Precificar a vida e a natureza: o princípio poluidor-pagador no Direito Ambiental europeu.


Entrevista especial com Alexandra Aragão

“É preciso puxar pela imaginação para incorporar, nas transações comerciais diárias, um valor que reflita, pelo menos parcialmente, o valor real da natureza”, diz a pesquisadora.

Foto: www.organicsnet.com.br

Qual o valor de uma vida humana? Certamente, para muitos, a resposta não seria nada além do incomensurável. No entanto, ainda assim, no âmbito jurídico são aplicadas penas, sanções e multas. “Se a ordem jurídica não impuser o dever de pagar qualquer compensação pelo dano máximo, que é a perda da vida, então estará a incentivar os homicidas eficientes, que matam sem dor nem sofrimento”, expõe a professora portuguesa Alexandra Aragão.

De acordo com ela, a mesma lógica pode ser aplicada às compensações ambientais, especialmente com o princípio do poluidor-pagador. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ela perpassa as iniciativas existentes para precificar a natureza, as convenções para sua mensurabilidade e os princípios que norteiam o Direito Ambiental europeu. “A natureza vale mais do que se pode alguma vez pagar. Vale trilhões”, defende Aragão. “No entanto, repito: pagar pouco é melhor do que pagar nada. E a ameaça de pagamento constitui mais um incentivo à prevenção de atos de degradação ambiental, a somar ao efeito dissuasor das normas sancionatórias”.

Alexandra Aragão possui graduação e mestrado em Direito pela Universidade de Coimbra, onde também concluiu seu doutorado em Direito do Ambiente. Atualmente é professora do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. É autora, entre outros livros, de O Princípio do Nível Elevado de Protecção e a renovação ecológica do Direito do Ambiente (Coimbra: Almedina, 2006) e de Princípio do Poluidor Pagador, pedra angular do Direito Comunitário do Ambiente (Coimbra: Coimbra Editora, 1997).

Alexandra Aragão participará, no dia 12 de setembro, no III Congresso Internacional de Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, a ser realizado pelo Instituto Socioambiental Dom Helder e pela Escola Superior Dom Helder, em Belo Horizonte.

Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Em 1997, Robert Constanza propõe um dos primeiros cálculos de economização da natureza, estipulando que toda a biosfera estaria avaliada em uma média de 33 trilhões de dólares por ano. A quantia, no entanto, poderia atingir valores infinitos conforme os recursos naturais se tornassem mais escassos. É possível precificar a natureza? Se sim, que reflexões podem ser geradas por estes cálculos?

Alexandra Aragão – Os dilemas éticos inerentes à precificação da natureza não são muito diferentes dos que se levantaram quando se discutiu a precificação da vida humana. O valor da vida humana é indibitavelmente infinito, no entanto, é mais justo pagá-la do que não a pagar.

A explicação deste fenômeno, a propósito da compensação por danos pessoais, torna-se mais clara se seguirmos o raciocínio do ilustre professor de Coimbra, Rabindranath Capelo de Sousa, especialista em direitos de personalidade e direito sucessório: se a ordem jurídica não impuser o dever de pagar qualquer compensação pelo dano máximo, que é a perda da vida, então estará a incentivar os homicidas eficientes, que matam sem dor nem sofrimento.

Ao exigir uma compensação financeira ao homicida (montante esse que será incorporado no patrimônio do falecido, e posteriormente adquirido pelos herdeiros), continuamos a acreditar que a vida humana não tem preço. E continuamos a defender uma punição penal severa para quem cometer crimes hediondos contra a vida de outrem. E claro que o valor da compensação arbitrada por morte de uma pessoa é ridículo, se comparado com o verdadeiro valor da vida humana, que é tendencialmente infinito. No entanto, é menos injusto pagar pouco do que pagar nada. Com base nestas ideias os tribunais portugueses arbitram regularmente compensações pelo dano da morte, além das compensações por outros danos morais ou patrimoniais.

Ora, todo este raciocínio é igualmente válido para a precificação da natureza . Deve continuar a haver sanções criminais, para punir os atos criminosos de poluição ou de danos contra a natureza; deve continuar a haver sanções administrativas (em Portugal chamadas contraordenações, no Brasil, multas) para punir os atos violadores das regras administrativas ambientais. Mas isso não significa que, se alguém causar um dano significativo a uma espécie animal ou vegetal, a um hábitat, a um ecossistema ou a outro elemento da natureza, não deva pagar. Claro, a natureza vale mais do que ele pode alguma vez pagar. Vale trilhões. Sem ela não podemos sobreviver, ou seja, a natureza tem um valor infinito. Mas repito o que disse antes: pagar pouco é melhor do que pagar nada. E a ameaça de pagamento constitui mais um incentivo à prevenção de atos de degradação ambiental, a somar ao efeito dissuasor das normas sancionatórias.

