Entrevista especial com Enrique Castañón
“Precisamos melhorar a produtividade em relação à nossa agricultura em geral. Mas seria um grave erro considerar que os transgênicos são uma panaceia para melhorar a produtividade”, pontua o pesquisador.
Foto: dietaefitness.com.br |
Em meados da década de 2000, as sementes transgênicas de soja cobriam cerca da metade da superfície semeada naArgentina, no Brasil, no Uruguai, no Paraguai e na Bolívia, informa Enrique Castañón em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Contudo, alerta, “continuar apostando nesse tipo de produção primária não parece levar a mudanças significativas na estrutura econômica. A produção massiva com base em transgênicos para os mercados internacionais pode ser interpretada como uma reprimarização da economia”.
A expansão da transgenia em países da América Latina, especialmente naqueles que elegeram governos “progressistas”, não é fácil de ser compreendida, mas dois fatores, segundo o pesquisador, podem ajudar a explicar as opções feitas pelos Estados.
“De um lado, o poder econômico do agronegócio na região é tal que conseguiu consolidar um correlato político importante que não só se refugia nos partidos de direita, mas também impregna os de corte progressista. De outro lado, independentemente do caráter dos governos, as economias da região continuam dependendo fortemente da exportação de matérias-primas, fato que leva os governos a verem a soja e outras commodities agrícolas como uma oportunidade a mais para gerar divisas. Embora tal aposta possa ser entendida a partir das necessidades prementes dos países, também é verdade que continuar apostando nesse tipo de produção primária não parece levar a mudanças significativas na estrutura econômica. Em outras palavras, a produção massiva com base em transgênicos para os mercados internacionais pode ser interpretada como uma reprimarização da economia, que estaria em contradição com os horizontes de industrialização propostos por esses governos”.
Produzir mais não significa produzir melhor e nem aumentar o peso da agricultura na economia. Para o pesquisador daFundação Tierra, da Bolívia, é preciso ter essa clareza quando se discute desenvolvimento da produção agrícola. Como o debate do tema passa essencialmente pela produção de transgênicos, é preciso também entender a lógica da transgenia. Ainda mais se for vista como única forma de desenvolvimento agrícola.
Castañón destaca que por um lado a transgenia pode aumentar a lucratividade no campo. Mas, por outro, cria uma dependência dos detentores da tecnologia dessa forma de produção. Para ele, isso se entende pelo fato de a lógica da transgenia estar enraizada na mesma lógica do agronegócio. “É evidente que a introdução de sementes geneticamente modificadas coincide com a implementação de políticas neoliberais. De fato, a tecnologia transgênicafaz parte do projeto agrário proposto pelo neoliberalismo internacional, o chamado agronegócio. Nesse projeto, existe um controle oligopólico dos meios de produção (sementes, agroquímicos) por parte de empresas transnacionais”, explica.
As implicações não se dão apenas do ponto de vista econômico. Podem ter reflexos na segurança alimentar da população. “Na medida em que se consolida o agronegócio, aumentam as importações de alimentos para a população”, diz. Ou seja, é possível aumentar o lucro com esse modelo de produção. Porém, haverá a necessidade de importação de outros tipos de alimento. O resultado é a dependência econômica e tecnológica de países que articulam esse modo de produção, deixando a população do país produtor num mesmo círculo vicioso. “Devemos buscar um modelo produtivo inclusivo, gerador de empregos e cujos excedentes favoreçam o desenvolvimento das nossas economias, e não dos capitais transnacionais”, pondera.
Enrique Castañón Ballivián é pesquisador boliviano. Tem mestrado em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Faculdade de Ciências Sociais e Políticas Públicas da Faculdade do Rei, da Universidade de Londres. Atualmente, trabalha para a Unidade de Pesquisa da Fundação Tierra.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em artigo recente, o senhor mencionou que a adoção de transgênicos está se convertendo em um padrão comum de políticas agropecuárias na América do Sul. Desde quando evidencia o início desse processo?
