Natureza tem patamar de sujeito de direitos


É importante mencionar a questão dos recursos naturais no ordenamento jurídico equatoriano, pois pela nova Constituição apresenta-se pela 1ª vez na América uma virada do biocentrismo. (Divulgação)

Sébastien Kiwonghi Bizawu* e Lorena Belo**

É importante resgatar a história dos povos indígenas, mesmo que seja de uma maneira sucinta, para conhecer melhor o seu modo de vida, a relevância de suas relações com a natureza e de sua organização em comunidade. Procura-se, nesse texto, destacar alguns aspectos fundamentais da vida dos povos indígenas ou comunidades tradicionais do Equador.

Quanto a sua organização geopolítica, de acordo com a sua Constituição de 2008, o Equador é um Estado constitucional de direitos e justiça, social, democrático, soberano, independente, unitário, intercultural, plurinacional e laico. É organizado como República e governado de forma descentralizada. A soberania reside no povo, cuja vontade é o fundamento da autoridade e é exercida através dos órgãos do poder público e das formas de participação direta previstas na Constituição.

É importante destacar que a Constituição da República do Equador de 2008 também trouxe inovações no que diz respeito ao reconhecimento da natureza como a razão de ser do povo e do Estado. Tal prestígio pode ser percebido no preâmbulo do texto constitucional, em que a natureza é intitulada Pacha Mama, tendo em vista a decisão de “construir uma nova forma de convivência cidadã, na diversidade e em harmonia com a natureza, para alcançar o bem viver”

É necessário apontar, também, que a questão das terras indígenas, na América Latina, está intrinsecamente ligada à história da colonização, que trouxe indizível sofrimento aos povos tradicionais e comunidades indígenas pela usurpação das riquezas de suas terras, pelos horrores inimagináveis a que foram submetidos.

No caso do Equador, ocorre uma verdadeira simbiose, um binômio ser humano e natureza, quando se trata dos povos indígenas, pois eles fazem parte da natureza e cuidam dela, sendo povos, “depositários de conhecimentos tradicionais sobre as características e o uso da rica diversidade biológica”.

Não há como olvidar os problemas ambientais da Amazônia ao falar do Equador, pois não são apenas problemas dos Estados-membros da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), mas de interesse mundial, uma vez que as riquezas naturais e diversidade social e cultural da região pan-amazônica têm chamado a atenção e despertado a cobiça de muitas nações e empresas multinacionais. Para cada país da OTCA, a abordagem da região amazônica se faz segundo os critérios ecológico (ou biogeográfico), hidrográfico e político-administrativo, destacando-se os direitos da natureza contidos na Constituição da Equador (2008), partindo dos recursos naturais (hídricos, minerais e biológicos) e das áreas ambientalmente protegidas, com ênfase no patrimônio cultural natural, nas terras indígenas e no meio ambiente.

Assim, observa-se a preocupação do governo equatoriano, considerando a característica da multiculturalidade oriunda de suas populações, para elevar a natureza ao patamar de sujeito de direitos. Todavia, salienta-se da falta de soluções efetivas para vários problemas da região, por exemplo, no âmbito da saúde para os povos indígenas com alto índice de mortalidade infantil; a falta de compartilhamento dos avanços tecnológicos, científicos ou educacionais entre alguns Estados-membros; e a promoção do desenvolvimento sustentável e do crescimento econômico.

Quanto à legislação constitucional e infraconstitucional do Equador, um dos Estados-membros da América do Sul que constituem a Pan-Amazônia, faz-se o levantamento dos  direitos socioambientais que envolvem a região, tendo em vista a importância da proteção e conservação do meio ambiente com base nos objetivos traçados pelo Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), celebrado pelo Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, e pela OTCA.

A preocupação com a preservação e conservação do meio ambiente desde a declaração de Estocolmo (1972) tornou-se uma bandeira global; e não pode ser diferente, quando se trata do cumprimento dos acordos entre os Estados-partes do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA). Em uma época em que se procura despertar a consciência ecológica mundial sobre a necessidade de preservar os recursos naturais e minimizar os riscos do aquecimento global, torna-se imperativo estudar uma série de questões sobre o Equador, relativas à demarcação e à preservação das terras indígenas e reservas de preservação ambiental; às legislações referentes à economia extrativista; à exploração dos recursos biológicos e genéticos; à proteção das águas e à proteção da fauna e flora, especialmente das espécies animais e vegetais ameaçadas.

