Extrativistas endossam boicote a produtos brasileiros


O CNS continua sendo a principal referência da luta pela preservação do modo de vida do povo da Amazônia. (Reuters)

Patrícia Azevedo

Boicote à comida brasileira. A campanha foi lançada pelo empresário sueco Johannes Cullberg, fundador da Paradiset, a maior rede de supermercados orgânicos da Escandinávia. Em página no Facebook, que contava com 3.176 curtidas nesta quarta-feira (13), o empresário apresenta suas motivações: protestar contra a alta taxa de desmatamento e o uso de pesticidas no país. Cullberg também afirma estar bravo e chateado com a postura do governo de Jair Bolsonaro, e tenta agora convencer seus concorrentes a aderir à campanha, divulgando a hashtag #boycottbrazilianfood.

“Este é o caminho – conversar e expor a situação da Amazônia para os outros países, construir uma consciência mundial. Viajamos para Europa neste ano, para denunciar e fazer essa articulação. Já há supermercados, como a rede sueca, embargando a compra de produtos brasileiros. Atingir a balança comercial, mesmo que pouco, é uma forma de colocar o governo contra a parede”, afirma Joaquim Belo, presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS). Fundado em 1985 por Chico Mendes e seus companheiros, o CNS – então chamado de Conselho Nacional dos Seringueiros – continua sendo a principal referência da luta pela preservação do modo de vida do povo da Amazônia. Além da articulação internacional, a entidade se empenha para construir alianças internas, buscando resultados mais efetivos.

Joaquim Belo, por sua vez, nasceu em 1963, no município de Mazagão, no Amapá, e herdou do pai a vocação para atuar como liderança. Durante passagem por Belo Horizonte, para participar da 4ª Semana de Estudos Amazônicos (Semea), conversou com o Dom Total sobre a importância do evento e o modelo de desenvolvimento econômico brasileiro. Abordou também os principais desafios vividos pelas populações extrativistas, formadas por 180 mil famílias em 693 territórios – o correspondente a 13% da Amazônia. “A Semea é um desses espaços fundamentais para a formação de alianças. A floresta, para alguns, é uma causa. Para a nossa população, é vida. Continuaremos na luta e recorreremos às cortes internacionais, se necessário”, ressalta. Confira a entrevista completa:

Joaquim Belo em debate da Semea
Joaquim Belo em debate da Semea

Como está a situação dos extrativistas? Ela mudou com o atual governo?

A nossa luta na Amazônia nunca foi fácil, enfrentamos muitas dificuldades, mas já foi um pouco “menos pior”. É a primeira vez que temos uma agenda ambiental tão preocupante. Nos deparamos com um governo que se elegeu pelas vias democráticas, mas com comportamento ditatorial. Com uma postura que é extremamente ameaçadora com relação àquilo que sempre tivemos como patrimônio –  a nossa biodiversidade. É um governo que vê a questão ambiental como empecilho ao desenvolvimento do país, de uma ignorância tremenda. Por essa lógica, estão lançando um ataque sobre nós, diretamente, pois dependemos da floresta, dos rios. É um momento seríssimo, mas estamos resistindo e vamos resistir. Como disse meu pai: não há mal que dure para sempre. Precisamos ter paciência e perseverança. Fortalecer as alianças e as parcerias, que sempre foram fundamentais para a nossa conquista.

A Semea tem estimulado essas parcerias? Como o senhor avalia o evento?

A Semea é isto, um espaço que une diversos pensamentos para fortalecer essa agenda comum – a proteção da Amazônia e da biodiversidade. É um evento que reconhece o valor dessa articulação. Nossa principal arma, neste momento, são as parcerias. Além disso, podemos trabalhar melhor a questão econômica. Usá-la contra o próprio governo. A política que se instalou em nosso planeta, pautada pelo fascismo, começa a perder forças. A América do Sul está vivendo um grande movimento neste sentido, um governo fascista acabou de cair na Argentina. Então, estamos vendo um sinal, se o Trump perder nos Estados Unidos, os governos fascistas começam a desmoronar de vez. Enquanto isso, é resistir. Nós não temos outros caminhos, afinal é o nosso modo de vida que está em jogo.

É possível conciliar o desenvolvimento econômico e o modo de vida dos extrativistas?

Costumo dizer que o Brasil é o único do mundo que tem a chance de construir um grande projeto de desenvolvimento diferente de qualquer país. Só que escolhemos importar modelos econômicos e ignorar a nossa própria vocação. Acredito muito que essa resistência que estamos fazendo agora, de manter nossa diversidade, nossa riqueza, uma hora será reconhecida. Não sei por quantas gerações vamos ter que resistir para chegar a uma nova safra de políticos, que enxergue nossa potencialidade. Esse país tem tudo. Se souber organizar, não perde para ninguém. Mas é tudo um processo. Viemos de um sistema colonialista, e esses interesses estão longe de serem afastados, somos reféns. Não sei até quando, mas o que fazemos hoje pode apresentar às futuras gerações uma oportunidade de ter o Brasil como um país soberano, realmente.

As populações extrativistas enfrentam problemas para defender seus territórios? O senhor, como liderança, já sofreu ameaças?

As invasões sempre ocorreram e estão ocorrendo, em diversos pontos, principalmente nos lugares em que o Estado, do ponto de vista institucional, está ausente, onde a comunidade fica à mercê dela mesma. Aí, é muito complicado. Há invasão de madeireiros e garimpeiros, extração ilegal de tudo o que se possa imaginar, um risco tremendo. O crime organizado está tomando também o interior da Amazônia, saiu dos morros e dos cartéis. E de fato, há risco de vida. Muitas lideranças tombaram, morreram. Sofri ameaças de morte por duas vezes, mas sempre lidei com uma certa frieza, para não tornar isso algo espetacular. Tem gente que gosta de fazer isso. Mas lido de forma muito natural, são recados que chegam para quem está na liderança, para intimidar. Mas não temos escolha. É manter a firmeza, ter cuidado. Fazemos uma agenda de estratégia. Por exemplo: quando há um enfrentamento, levamos lideranças de outros lugares para ajudar na proteção. Mas o risco há em todo lugar, inclusive aqui na cidade. Estamos em uma sociedade que, em qualquer lugar, você está ameaçado. Na sua casa. O ladrão entra, te assalta, te mata. É ter cuidado, zelo, não subestimar e saber lidar com a situação.

O Brasil está perto de ter políticas consistentes para a proteção da Amazônia?

Há um longo caminho para que possamos ter políticas públicas eficientes, que sejam adequadas à realidade, construídas com a participação da população. A nossa estrutura política é concentradora, é sequestrada pelo sistema capitalista, pelo sistema financeiro e por outros interesses que estão em jogo. Não considera a pequena população. As pessoas que estão nas favelas, na floresta, na beira dos rios. Os interesses são outros, e estamos longe de romper com isso. Vamos ter que conviver por muito tempo. Os investimentos de infraestrutura, obras como Belo Monte, são para atender o grande capital. Esmagam os pequenos. Chegam com tudo decidido e fazem de qualquer jeito, em nome de um projeto que destrói mais do que desenvolve. Precisamos estar atentos a isso e fazer denúncias onde for possível. Constranger essas autoridades lá fora.

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Patrícia Azevedo/Dom Total