Enrique Castañón – A adoção de transgênicos no Cone Sul esteve inicialmente associada à produção de soja. As variedades transgênicas desse grão oleaginoso começaram a ocupar quantidades significativas de terra no fim dos anos 1990. Na Argentina, por exemplo, já em 1997, cerca de 24% da soja semeada era transgênica. Em outros países, como no Brasil, Uruguai, Paraguai e Bolívia, essa adoção se deu de maneira mais paulatina. De todos os modos, em meados da década de 2000, as sementes transgênicas de soja cobriam cerca da metade da superfície semeada em todos os países mencionados.
IHU On-Line – Por quais razões os transgênicos passaram a fazer parte das políticas agropecuárias na América do Sul?
Enrique Castañón – É evidente que a introdução de sementes geneticamente modificadas coincide com a implementação de políticas neoliberais. De fato, a tecnologia transgênica faz parte do projeto agrário proposto pelo neoliberalismo internacional, o chamado agronegócio. Nesse projeto, existe um controle oligopólico dos meios de produção (sementes, agroquímicos) por parte de empresas transnacionais como a ADM, Cargill, Monsanto, Bunge,Louis Dreyfus, Syngenta e algumas mais. São essas empresas que aproveitaram a "abertura neoliberal" para consolidar uma agricultura voltada para os seus interesses corporativos. Aqui, os governos neoliberais forneceram todas as facilidades, tanto em investimentos quanto em políticas públicas.
"O poder econômico do agronegócio na região é tal que conseguiu consolidar um correlato político importante que não só se refugia nos partidos de direita, mas também impregna os de corte progressista" |
IHU On-Line – Os países da América Latina que elegeram presidentes “progressistas” recebem várias críticas por conta das opções políticas feitas pelos Estados, e uma delas diz respeito à transgenia. Como entender que países como Brasil, Bolívia e Equador aceitam e aprovam a transgenia?
Enrique Castañón – Essa não é uma questão simples. Sem ter uma resposta concreta, parece-me que deveriam ser considerados, pelo menos, dois fatores principais. De um lado, o poder econômico do agronegócio na região é tal que conseguiu consolidar um correlato político importante que não só se refugia nos partidos de direita, mas também impregna os de corte progressista. De outro lado, independentemente do caráter dos governos, as economias da região continuam dependendo fortemente da exportação de matérias-primas, fato que leva os governos a verem a soja e outras commodities agrícolas como uma oportunidade a mais para gerar divisas.
Embora tal aposta possa ser entendida a partir das necessidades prementes dos países, também é verdade que continuar apostando nesse tipo de produção primária não parece levar a mudanças significativas na estrutura econômica. Em outras palavras, a produção massiva com base em transgênicos para os mercados internacionais pode ser interpretada como uma reprimarização da economia, que estaria em contradição com os horizontes de industrialização propostos por esses governos.
IHU On-Line – Em quais países da América do Sul a transgenia tem se tornado uma prática recorrente?
Enrique Castañón – Provavelmente, pode-se argumentar que a Argentina está se convertendo em uma espécie de epicentro para a disseminação dessas sementes. De fato, com a construção de uma nova planta na província deCórdoba, esse país contará com duas das maiores plantas de produção de transgênicos no mundo. No entanto, a adoção da transgenia em todo o continente se encontra cada vez mais generalizada, principalmente para o cultivo da soja e do milho. É alarmante constatar que as variedades transgênicas de soja ocupam mais de 90% da área semeada em quase todos os países, com exceção do Brasil, onde, de todos os modos, chega a mais de 70%. As variedades transgênicas de outros cultivos, como o milho e o algodão, tiveram uma trajetória semelhante, embora se encontrem menos difundidas.
IHU On-Line – Quais são suas evidências de que os Estados que “abraçam” os transgênicos perdem soberania alimentar?
Enrique Castañón – Se entendermos a soberania alimentar como a capacidade de um Estado de decidir as suas próprias políticas agropecuárias que garantam uma dieta diversificada e nutritiva para a sua população, é evidente que os transgênicos se encontram nos antípodas dessa noção. De um lado, a adoção dessas tecnologias, com frequência, leva a uma dependência que acaba condicionando a produção agrícola à disponibilidade – e ao preço – dessas sementes. Essas condições não são controladas pelos Estados, mas pelas transnacionais no Norte global. Desse modo, perde-se, na prática, a capacidade de planejar a produção agrícola de forma soberana.
