O México tem, desde Junho de 2013, uma lei federal de responsabilidade ambiental (em vigor desde 7 de Julho de 2013) ― disponível aqui. Esta lei tem por objectivo estabelecer o regime de reparação do dano ao ambiente, bem como as vias, judiciais e extra-judiciais, de o efectivar.
Cumpre desde já sublinhar que, para o diploma, dano ao ambiente se traduz em
“Pérdida, cambio, deterioro, menoscabo, afectación o modificación adversos y mensurables de los hábitat, de los ecosistemas, de los elementos y recursos naturales, de sus condiciones químicas, físicas o biológicas, de las relaciones de interacción que se dan entre éstos, así como de los servicios ambientales que proporcionan” (artigo 2, III).
Trata-se de uma concepção adequada de dano ambiental ― na verdade, de dano ecológico ―, uma vez que descarta a consideração de danos pessoais e patrimoniais, centrando-se exclusivamente na recuperação do estado do bem ambiental e/ou dos seus serviços (veja-se também o artigo 14, 4º trav). Vai, de resto, na linha do que prescreve a directiva da União Europeia 2004/35/ CE, do Parlamento e do Conselho, de 21 de Abril¹ que dispõe sobre o regime de prevenção e reparação do dano ecológico. O conceito de dano que a directiva acolhe é, no entanto, menos amplo do que o desenhado pela Ley mexicana, uma vez que a norma europeia estabelece que o dano deve ser “significativo” [cfr. o artigo 2º/1/a) da directiva 2004/35/CE].
Não é nossa intenção descrever a Ley mas tão só apontar algumas das suas virtudes e fraquezas. Assim, seleccionámos sete soluções que nos parecem de aplaudir (a.) e outras tantas que nos merecem reticências (b.)². Esta apreciação parte, todavia, de um pressuposto que desde já avançamos: a consideração da importância da aprovação desta Ley, que autonomiza o dano ecológico, valorizando assim o valor intrínseco dos bens ambientais, independentemente de ofensa ao ser humano ou ao seu património.
a) Aplausos
i) O conceito de dano ecológico, a que já se aludiu. Por um lado, o facto de se ter circunscrito, correctamente, à lesão de bens ambientais de per se e, por outro lado, o facto de se ter restringido a sua caracterização à perda adversa e mensurável, prescindindo-se da “significatividade” imposta pela directiva europeia³;
ii) A abertura do conceito de lesante. Na verdade, a Ley não define “lesante”, ao contrário da directiva europeia, que pressupõe o exercício de uma “actividade ocupacional” (que pode não visar o lucro mas deve revestir um carácter económico e de estabilidade, o que afasta os danos causados na sequência da prática de actividades de lazer). Além de não fechar o seu âmbito subjetivo de aplicação4 a Ley acolhe danos directos e indirectos (cfr. o artigo 2º/IV)5 e abrange tanto pessoas singulares como pessoas colectivas (cfr. os artigos 24 a 26);
iii) A articulação entre a compensação ex ante e a compensação ex post. Com efeito, o artigo 6º/I esclarece que não se considerará dano a lesão previamente compensada pelo agente, nos termos de uma avaliação de impacto ambiental;
iv) A consagração da regra da responsabilidade aquiliana, acrescida de punitive damages (artigo 11º)6 sem embargo da enunciação de situações especiais de responsabilidade objectiva (cfr. o artigo 12º). Como vimos defendendo há alguns anos, a ideia de objectivização generalizada da responsabilidade ambiental pode ser contraproducente (por não incentivar os agentes a introduzir técnicas de minimização do risco, uma vez que, façam-no ou não, sempre serão responsabilizáveis) e economicamente ruinosa (por afastar os investidores, que se sentem inseguros perante uma tão ampla cláusula de responsabilização)7 Sublinhe-se que a responsabilidade (subjectiva e objectiva) cessa perante prova de facto de força maior (artigo 24º, 3º trav.);
v) A reparação do dano ecológico é levada a cabo independentemente da vontade do dono dos bens que sofreram a lesão. O artigo 13º, 4º trav. obriga os proprietários a permitir a efectivação das acções de reparação, sob pena de aplicação de sanções, civis e criminais;
vi) O facto de a admissibilidade de uma acção de efectivação de acções de reparação do dano ecológico gerar oficiosamente, para o juiz, o dever de dirigir injunções às autoridades competentes no sentido de estas tomarem medidas de prevenção do agravamento do dano e da sua correcção (artigo 31º) ― para além de determinar medidas de acautelamento da prova (artigo 32º);
vii) A criação de um Fundo de reparação dos danos ecológicos, exclusivamente afecto a este fim, alimentado principalmente pelas multas aplicadas aos prevaricadores (artigos 45º e 46º).
b) Reticências
i) A possibilidade de “legalização” de um dano, através do pagamento de uma quantia pecuniária. O artigo 14º/II vem estabelecer uma excepção ao princípio da reparação in natura descrito no artigo 13º, que pressupõe o preenchimento cumulativo de três pressupostos:
– que os danos tenham sido provocados por uma obra ou actividade iniciada ilicitamente;
– que os órgãos ambientais com competência autorizativa tenham avaliado os danos causados e aqueles que ainda ocorrerão;
– que tais órgãos ambientais emitam autorização legalizadora com indicação das medidas que o lesante deverá cumprir para garantir a legalidade e sustentabilidade da obra ou actividade.
