Uso dos recursos genéticos:legislação contraproducente e incapaz de fomentar o uso.


Entrevista especial com Nilo Saccaro

“É necessário um novo marco regulatório dos recursos genéticos, aliado a uma correta política de fomento à pesquisa, que traga o bioprospector para perto dos órgãos responsáveis. Isso permitirá que o Brasil utilize uma das maiores riquezas de seu território na busca pelo desenvolvimento econômico e redução das desigualdades regionais”, pontua o técnico de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais – Dirur, do Ipea.

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Apesar de ter sido um dos países “pioneiros” entre os que participaram da Convenção da Diversidade Biológica – CDB, ao instituir um Marco Legal Nacional referente à biodiversidade biológica e aos recursos genéticos, o Brasil tem uma legislação que “impõe medidas rígidas de proteção e controle, pelo governo federal, relativas à pesquisa sobre os recursos genéticos em território brasileiro, como, por exemplo, a necessidade de autorização prévia do governo federal para que a pesquisa possa iniciar”, critica Nilo Saccaro. Segundo ele, as regras que determinam a repartição dos benefícios oriundos dos recursos genéticos “também são rígidas, difíceis de serem aplicadas em muitas situações. Empresas ou instituições estrangeiras só podem realizar a bioprospecção se associadas a instituições brasileiras com o intuito de tornar mais fácil o controle e favorecer a transferência de tecnologia”.

Na avaliação do técnico de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais – Dirur, do Ipea, o Marco Legal Nacional, instituído pela Medida Provisória 2.186-16, precisa ser revisto, “porque as regras atuais impõem uma rigidez tão grande que isso inviabiliza a geração de benefícios, dificulta que sejam compartilhados de maneira justa e não exige o investimento na conservação da biodiversidade”. E acrescenta: “As limitações da MP consistem principalmente em tentativas exageradas de controle que, embora pudessem fazer sentido no contexto de sua edição, mostraram-se contraproducentes ao longo dos últimos 14 anos, incapazes de fomentar o uso dos recursos genéticos de acordo com os preceitos da CDB”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Saccaro enfatiza que os recursos genéticos são uma riqueza do Brasil e podem ser aproveitados “tanto para o desenvolvimento econômico quanto para o financiamento das atividades voltadas à conservação da natureza. A bioprospecção é uma forma não consumptiva de uso da biodiversidade, ou seja, não implica a possibilidade de degradação de ecossistemas. Além disso, uma vez que as regiões mais pobres do país tendem a possuir grande biodiversidade e populações tradicionais, o fomento adequado ao uso econômico dos recursos genéticos e do conhecimento tradicional pode promover o desenvolvimento regional e reduzir a desigualdade social”.

Nilo Luiz Saccaro Junior possui graduação e mestrado em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo – USP. É técnico de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais – Dirur, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.

Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Quais são as principais normas nacionais e internacionais que regulamentam o acesso aos recursos genéticos e a repartição de benefícios aos países membros da Convenção da Diversidade Biológica, que resultou no Protocolo da Nagoya?

Nilo Saccaro – O principal acordo internacional é a Convenção sobre a Diversidade Biológica – CDB, assinada no Rio de Janeiro em 1992. No âmbito da CDB, foram criadas algumas resoluções sobre o tema, mas o maior avanço veio com o Protocolo de Nagoya em 2011. Em relação a legislações nacionais, há uma variedade de situações, com alguns países regulamentando o acesso a recursos genéticos de diferentes formas. O Brasil foi pioneiro nesse sentido, quando criou, no início da década passada, ainda que por meio de Medida Provisória, uma regulamentação interna específica. Muitos países ainda não têm normas nacionais relativas ao tema.

IHU On-Line – Quais serão os principais impasses entre os países no sentido de definir as regras do Protocolo de Nagoya?

Nilo Saccaro – Há um grupo de países detentores da maior parte da biodiversidade mundial (em sua maioria países em desenvolvimento) e um grupo de países detentores da capacidade técnica para explorar a biodiversidade (países desenvolvidos). Os diferentes interesses desses grupos caracterizam os impasses. Enquanto os primeiros querem regras mais rígidas para a repartição dos benefícios advindos da biodiversidade, os últimos não querem que tais regras dificultem a bioprospecção.

IHU On-Line – Qual é a proposta da Convenção sobre a Diversidade Biológica em relação aos conhecimentos tradicionais? O que se entende por conhecimentos tradicionais?

