmo que a pessoa queira ficar, não encontrará condições para fazê-lo. Finalmente, na sétima tese sustentamos que no Brasil nunca tivemos uma política verdadeira de desenvolvimento rural, e que por isto se observa o que chamamos de “argentinização do campo”, de esvaziamento populacional. Trata-se de um claro exagero, e o Professor Arilson Favereto, em excelente artigo publicado no livro, questionou muito bem esta tese, mostrando que o meio rural brasileiro é profundamente heterogêneo, e que em muitas regiões observa-se uma densidade populacional elevada, e que o processo de argentinização refere-se mais a algumas regiões produtoras de grãos nas fronteiras.

IHU On-Line – Quais foram os fatores que contribuíram para essas mudanças?

Antonio Buainain – Muitos, e a importância de cada fator depende do ângulo de visão. Quando se fala das mudanças no padrão produtivo, não há dúvida de que o móvel foi a pressão do mercado. Depois da crise dos anos 1980, que se agravou fortemente após o Plano Cruzado, que estimulou o endividamento dos produtores para expandir a produção e depois viram o mercado ser comido pela inflação e pelos sucessivos congelamentos dos preços dos alimentos, os agricultores viveram momentos ainda mais dramáticos nos anos 1990, com o Plano Collor, e o próprio Plano Real, que no início penalizou muito a agricultura, não havia saída: ou ganhavam eficiência, melhoravam a produtividade, controlavam custos, ou não sairiam do buraco no qual estavam. Claro que a política pública ajudou: houve a renegociação das dívidas que permitiu aos agricultores, em sua maioria inadimplentes, voltar aos bancos para financiar a produção; teve a expansão do crédito; a estabilização econômica melhorou o ambiente e finalmente teve o fenômeno daChina, que entrou no mercado e contribuiu para a elevação dos preços das commodities para patamares “nunca vistos na história deste país”. Se você olhar pelo lado do esvaziamento populacional, podemos apontar o enorme desequilíbrio entre o campo e a cidade e o acesso às informações, que faz com que os jovens já não queiram ficar no meio rural, onde a vida é muito mais difícil do que nos centros urbanos. É interessante ver como muitos colegas defendem a manutenção das pessoas no meio rural, mas acho que sem perguntar o que elas querem. Eu acabei de coordenar uma pesquisa naBahia, que ouviu perto de 700 famílias de pequenos produtores e trabalhadores rurais. Não encontramos jovens que declarassem que queriam ficar no campo, mesmo se tivessem terra. O desejo deles é ir para a cidade, arrumar um emprego, mudar de vida.

IHU On-Line – A que projeto político e econômico esse novo padrão agrário e agrícola atende?

Antonio Buainain – Com todas as contradições, este novo padrão atende a um projeto político e econômico de desenvolver este país. A tua pergunta possivelmente tem como base a ideia de que este novo padrão é apenas negativo, o que é falso, tal como indicado, por vários colegas, inclusive por alguns que não concordam com as teses que motivaram o livro. Este padrão tem várias caras: no Paraná tem uma, de uma agricultura diversificada fortemente baseada em agricultores que são classificados como familiares; no Centro-Oeste tem outra cara, baseada em produtores de larga escala, oriundos em sua maioria do Sul do país, de famílias de pequenos agricultores, que ocuparam e transformaram terras que eram consideradas impróprias para a agricultura no celeiro do país e em uma das principais áreas produtoras de grãos do mundo. Encontraram uma fronteira braba, sem estradas, sem infraestrutura, inicialmente sem apoio do setor público, e conseguiram se estabelecer e ter sucesso. Ainda hoje enfrentam condições sistêmicas muito precárias, faltam estradas, faltam armazéns, e ainda assim competem em pé de igualdade com argentinos, americanos, canadenses, estes últimos fortemente apoiados em um fantástico aparato de políticas públicas.

