No período em que país vive crise hídrica, vale examinar conquistas da humanidade que, em teoria, proíbem Estados de interromper abastecimento
Por Myriam Bahia Lopes e Bruno de Oliveira Biazattin em OutrasPalavras.net
Água potável é um recurso finito e vulnerável, fundamental à vida, ao desenvolvimento humano e ao meio ambiente. A sua essencialidade e a importância do acesso a este recurso garantem que a água seja um direito humano?
Hoje aproximadamente 884 milhões de pessoas não possuem acesso a água potável e cerca de 1,5 milhões de crianças com menos de cinco anos morrem anualmente devido a falta de água. Além disso, por ano, a falta de água mata mais crianças do que a AIDS, a malária e o sarampo combinados.
O direito humano a água garante o acesso físico a este recurso na quantidade suficiente, de forma segura e com preço acessível para uso pessoal e doméstico. Tal direito é regulado de forma incidental e/ou implícita em outros direitos humanos. Um exemplo de regulação implícita é o direito a vida. Atualmente, tal direito é interpretado de forma ampla, incluindo a obrigação estatal de tomar medidas positivas para assegurar uma vida digna e segura, através do fornecimento de água potável, pois este é um dos elementos mais fundamentais para a existência da vida de qualquer ser humano. A falta de água pode caracterizar tratamento cruel e degradante, quando ocorre. Pois, a sede, quando intensa e prolongada, corresponde a uma profunda agressão à integridade física e a dignidade da pessoa humana. A privação de água jamais pode ser usada como medida disciplinar ou punitiva contra detentos.
Destacamos também o direito a saúde, que impõe aos Estados o dever de prevenir a exposição de indivíduos a recursos hídricos tóxicos, e o direito a subsistência que compreende o acesso aos meios necessários ao sustento pessoal, incluindo o direito a água para irrigação de lavouras ou dar de beber aos rebanhos.
Além das referências subentendidas ao direito a água, atualmente três tratados universais sobre direitos humanos o mencionam de forma expressa e incidental. O primeiro deles é a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, cujo artigo 24(2)(c) determina que os Estados devem combater doenças e a desnutrição de infantes através do fornecimento de água potável. A Convenção Internacional sobre a eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, em seu art.14(2)(h), determina que os Estados devem tomar todas as medidas positivas e apropriadas para eliminar a discriminação feminina nas zonas rurais, de forma a garantir a elas, em particular, acesso a água. Esse dispositivo visa aliviar as mulheres do fardo de se deslocar por quilômetros diariamente a fim de buscar água para as necessidades domésticas. A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, cujo artigo 28(2)(a) expressamente assegura o direito a água como parte integrante da proteção social dos deficientes.
Observamos um engajamento dos Estados na efetivação do direito a água na promulgação de leis nacionais que garantem este direito. A nova Constituição da Tunísia, adotada depois da Primavera dos Povos árabes, em 26 de janeiro de 2014, é um exemplo. Em seu artigo 44, o povo tunisiano estabeleceu que: “[o] direito a água é garantido. A preservação da água e sua utilização racional são deveres do Estado e da sociedade.” Diversos outros Estados também reconhecem explicitamente este direito em seus ordenamentos jurídicos internos, tais como Quênia, África do Sul, República Democrática do Congo, Angola, Níger, Burkina Faso, Bolívia, Equador, Nicarágua, Argentina, Canadá, Uruguai, Ilhas Maldivas, Camboja, Sri Lanka, Bélgica, França e Ucrânia.
Nas normas convencionais universais, o direito a água é assegurado de maneira implícita e incidental. Esse direito é, dessa forma, elemento normativo inseparável do Direito Internacional dos Direitos Humanos e vinculante aos Estados da Comunidade Internacional, incluindo o Brasil.
Publicado originalmente em outraspalavras.net dia 18 de Novembro de 2014.