Nilo Saccaro – Conhecimentos tradicionais são aqueles gerados ao longo de muito tempo pela interação entre populações tradicionais, indígenas ou quilombolas e as espécies que as cercam. O conhecimento sobre propriedades medicinais de certas plantas, transmitido ao longo de gerações em comunidades ribeirinhas amazônicas, é um exemplo. A CDB determina que as comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas, devem ter poder de decisão sobre o uso de seu conhecimento, além de compartilharem, de maneira justa, dos benefícios econômicos porventura gerados com ele.

 

“Bioprospecção é a busca de inovações com base na biodiversidade, capazes de gerar produtos que possam ser comercializados”

IHU On-Line – As regras atuais continuam não favorecendo os objetivos da Convenção da Diversidade Biológica, conforme o senhor apontou em artigo publicado em 2011?
Nilo Saccaro – Sim, pelo menos no que diz respeito às regras nacionais. A legislação brasileira não mudou, embora se tenha avançado na discussão de projetos de lei que podem vir a substituir a tão criticada Medida Provisória 2.186-16.

 

IHU On-Line – O que é e em que consiste a bioprospecção? Qual seu papel na administração dos recursos genéticos?

Nilo Saccaro – Bioprospecção é a busca de inovações com base na biodiversidade, capazes de gerar produtos que possam ser comercializados. A pesquisa de uma empresa sobre o princípio ativo presente no veneno de uma cobra, com o fim de produzir um fármaco, é um exemplo dessa atividade. Se realizada de maneira adequada, a bioprospecção pode ser fonte de recursos financeiros para a conservação da biodiversidade e, portanto, dos próprios recursos genéticos que tornam a atividade possível.

IHU On-Line – Quais são as principais diretrizes da Medida Provisória 2.186-16, de 2001, referente às discussões da Convenção da Biodiversidade Biológica, em relação ao acesso ao patrimônio genético existente no território nacional e à repartição dos benefícios derivados da exploração do patrimônio genético e ao acesso à tecnologia?

Nilo Saccaro – A citada medida provisória impõe medidas rígidas de proteção e controle, pelo governo federal, relativas à pesquisa sobre os recursos genéticos em território brasileiro, como, por exemplo, a necessidade de autorização prévia do governo federal para que a pesquisa possa iniciar. As regras relativas à repartição de benefícios também são rígidas, difíceis de serem aplicadas em muitas situações. Empresas ou instituições estrangeiras só podem realizar a bioprospecção se associadas a instituições brasileiras com o intuito de tornar mais fácil o controle e favorecer a transferência de tecnologia. A MP também cria o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético – CGEN, órgão federal vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, responsável pelo controle do uso dos recursos genéticos brasileiros.

IHU On-Line – Concorda que o Marco Legal Nacional brasileiro em relação à biodiversidade biológica e aos recursos genéticos precisa ser revisto? Por quais razões? Quais são as principais limitações do Marco Legal?

Nilo Saccaro – Concordo. Principalmente porque as regras atuais impõem uma rigidez tão grande que isso inviabiliza a geração de benefícios, dificulta que sejam compartilhados de maneira justa e não exige o investimento na conservação da biodiversidade. As limitações da MP consistem principalmente em tentativas exageradas de controle que, embora pudessem fazer sentido no contexto de sua edição, mostraram-se contraproducentes ao longo dos últimos 14 anos, incapazes de fomentar o uso dos recursos genéticos de acordo com os preceitos da CDB.

“Ainda hoje não há qualquer tipificação penal para biopirataria no Brasil”

IHU On-Line – Como vê, nesse sentido, a atuação do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético – CGEN? Como tem ocorrido a relação do Conselho com as empresas que desenvolvem pesquisas em relação aos recursos genéticos?

Nilo Saccaro – O CGEN promoveu tentativas de flexibilização das regras, mas sua liberdade de ação é limitada pela Medida Provisória. Esta prevê uma burocracia que tem sido criticada por empresas e outros atores envolvidos com o uso da biodiversidade. Como essa burocracia fica em grande parte centralizada no CGEN, é natural que todos esses atores vejam o órgão como um obstáculo a seus interesses e não como um parceiro capaz fomentar relações de cooperação entre eles.

IHU On-Line – Quais empresas estão atuando no Brasil e são beneficiadas de algum modo pela Medida Provisória 2.186-16?

Nilo Saccaro – É praticamente impossível saber quais empresas são, de alguma forma, influenciadas pela MP. Qualquer empresa que pretenda pesquisar uma espécie brasileira sofre seus efeitos, ainda que esse efeito seja, simplesmente, escolher não pesquisar. Muitas empresas farmacêuticas, por exemplo, sejam nacionais ou estrangeiras, que em princípio teriam interesse em pesquisar moléculas oriundas de nossa biodiversidade, podem escolher pesquisar espécies de outros países, para evitar as restrições. Algumas podem até escolher fazer sua pesquisa à margem da lei. De qualquer forma, é difícil dizer que alguma empresa tenha sido beneficiada, ao menos dentre aquelas preocupadas em agir dentro das leis.