A escala foi e é fundamental para sobreviver nestas condições. Tem gente que compara com a fronteira americana e se esquece de que lá o trem chegou antes dos “farmers”. E é gozado que estes caras que tiveram sucesso baseado principalmente no trabalho, cresceram, ficaram ricos, são agora considerados como inimigos dos agricultores familiares. É uma distorção tremenda de uma cultura que não lida bem com o sucesso dos outros, e que quer sempre nivelar por baixo. E quando olhamos os indicadores sociais das cidades nas fronteiras constatamos que são bem superiores à média nacional. Ora, onde está o lado tão negativo deste novo padrão?

Eu insisto: a pobreza e a exclusão se devem ao atraso, e não ao novo padrão. Os agricultores familiares que lograram se inserir nesta dinâmica são os que estão bem, mandando seus filhos embora do campo para estudar, virar doutor, melhorar de vida. E isto é uma realidade. Anos atrás fiz um estudo sobre a economia do tabaco no Sul do Brasil e fiquei impressionado com a quantidade de gente que entrevistamos nas cidades, gerentes de banco, colegas da universidade, lideranças sindicais, políticos, que eram filhos de fumicultores. E isto também já é visível no Nordeste.

“É interessante ver como muitos colegas defendem a manutenção das pessoas no meio rural, mas acho que sem perguntar o que elas querem”

IHU On-Line – Em que consiste o novo padrão agrário e agrícola brasileiro? Como a agricultura familiar se encaixa nesse novo padrão?

Antonio Buainain – Não é fácil caracterizar o novo padrão em poucas linhas, até porque ele aparece de muitas maneiras diferentes, dependendo do sistema produtivo dominante. Mas basicamente é um padrão de produção e organização que intensifica o uso dos recursos disponíveis a partir de investimentos em todas as áreas, desde investimentos na própria terra até nos equipamentos e na gestão. É um padrão que segue as exigências, crescentes, do mercado e da sociedade, que querem alimentos seguros, produção sustentável, relações sociais decentes, etc. Uma parte da agricultura familiar se encaixa e é líder em vários segmentos, e outra parte, infelizmente em grande número, está marginalizada e não consegue se inserir por falta de condições para atender estas exigências. Veja um exemplo: a produção de leite. Quando se definiu a Instrução Normativa 51, que exigia o resfriamento do leite na unidade, entre outras medidas sanitárias que nos países da Europa vigiam há quase 100 anos, houve uma gritaria total por parte dos “defensores” da agricultura familiar. O argumento era simples: parte dos agricultores seria excluída, logo a gente deveria continuar tomando leite de baixa qualidade para evitar a expulsão. Felizmente o governo não aceitou esta pressão e trabalhou para apoiar os agricultores a cumprir com a exigência. Qual o resultado? A agricultura familiar renasceu para a produção de leite. O Rio Grande do Sul é um exemplo disto. Então, a postura adequada não é de se colocar contra a modernização, mas ver como é possível capacitar os agricultores familiares para se beneficiar das ondas de progresso. O discurso de defesa da agricultura familiar, com a imposição de que a agricultura familiar tem que produzir alimentos para o mercado doméstico, tem que usar agroecologia, tem que fazer isto ou aquilo, só prejudica. Eu sempre digo que os agricultores familiares devem produzir o que lhes rende mais, e não o que achamos que eles devem produzir por razões ideológicas.

IHU On-Line – Como o senhor percebe a discussão acerca da reforma agrária nesse novo padrão agrário e agrícola brasileiro?

