Empreendimentos e invasões ameaçam comunidade quilombola no Pará


Tubulação despeja resíduos sem tratamento no igarapé Aracanga, fonte de alimento e lazer para os moradores do Abacatal. (Kleyton Silva/Amazônia Real)

Patrícia Azevedo

Entre os 2,5 milhões de habitantes que integram a Região Metropolitana de Belém, um grupo de 121 famílias, com aproximadamente 500 pessoas, luta para preservar seu espaço e suas tradições. Trata-se da Comunidade Quilombola Abacatal-Aurá, que hoje ocupa um território de 618 hectares no município de Ananindeua. Sua história, no entanto, remonta a 1710, quando o conde Coma de Melo, então dono das terras, teve três filhas com Olímpia, uma de suas escravas. No decorrer dos séculos, os descendentes mantiveram vários elementos de sua cultura – o carimbó, os banhos de cheiro, o cultivo de plantas medicinais, a agricultura e o artesanato. Elementos que tentam escapar ao cerco do crescimento urbano e de projetos de infraestrutura, como rodovias e conjuntos habitacionais, que podem impactar diretamente a vida da comunidade.

“De 2017 para cá, Abacatal foi bastante visada. Construíram grandes empreendimentos à margem do território, ficaram muito próximos. Sofremos diferentes ameaças – rodovias, ferrovias, gasoduto, o lixão de Marituba. Condomínio ‘Minha casa, minha vida’, sem estrutura nenhuma para as pessoas viverem lá. Então, a nossa luta é diária”, afirma Vivia Cardoso, presidente da Associação de Moradores e Produtores Quilombolas de Abacatal-Aurá (AMPQUA). Na próxima semana, ela estará em Belo Horizonte para a 4ª Semana de Estudos Amazônicos (Semea), onde participará de dois debates.

O primeiro deles, na quinta-feira (31), abordará a gestação, o parto e o puerpério nas culturas tradicionais. “A nossa comunidade ainda tem pessoas que puxam a barriga, mas não fazem mais parto. Tem uns 20 anos que não tem mais. As mulheres puxam, ajeitam o bebê, mas aí vão para o hospital. As gestantes fazem o pré-natal todo e têm seus filhos lá”, conta Vivia. Na sexta-feira (1º), a quilombola comporá a mesa de encerramento do evento, com o tema “Mulheres dos povos tradicionais da Amazônia: lutas e desafios”. Confira a programação completa!

 Território

Um dos principais desafios da Comunidade Quilombola Abacatal-Aurá é a manutenção e defesa do território. Em 1999, depois de 40 anos do primeiro pleito para titulação da área, a comunidade teve suas terras regularizadas no Instituto de Terras do Pará (Iterpa). No âmbito internacional, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) garante a povos indígenas e tribais, em Estados independentes, o direito ao controle da terra e das atividades que assegurem sua sobrevivência. É considerada o instrumento mais atualizado e abrangente em respeito às condições de vida dos indígenas e povos tradicionais.

“A OIT não garante o direito sobre a nossa terra. Apesar de o Brasil ser signatário, era para os povos indígenas, tribais, quilombolas, ribeirinhos e tantos outros serem amparados por essa lei, de fato. Que não pudessem entrar e expulsar as pessoas dos territórios, fazer empreendimentos. Isso não funciona”, aponta Vivia. Segundo ela, governo e empresas cooptam pessoas das próprias comunidades tradicionais, o que torna a invasão avassaladora. “Você também vai lutar contra o seu, ali do seu lado, porque ele já foi cooptado – pelo emprego, pela mão de obra barata ou por um dinheirinho. Até mesmo por achar que ainda tem gente boazinha, que vai dar alguma coisa para ele no futuro. Ainda tem muito isso aqui”, completa.

Obras do projeto Minha Casa, Minha Vida em Ananindeua. (Foto: Kleyton Silva/Amazonia Real)
Obras do Minha Casa, Minha Vida em Ananindeua. (Kleyton Silva/Amazonia Real)

Consulta

Embora os artigos 15 e 14 da Convenção 169 enfatizem o direito de consulta e participação dos povos tradicionais no uso, gestão (inclusive controle de acesso) e conservação de seus territórios, irregularidades ainda são práticas comuns. Em 2016, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia (Sedeme) do Pará apresentou o projeto da rodovia Liberdade, com o objetivo de ligar Belém aos demais municípios metropolitanos e desafogar a rodovia BR-316. Para o governo, o projeto representa uma oportunidade para consolidação de parcerias público-privadas na região. “Se o governo achar que é melhor para a Região Metropolitana de Belém deixar Abacatal reprimida aqui, num pedacinho de terra, ele vai fazer isso”, afirma Vivia.

Já a comunidade de Abacatal considera a obra uma ameaça à sua soberania. Em resposta, iniciou a elaboração de um protocolo para estabelecer exatamente como os moradores devem ser consultados em caso de realização de projetos. “Temos o nosso protocolo de consulta desde 2017. Nós construímos esse instrumento. Hoje, trabalhamos para levá-lo para outras comunidades. É importante que as pessoas saibam: existe uma lei que nos ampara. Nós podemos denunciar”, enfatizou.

Por outro lado, a quilombola lembra as ameaças sofridas por lideranças e autoridades públicas que trabalham em defesa dos povos tradicionais. “Temos processos na Defensoria Pública, mas eles continuam lá, a passos lentos. Nosso defensor foi afastado, por quê? Porque ele estava sendo um empecilho, estava ajudando a nos defender junto à OIT. São pouquíssimos que estão dispostos a se indispor com o governo por causa de uma comunidade quilombola ou de uma tribo indígena.”

Saídas

Para Vivia, a busca de parcerias é uma das soluções para fortalecer a defesa dos povos tradicionais. Uma delas, já em andamento, foi firmada com o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (Olma). “Juntos, estamos traçando metas não só para Abacatal, mas para outros territórios do estado do Pará”, informa a quilombola. Ela acredita também que denúncias internacionais podem dar mais visibilidade à causa, mas nesse caso, a comunidade precisaria da ajuda de outras instituições.

Enquanto isso, os moradores continuam lutando com a cultura e a tradição. “Seguimos vivendo da agricultura familiar, dos remédios caseiros, da sua prática de trabalhar a terra com responsabilidade e respeito. Cantamos nossas vitórias e dificuldades, em forma de carimbó. Recorremos às benzedeiras. E seguimos brigando contra poderosos. Porque nenhum deles está com a gente, querem só os benefícios”, reforça a quilombola.