O Equador, cuja capital é a cidade de Quito, é denominado oficialmente República do Equador. Os espanhóis foram responsáveis pela colonização do país e também “pela dizimação de boa parte da população indígena, seja pelo contágio de doenças, seja pelo extermínio deliberado pelos colonizadores. Trata-se, na realidade, de uma violência baseada no preconceito, uma vez que os indígenas eram vistos como seres inferiores e os espanhóis supervalorizavam a cultura europeia, dando-se o direito de desprezar as crenças dos outros povos.

É importante mencionar a questão dos recursos naturais no ordenamento jurídico equatoriano, pois pela nova Constituição apresenta-se pela primeira vez na América Latina uma virada calcada no biocentrismo. São introduzidos os conceitos de direitos da natureza e direito à sua restauração. Uma nova articulação é gerada com os saberes tradicionais tanto com a natureza como com a Pacha Mama, e oferece ainda um contexto para as políticas e a gestão ambiental baseado na boa vida (sumak kawsay) e em novas estratégias de desenvolvimento, como bem sublinha Gudynas (2009), consoante a Constituição de 2008, a qual estipula que “os recursos naturais não renováveis do território do Estado pertencem a seu patrimônio inalienável, irrenunciável e imprescritível”.

Percebe-se, no entanto, uma preocupação do povo equatoriano não só em restaurar os recursos naturais propriamente ditos, mas também em eliminar ou reduzir as consequências ambientais dos danos causados pela exploração deles. Nesse sentido, pode-se afirmar que essa preocupação com a restauração e reparação de danos à natureza também é uma das maneiras de reconhecimento da Pacha Mama como sujeito de direitos. Conforme o artigo 313 da Constituição do Equador, os recursos naturais são considerados setores estratégicos para o país e, como tais, devem ser administrados, regulados, controlados e geridos pelo Estado.

O artigo 12 da Constituição já consagra a água como um direito fundamental e irrenunciável. Além disso, dispõe que “a água constitui patrimônio nacional estratégico de uso público, inalienável, imprescritível, inembargável e essencial para a vida”. Com relação à exploração dos recursos minerais, o Equador conta com uma lei específica sobre mineração, intitulada Ley de Minería, de 2009. Tal legislação regulamenta o exercício dos direitos soberanos do Estado do Equador para administrar e gerir o setor estratégico da mineração, com a observância dos princípios da sustentabilidade, precaução, prevenção e eficiência.

A lei, a seu turno, estabelece alguns dispositivos sobre a preservação do meio ambiente, tendo em vista os danos que a atividade mineradora pode gerar. Para promover tal preservação, o artigo 78 impõe a obrigação de se efetuarem e apresentarem estudos de impacto ambiental e auditorias ambientais antes do início das atividades de exploração dos recursos minerais.

***Este texto é o quarto da série de nove artigos sobre jurisdição ambiental dos países que compõem a Pan-Amazônia. A versão integral do livro Pan-Amazônia: O ordenamento jurídico na perspectiva das questões socioambientais e da proteção ambiental está disponível gratuitamente no site da Editora Dom Helder. Leia nesta segunda (21) texto de Márcio Luís de Oliveira e Franclim Jorge Sobral de Brito sobre a Guiana.

Leia também:

*Sébastien Kiwonghi Bizawu é mestre e doutor em Direito Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Professor de Direito Internacional na Dom Helder Escola de Direito e pró-reitor do Programa de Pós-Graduação em Direito. Membro do Núcleo Docente Estruturante (NDE) e membro do Grupo de Pesquisa Estratégica sobre a Pan-Amazônia da Dom Helder Escola de Direito.

**Lorena Belo é especialista em Direito Público, graduada em Direito pela Dom Helder Escola de Direito e membro do CEBID-Dom Helder.