IHU On-Line – Que outras iniciativas semelhantes surgiram após a proposta de Constanza, e quais seus avanços e limites?

Alexandra Aragão – As mais interessantes, na minha opinião, são a Parceria para os Serviços dos Ecossistemas (Ecosystem Services Partnership), também fundada no trabalho de Constanza, e a definição dos Limites do Planeta (Planetary Boundaries Initiative), do Centro de Resiliência de Estocolmo. Ambas são passos sérios, com enorme credibilidade científica, no sentido de valorar quantitativamente a natureza e de saber até onde podemos no uso do Planeta para satisfação das nossas necessidades mais fúteis. Em Portugal, a iniciativa Condomínio da Terra converge com estas duas e tem mais ou menos os mesmos propósitos, trazendo os avanços científicos para o campo do Direito.

 

“A ameaça de pagamento constitui mais um incentivo à prevenção de atos de degradação ambiental, a somar ao efeito dissuasor das normas sancionatórias”

 

IHU On-Line – Como fazer este cálculo, considerando que o valor social e ecológico dos recursos naturais não podem ser mensurados apenas considerando sua utilidade ou aplicabilidade técnica e de mercado?

Alexandra Aragão – O valor que se atribuir a cada bem, a cada recurso que presta serviços e funções ecossistêmicas há de resultar de uma convenção. Recorrendo a um exemplo de escola, para tornar mais claro o argumento: Será lógico que um bem vital, como a água, não valha quase nada, em termos de valor de mercado? E será lógico que um diamente, que pouco ou nada serve para a satisfação de necessidades humanas, valha muitíssimo mais, em termos de valor de mercado? Nada disto é lógico. O valor do diamante resultou apenas da conjugação das “forças do mercado”, mais do que de uma análise racional da sua real utilidade. Ora, o que pretendemos com a precificação da natureza é contrariar esta tendência, sabendo que há critérios objetivos que nos permitem saber quais os serviços e funções ecossitêmicas desempenhadas pelos diferentes componentes ambientais. Veja-se o grande avanço que representou a Nomenclatura dos danos ambientais associados aos serviços ecológicos, de Gilles Martin e Laurent Neyret, e sobre a qual escrevemos um artigo , podemos convencionar um valor para tais serviços. Será um valor fictício, inferior ao valor real, mas, como sempre, é melhor do que nada.

IHU On-Line – Quais são as perspectivas que orientam o princípio do poluidor-pagador no Direito Europeu do ambiente?

Alexandra Aragão – No Direito Europeu do ambiente o princípio do poluidor-pagador não consiste apenas, nem principalmente, em pagamentos feitos pelos ‘poluidores’ às vítimas ou ao Estado. Atualmente consiste na imposição de cada vez mais obrigações administrativas, na exigência de cada vez mais deveres de cuidado e na aplicação cada vez mais rigorosa das melhores técnicas disponíveis.

Estes encargos crescentes são impostos, sem qualquer compensação, aos responsáveis por atividades que, apesar de serem socialmente úteis, geram mesmo assim alguns impactos ambientais, ainda que mínimos. Na Alemanha, uma fábrica devidamente certificada por normas de certificação ambiental, que se viu obrigada a adquirir títulos de emissões de gases com efeito de estufa, veio invocar a inconstitucionalidade da lei que criou as licenças de emissão (era uma lei alemã que transpunha uma diretiva europeia). O proprietário alegou que desenvolvia uma atividade legal e que estava a ser verdadeiramente expropriado, mas os tribunais (tanto o alemão como o europeu) não lhe deram razão e a nova exigência legal (que é um reflexo puro e simples do princípio do poluidor pagador) cumpriu-se.

IHU On-Line – Da dificuldade de valorar a natureza, como estabelecer um pagamento que dê conta dos danos ambientais causados?

Alexandra Aragão – As modalidades de pagamento podem ser várias. Podem ser pagamentos dos ‘poluidores’ desde “mercados de poluição” (como o sistema europeu de licenças de emissões), até impostos e taxas sobre atividades que causem danos ambientais (mesmo que sejam atividades legais, mas que causam incidentalmente poluição difusa, residual, cumulativa ou acidental), passando por benefícios fiscais para medidas de proteção ambiental, diretas ou indiretas (mecenato ambiental). É preciso puxar pela imaginação para incorporar, nas transações comerciais diárias, um valor que reflita, pelo menos parcialmente, o valor real da natureza.

Por Andriolli Costa