Ecologia: O antropoceno e os limites da Terra


Apesar de seu sabor levemente metafísico, a expressão "busca humana" refere-se a algo que não poderia ser mais concreto: o grande desafio da espécie humana é impedir a supressão das condições biogeofísicas que deram base à civilização tal como a conhecemos. O período interglacial extraordinariamente estável que marcou os últimos dez mil anos é o único estado planetário capaz de oferecer apoio à vida social. É verdade que a existência do homem na Terra vem de muito antes, algo entre cem e duzentos mil anos. Mas foi somente com a amenidade e a estabilidade do clima nos últimos dez mil anos que a revolução neolítica e a fantástica diversificação cultural e material que a ela se seguiu tornaram-se possíveis. Durante estes cem séculos, as variações médias de temperatura nunca foram superiores a um grau.

 

O problema é que, de 1960 para cá, o aumento da temperatura global média já chegou a 0,8 grau. Esse registro climático é acompanhado da degradação em outras áreas cruciais do sistema Terra: nove mil espécies de plantas e dez mil espécies animais encontram-se ameaçados e o ritmo de extinção das espécies é hoje cem vezes superior a sua taxa natural. Nada menos que 40% da superfície terrestre são ocupados com atividades agropecuárias. O volume do gelo marítimo no Ártico foi dividido por cinco desde 1979.

 

Estas são apenas algumas evidências que permitiram às mais importantes sociedades científicas da área falar em uma nova era geológica, o antropoceno. Seu traço central é que a humanidade tornou-se a principal força de mudança geológica do planeta. Os efeitos de suas ações são mais ameaçadores que os originários de asteroides, erupções vulcânicas ou movimentos de placas tectônicas. A capacidade do planeta para continuar assimilando e atenuando os impactos vindos da pressão humana está dando visíveis sinais de esgotamento.

 

A junção entre ciência e arte, resultante da coautoria de Johan Rockstrom, autor de mais de cem artigos em revistas do calibre de "Science" e "Nature", e do fotógrafo Mattias Klum não é casual: o texto e as impressionantes fotos deste livro insistem na urgência de se preservar a própria beleza do meio que permitiu o florescimento da vida social. Mais que isso, porém, o trabalho traz duas inovações decisivas na discussão sobre desenvolvimento sustentável.

 

A primeira foi apresentada na Rio+20 e em artigos recentes do grupo liderado por Rockstrom: é difícil imaginar tarefa científica mais urgente que a definição dos limites planetários dentro dos quais a prosperidade pode manter-se e ampliar-se. Rockstrom recupera e valoriza o trabalho do casal Meadows e do Clube de Roma ("Limites ao Crescimento"), mas introduz uma questão nova: qual o espaço seguro de operação cuja ultrapassagem impede que o planeta continue oferecendo os serviços ecossistêmicos que, até aqui, têm permitido o processo de desenvolvimento? A resposta está na delimitação de nove fronteiras planetárias, das quais o livro oferece métricas.

 

Mostra-se, inicialmente, onde devem situar-se esses limites para as mudanças climáticas, a depleção da camada estratosférica de ozônio e a acidificação dos oceanos. Em seguida, o livro expõe outros quatro processos e define seus limites: perda de biodiversidade, uso de água fresca, mudanças no uso da terra e ciclos do nitrogênio e do fósforo. A particularidade dessas dimensões é que, diferentemente das três anteriores, se exprimem de maneira fundamentalmente local, embora tenham, é claro, causas e consequências globais. As duas últimas fronteiras (materiais particulados ou aerossóis e poluição química) são produtos que emergem do sistema econômico e que possuem tal diversidade que não é fácil estabelecer seus limites de operação segura de maneira sintética.

 

O exame dessas nove fronteiras à luz do crescimento populacional, da expansão do consumo e do aumento das desigualdades não permite imaginar que as mudanças globais anunciadas pelo antropoceno serão graduais ou que, uma vez manifestados seus efeitos, seja facilmente possível revertê-los interferindo em suas causas. Uma das mais importantes contribuições científicas do centro de pesquisa dirigido por Rockstrom está na palavra central que lhe dá o nome: Stockholm Resilience Center. Resiliência não é equilíbrio ou crescimento constante e sim a capacidade de um sistema (um indivíduo, uma floresta, uma cidade ou uma economia) lidar com a mudança incremental ou abrupta e prosseguir em seu desenvolvimento. E junto à ideia de resiliência vem a noção decisiva de surpresa: as pesquisas levadas adiante pelo Stockholm Resilience Center mostram que os sistemas, longe de mudarem de forma contínua e gradativa, conhecem mudanças bruscas, inesperadas e, muitas vezes, irreversíveis. Um dos autores citados no livro resume a essência da noção de surpresa: "Noventa e nove por cento da mudança nos ecossistemas parecem acontecer como resultado de apenas um por cento dos eventos que afetam o sistema".

 

É sobre essa base que Rockstrom critica a própria maneira como o desenvolvimento sustentável tem sido definido habitualmente nos documentos internacionais. O objetivo não pode ser o de continuar fazendo o que se fez até aqui, procurando, porém, "reduzir impactos". Por um lado, é necessário colocar a relação entre sociedade e natureza no centro das próprias decisões econômicas. Por outro lado, porém, é fundamental ampliar nossa capacidade de lidar com a surpresa. E isso só se obtém pelo fortalecimento da resiliência, que pode ser também definida como a capacidade de um sistema absorver os distúrbios que o atingem, mantendo suas funções básicas. A variedade dos atuais sistemas socioecológicos é uma das premissas para que aumente nosso poder de lidar com a surpresa. E é exatamente essa diversidade que está sob ameaça.

 

Estamos vivendo na primeira metade da mais decisiva década da história humana. Não que o mundo vá acabar em 2020, mas parece fora de dúvida que o risco de mudanças abruptas, irreversíveis e potencialmente catastróficas aumenta muito se continuarmos na trajetória atual.

Fonte: Jornal Valor