Bolívia traz inovações na legislação ambiental


A Constituição Boliviana estabelece a existência de uma jurisdição indígena, competente para julgar e revisar penalidades fixadas pelos núcleos comunitários. (AFP)

Por Marcelo Kokke*

A tendência de centralização de estudos e reflexões jurídicas e sociais a partir de uma leitura exclusiva nos referenciais europeus já privou o Brasil por anos, quem sabe séculos, de contato com realidades mais próximas e que muito podem contribuir para com o aprimoramento das regulações jurídico-sociais e ecológicas pátrias. A experiência do direito comparado se torna mais proveitosa e reflexiva quando se projetam reações e contornos de ordenamentos jurídicos vivenciados em contextos similares.

É justamente sob este prisma que a Dom Helder Câmara promove seus grupos de estudo e pesquisa acerca da Amazônia. Esse suporte permitiu a elaboração de obras científicas voltadas não somente à análise dos contextos normativos dos países amazônicos, mas também centrada em contribuir para com a realidade brasileira e um aprimoramento recíproco entre os países amazônicos.

Nesse quadro de desenvolvimentos, a análise da legislação boliviana ascende em vital importância. A dinâmica entre o reconhecimento social e cultural e o reconhecimento jurídico pode variar em gradações por vezes constantes, por vezes variáveis. Uma delas é a dosagem que se apresenta o pluralismo jurídico, em especial, a possibilidade de se institucionalizar níveis de jurisdição interna a determinados grupos originários ou tradicionais. O quadro acentua quando se tematiza o respeito e a afirmação das práticas sociais e cultura indígenas na Amazônia.

A Bolívia é precursora no tema. A Constituição Boliviana estabelece a existência de uma jurisdição indígena, competente para julgar e revisar penalidades fixadas pelos núcleos comunitários a partir de violações às suas regras de convivência e sociabilidade. Isso significa um pluralismo de regência da vida humana segundo o grupo social a que esteja vinculado o indivíduo, não por sua condição apartada, mas, pelo inverso, por sua imanente condição de integrante de uma coletividade de valores.

O estudo desenvolvido a partir da legislação boliviana permite situar os âmbitos de aplicação e limites de persecução das normas jurídico-sociais dos povos originários bolivianos. O esquadrinhar dessa aplicação irá revelar pontos de exaltação e também pontos de crise.

Os pontos de exaltação robustecem a coletividade em seus valores e dimensão de bem-viver próprios, em um eixo de conotações de qualidade de vida que se fazem paralelos aos valores hegemônicos pregados pelo ocidente em seu marco fixado desde a modernidade. Mas os pontos de crise também existem. Quais os limites de aplicação das normas comunitárias? Como equilibrar normas de bem-viver com postulados reconhecidos universalmente como próprios de direitos humanos? É justamente nesse tema que adentra a figura do Tribunal Constitucional como fator de conjunção, como linha de lastreamento a fim de que o pluralismo jurídico possa não se dissipar em um apartamento de regras e penalidades infensas a qualquer avaliação de justiça.

O artigo e a pesquisa revelam uma profunda necessidade de avançar na avaliação do pluralismo jurídico e suas formas de manifestação. O reconhecimento jurídico vai além de uma postura de abstenção de intervenção. Ele se revela na necessária incorporação ao ordenamento jurídico de institutos e instituições próprios para fins de afirmar a tutela indígena como regente de seu cenário de bem-viver, dentro de um marco universal de tutela dos direitos humanos.

Este texto é o primeiro da série de nove artigos sobre jurisdição ambiental dos países que compõem a Pan-Amazônia. A versão integral do livro Pan-Amazônia: O ordenamento jurídico na perspectiva das questões socioambientais e da proteção ambiental está disponível gratuitamente no site da Editora Dom Helder. Leia amanhã texto de Elcio Nacur Rezende sobre o Brasil.

* Marcelo Kokke é pós-doutor em Direito Público – Ambiental pela Universidade de Santiago de Compostela – ESMestre e doutor em Direito pela PUC-Rio. Especialista em processo constitucional. Pós-graduação em Ecologia e Monitoramento Ambiental. Procurador federal da Advocacia-Geral da União e professor da Dom Helder Escola de Direito.