Aqui, devemos acrescentar que esse tipo de produção altamente intensiva em capital e tecnologia tem como principal fim a exportação, e não o abastecimento de alimentos no mercado interno. Paralelamente, a consolidação do agronegócio acaba corroendo a agricultura camponesa tradicional, que, historicamente, esteve focada na produção de alimentos para o mercado interno. De fato, há evidências demonstrando que, na medida em que se consolida o agronegócio, aumentam as importações de alimentos para a população. As estatísticas oficiais, ao menos no caso boliviano, estão começando a corroborar essa tendência.
"Na medida em que se consolida o agronegócio, aumentam as importações de alimentos para a população" |
IHU On-Line – Os defensores da transgenia defendem que os transgênicos aumentam a produtividade. Em termos quantitativos isso é verdade? E em termos qualitativos, que avaliação o senhor faz?
Enrique Castañón – A produtividade agrícola não depende exclusivamente do tipo de semente que se utiliza, mas de um conjunto de condições, tais como a qualidade do solo, a disponibilidade de irrigação, etc. Embora com as condições adequadas seja possível que uma variedade transgênica possa chegar a ser mais produtiva do que uma convencional, muitas vezes esse argumento esconde o fato mais comprovável de que a adoção de transgênicos, principalmente, reduz os custos de produção e, consequentemente, aumenta os lucros. Isso é precisamente o que constatamos nas nossas pesquisas.
Agora, devo dizer que sou da firme opinião de que precisamos melhorar a produtividade de trabalho em relação à nossa agricultura em geral e na agricultura camponesa em particular. Mas, para isso, devem ser considerados múltiplos fatores, e, certamente, seria um grave erro considerar que os transgênicos são uma panaceia para melhorar a produtividade.
IHU On-Line – Seu artigo enfatiza que o problema central com os transgênicos não reside na tecnologia em si, mas no controle de oligopólio que os capitais transnacionais exercem sobre estes com a finalidade de subsumir a agricultura nos seus processos de acumulação de capital. Pode explicitar quais são tanto os problemas em relação à tecnologia quanto os de ordem “financeira”?
Enrique Castañón – A tecnologia tem sido criticada pelos seus efeitos nocivos tanto para a saúde quanto para o meio ambiente, associando-a com o câncer e a perda de biodiversidade, respectivamente. Sem negar esses efeitos – dos quais eu não posso comentar porque não é o meu campo de perícia –, a partir da minha perspectiva, o principal problema reside, sobretudo, no fato de que o projeto agrícola do qual os transgênicos fazem parte nada mais faz do que reproduzir as condições que, historicamente, restringiram o desenvolvimento dos nossos países. Isso porque, como mencionei, envolve o fato de ceder o controle sobre a produção agrícola ao ficar exposto à vontade das empresas transnacionais e à volatilidade dos mercados internacionais. Além disso, optar por esse modelo produtivo também envolve continuar com o padrão primário-exportador que, comercialmente, continua sendo desfavorável para os nossos países.
IHU On-Line – Qual tem sido a contribuição dos Estados Unidos para a produção de transgênicos?
Enrique Castañón – O desenvolvimento da indústria transgênica não está ligado a nenhum Estado em particular, mas a empresas transnacionais que contam com capitais de diversas nacionalidades. Apesar de ser evidente que os interesses econômicos correspondem aos países do Norte global.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Enrique Castañón – Existe a necessidade de se promover um maior debate sobre as políticas agropecuárias que estamos implementando na região. E isso inclui, sem dúvida, a questão dos transgênicos. Certamente, precisamos tirar vantagem do potencial agrícola dos nossos solos e apontar para a melhoria da nossa produtividade agrícola. Mas, para isso, devemos buscar um modelo produtivo inclusivo, gerador de empregos e cujos excedentes favoreçam o desenvolvimento das nossas economias, e não dos capitais transnacionais.
(Por Patricia Fachin e João Vitor Santos. Tradução de Moisés Sbardelotto)