IHU On-Line – O uso de recursos genéticos é vantajoso para o Brasil tanto do ponto de vista ambiental quanto econômico?

Nilo Saccaro – Sem dúvida. Os recursos genéticos constituem uma riqueza do país, que pode ser aproveitada tanto para o desenvolvimento econômico quanto para o financiamento das atividades voltadas à conservação da natureza. A bioprospecção é uma forma não consumptiva de uso da biodiversidade, ou seja, não implica a possibilidade de degradação de ecossistemas. Além disso, uma vez que as regiões mais pobres do país tendem a possuir grande biodiversidade e populações tradicionais, o fomento adequado ao uso econômico dos recursos genéticos e do conhecimento tradicional pode promover o desenvolvimento regional e reduzir a desigualdade social.

IHU On-Line – Há muitos casos de biopirataria de recursos genéticos no Brasil? É possível contabilizar essa questão em dados?

Nilo Saccaro – É difícil falar em biopirataria. Esse não é um termo técnico ou jurídico. Não é usado na CDB ou na MP 2.186-16. Em sentido estrito, nem se pode falar em biopirataria antes de 1992, pois não havia regras. Ainda hoje não há qualquer tipificação penal para biopirataria no Brasil. O que há são muitos casos anuais de tráfico de espécies silvestres.

Supõe-se que alguns deles poderiam se destinar a pesquisas, e não à decoração ou outros fins, mas não há como saber. Supõe-se, uma vez que a fiscalização é praticamente impossível, que já possam existir pesquisas e produtos com base na biodiversidade, sem conhecimento do governo ou repartição de benefícios. Algumas ONGs fazem reivindicações sobre patentes específicas já concedidas em outros países, mas as controvérsias são grandes, pois não há como determinar o momento da coleta, além de outras complicações.

De qualquer forma, até pela natureza presumidamente ilegal, é impossível contabilizar de maneira confiável qualquer atividade que poderia ser classificada como biopirataria.

IHU On-Line – Qual seria a melhor proposta para garantir a preservação e o uso sustentável da Amazônia, considerando a extensão e a diversidade da floresta?

Nilo Saccaro – Não há uma fórmula única, capaz de ser imposta de cima. Essa é uma questão complexa, que depende de decisões tomadas de maneira participativa, com o empoderamento das populações amazônicas. É comum ouvirmos que “não existe uma Amazônia, mas muitas Amazônias”. A heterogeneidade biológica e sociocultural é a regra para a região. Qualquer proposta, portanto, tem que ser flexível o bastante para acomodar as peculiaridades e potencialidades regionais, democraticamente. De forma geral, acredito que a única forma de manter a Floresta Amazônica em pé é ir além das políticas de comando e controle, construindo políticas efetivas de fomento à ocupação e uso adequados.

“A única forma de manter a Floresta Amazônica em pé é ir além das políticas de comando e controle, construindo políticas efetivas de fomento à ocupação e uso adequados”

IHU On-Line – Quais são as demais políticas propostas e desenvolvidas pelo Brasil no sentido de proteger a biodiversidade?

Nilo Saccaro – O Brasil possui um grande número de políticas voltadas à biodiversidade, seja no âmbito federal, estadual ou municipal. Algumas funcionam muito bem, outras nunca saíram do papel. Destaco uma iniciativa federal de sucesso, relativa à manutenção da biodiversidade: o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal – PPCDAm. Esse plano foi capaz de mobilizar, de maneira coordenada, ações de diversos Ministérios, órgãos federais e governos estaduais e municipais, encabeçados pelo Ministério do Meio Ambiente. Considera-se que o plano teve um papel crucial na significativa redução do desmatamento que o Brasil experimentou nos últimos anos.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Nilo Saccaro – Na relação entre biodiversidade e inovação, o incentivo a atividades desejáveis é mais efetivo que a repressão das indesejáveis, levando a um cenário muito melhor do que o atual, considerado negativo por todas as partes envolvidas. Para tanto, é necessário um novo marco regulatório dos recursos genéticos, aliado a uma correta política de fomento à pesquisa, que traga o bioprospector para perto dos órgãos responsáveis. Isso permitirá que o Brasil utilize uma das maiores riquezas de seu território na busca pelo desenvolvimento econômico e redução das desigualdades regionais.

Por Patricia Fachin