Antonio Buainain – Eu considero, como o meu colega Zander Navarro, que o tema da reforma agrária corresponde ao passado. Eu venho há bastante tempo criticando o modelo de reforma agrária adotado no Brasil, que para mim correspondia à realidade dos anos 1950 e 1960. Quando o Estatuto da Terra foi definido, fazia sentido falar em latifúndio improdutivo e na desapropriação destas unidades para fins de reforma agrária. Também se vivia uma situação de carestia devido à dificuldade que a agricultura tinha para abastecer os mercados urbanos, em expansão acelerada. E havia jovens que de fato gostariam de ter um pedaço de terra para produzir, criar a família, ali sobreviver. Tudo isto mudou: a agricultura brasileira é hoje uma grande produtora de alimentos, e passamos de importadores a exportadores; a improdutividade, quando ocorre, não tem nada que ver com a figura do latifundiário absenteísta, explorador, que não quer produzir porque é um simples especulador. Se existe esta figura nos dias de hoje, é uma presença tão irracional, do ponto de vista social, como o avarento que guarda dinheiro embaixo do colchão.

As terras ditas improdutivas não produzem porque, na maioria dos casos, não oferecem condições para a produção. E o que a reforma agrária propõe é justamente desapropriar estas terras que são mesmo improdutivas, e redistribuí-las para pequenos produtores pobres. Não pode dar certo: onde estão estas terras? Em SP, no Paraná, em MS, no RS? Não, no semiárido nordestino, no meio da floresta amazônica. Então é lá que está sendo feita a tal da reforma agrária, em um processo totalmente irracional. Quando Celso Furtado analisou o problema do Nordeste, no final dos anos 1950, ele propôs a redução da densidade demográfica do semiárido, e no lugar de desocupar a política pública promove o adensamento do semiárido, que é hoje a zona de maior risco de desertificação. O mesmo ocorre na região Norte: no lugar de conter a ocupação, promove por meio de reforma agrária. E qual o resultado deste processo? Infelizmente muito negativo. A maioria dos assentamentos não saiu do lugar, apesar da transferência de recursos para os assentados. Um indicador do erro é a taxa de abandono elevada.

IHU On-Line – Como avalia a discussão agrária em relação à discussão acerca da indústria e, especialmente, do baixo crescimento da indústria?

Antonio Buainain – Mais um exemplo de como temos dificuldade de olhar a realidade. Temos um setor que vem dando certo, e, no lugar de promovê-lo, tem gente que quer sacrificá-lo em nome de uma indústria que está falindo porque não conseguiu acompanhar o novo padrão mundial. No fundo é isto: temos que reconhecer que a dificuldade da indústria se deve ao atraso da indústria, que pode ser explicado por muitas razões, desde uma política pública equivocada, condições sistêmicas ruins, instabilidade macro, custos de energia elevados, distorções institucionais, etc. A agricultura não apenas acompanhou as mudanças globais, como liderou alguns processos. E, por isso, quando a China demandou soja, os agricultores brasileiros estavam preparados para produzir soja; quando a revolução no Zimbábue desarticulou a produção de tabaco, o setor fumicultor do Rio Grande do Sul tinha capacidade para responder à crise e ocupar o mercado; quando o milho escasseou devido à produção de etanol de milho pelos EUA, o Brasil respondeu expandindo a produção e em poucos anos passou de um produtor de milho em quintal, para festa de São João, a um player internacional. 

“O tema da reforma agrária corresponde ao passado”

E o mesmo vale para o algodão, laranja, etc. Não há, hoje, nenhuma oposição entre indústria e agricultura, e os defensores da indústria deveriam propor o reforço da agroindústria, que é um dos poucos setores da indústria que não está em crise. Por que será?

IHU On-Line – Quais são as razões de o Brasil se manter ou optar por ser um país agroexportador?

Antonio Buainain – O Brasil se mantém como um país agroexportador porque não teve até agora capacidade para exportar serviços e produtos industriais com maior conteúdo inovativo. É apenas isto. E continuará assim porque infelizmente não tem uma política séria para mudar. Estamos nos afundando cada vez mais, e a situação vai piorar bastante quando os preços das commodities voltarem a patamares mais razoáveis. Parece que isto já está acontecendo, e se o movimento atual se confirmar, 2015 promete ser um ano bem difícil, porque viveremos, pela primeira vez em vários anos, uma crise na indústria, serviços e agropecuária.