Esta norma levanta-nos as maiores inquietações, tanto em razão da clara abertura que promove à lógica do facto consumado8 como devido ao facto de esvaziar a figura da compensação ambiental ― que a Ley prescreve como prévia à realização do empreendimento (cfr. o artigo 6º/I), a fim de assegurar o continuum naturale ―, como, enfim, porque permite diferentes graus de protecção do ambiente com base em critérios que a Ley não explicita;
ii) A Ley não explicita, no artigo 24º, se as pessoas colectivas responsabilizáveis são tanto públicas como privadas ― a letra do preceito faz crer que apenas se aplica a privados, o que é redutor;
iii) A limitação da legitimidade das ONG para intervir em procedimentos judiciais ou extra-judiciais. Ressalte-se que o artigo 28º/II só admite a intervenção destas entidades ― as únicas que prosseguem o interesse de protecção do ambiente de forma altruísta ― quando actuem em representação de algum membro de comunidade “adjacente” ao local onde ocorreu o dano ecológico (além de deverem fazer prova do exercício de actividade há pelo menos três anos: 1º trav do artigo 28º).
Esta norma é fortemente lesiva do interesse na preservação do ambiente porque deixa as ONG na dependência de um fenómeno de representação promovido por membros da população, muitas vezes pouco sensibilizados para as questões ambientais ou manipulativamente informados, além de que exige um vínculo de residência totalmente desadequado em razão da natureza descentralizada dos efeitos dos danos ecológicos e da natureza metaindividual destes ― que reclamam uma legitimidade alargada de defesa;
iv) A prescrição de doze anos “contados a partir del día en que se produzca el daño al ambiente y sus efectos” (artigo 29º).
Esta norma, que reduz em mais de metade o prazo de prescrição estabelecido na norma da directiva europeia (30 anos), parece não ter em conta o dano continuado/por acumulação, bastando-se com danos de efeitos imediatos, que são uma minoria no plano ambiental;
v) A avaliação do estado base para aferição do quantum de dano produzido (artigo 36º).
A reticência e face desta norma prendem-se com o facto de a Ley não determinar qualquer obrigação prévia de avaliação do estado base dos componentes ambientais potencialmente lesionáveis aquando do momento de início da actividade. Assim, esta avaliação far-se-á “a partir de la mejor información disponible al momento de su valoración”, metodologia que pode perverter os resultados de reparação natural que a Ley anuncia;
vi) A possibilidade de transacção quanto à medida de reparação do dano (artigo 48º). Esta opção é discutível, porquanto o bem ambiental é colectivo e tem qualidades metageracionais e, por isso, indisponível. O processo de reparação judicial obriga a uma “homologação” do eventual acordo pela Secretaria do Ambiente, o que de alguma maneira salvaguarda a idoneidade das medidas acordadas e acautela a indisponibilidade relativamente a aspectos não transacionáveis. Todavia, a norma do artigo 49º não parece aplicável em sede de procedimentos extra-judiciais, o que poderá frustrar os objectivos da Ley quando a reparação ocorrer por essa via (e sem a intervenção das entidades administrativas ambientais);
vii) A Ley é omissa quanto a presunções de culpa, que podem revelar-se decisivas em casos de poluição difusa (nesse aspecto, tão pouco a directiva europeia as acolhe).
Carla Amado Gomes
Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
carlamadogomes@fd.ul.pt
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[1] O texto da directiva pode consultar-se online: http://eurolex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2004:143:0056:0075:pt:PDF
[2] A Greenpeace México disponibiliza online uma apreciação das soluções da Ley realizada em conjunto com várias ONGs:
[3] Cfr., no entanto, o artigo 6º/II, que estabelece não haver dano quando se “no rebasen los límites previstos por las disposiciones que en su caso prevean las Leyes ambientales o las normas oficiales mexicanas”.
[4] Pelo menos na responsabilidade aquiliana – v. infra no texto, b).
[5] Salvo interposição de facto de terceiro ― cfr. o artigo 2º/VI.
[6] Sobre estes, ver também os artigos 19 a 23º.
[7] Carla AMADO GOMES, Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa, 2012, p. 201.
[8] Sem embargo de a Ley impor a “compensação” ― leia-se: reparação pecuniária ― de todos os danos emergentes como condição de emissão da autorização “legalizadora” ― cfr. o 3º trav. do artigo 14º.