Um novo humanismo como saída para as crises brasileira e internacional


Entrevista especial com Cristovam Buarque

“A saída não está na economia. Não está nem mesmo na política. Mas, sim, na revolução de uma mente humana para fazer uma nova política e uma nova economia”, diz o senador.

 

 

Foto: comoassimblog.com.br

Ajuste fiscal, corte de gastos e elevação da taxa de juros. São medidas emergenciais, quase que como água para apagar labaredas. É nessa linha que vai a reflexão do ex-reitor da Universidade de Brasília – UNB e senador Cristovam Buarque. Para ele, a crise no Brasil é maior do que esse incêndio político e econômico e precisa de mudanças mais profundas. Aliás, é um momento não só do Brasil, mas também mundial. O que acontece com o Brasil e alguns países da Europa ainda são apenas sintomas de uma doença maior.

 

Para Cristovam, essa patologia pode ser denominada “crise do humanismo”. “No passado, tínhamos a crise do capitalismo, tínhamos a crise do socialismo. Mas, agora, é uma crise da civilização industrial. Civilização que contém o capitalismo e o socialismo. Mais do que uma crise de como organizar a sociedade e a economia, é uma crise de para onde devemos ir”, explica em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.

Pensar um novo humanismo, para o senador, passa essencialmente pelo debate da educação. Porém, foge a críticas monocórdicas de que faltam investimentos na escola. Cristovam traz à luz um conceito de educação que reúne escola, família e mídia. “A santíssima trindade da educação é a mídia, a família e a escola”, completa. Acredita que é na família e pelo advento dos meios de comunicação que se inicia uma relação diferente com o mundo. Na “santíssima trindade” é essencial a busca pelo fim do consumo. Debate que vai para além do binarismo socialismo x capitalismo. “Vimos que o Estado não foi eficiente na União Soviética e estamos vendo que o mercado não é eficiente, sobretudo depois da crise de 2008”, explica, ao defender a constituição de um novo ser humano através das novas gerações.

Os desafios são muitos. Cristovam reconhece que ainda não dominamos a tecnologia. “Não fomos ainda educados para usar esses novos métodos educativos na profundidade que necessitamos na revolução educacional. Estão sendo usados de uma maneira superficial”. Além disso, destaca que dessa crise precisa surgir uma nova revolução baseada nas ideias. E o caminho é revisitar conceitos do passado com olhos no presente. Um exemplo é o conceito de nacionalismo, que, para Cristovam, precisa ser revisitado. “O nacionalismo tem que ser integrador. Não quero ficar no nacionalismo tradicional, que é antigo, nem quero cair na diluição do globalismo que está aí”, pontua, ao destacar que essa lógica ainda não está clara para a esquerda como um todo, levando à chamada “crise da esquerda”.

Cristovam Buarque é senador pelo PDT do Distrito Federal. Foi reitor da Universidade de Brasília, tendo grande destaque como educador. É engenheiro mecânico por formação, além de economista. Ainda foi governador do Distrito Federal e criador do programa Bolsa Escola. Ex-ministro da Educação no primeiro Governo Lula, foi eleito senador pela segunda vez em 2010. É autor de inúmeros livros, entre os quais, O erro do sucesso, Garamond, 2014, The end of Economics? Ethics and the Disordr of Progress, Thesaurus, 2012 e Da ética à etica. Minhas dúvidas sobre a ciência econômica, Editora IBPEX.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Muito se fala, nos últimos tempos, sobre períodos de crise. Crise no governo, crise na sociedade industrial, crise no humanismo. Quais são os fundamentos deste mal-estar que estamos vivendo na contemporaneidade?

 

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Cristovam Buarque – Estamos vivendo uma crise mais profunda do que as que tivemos no passado. No passado, tínhamos a crise do capitalismo, tínhamos a crise do socialismo. Mas, agora, é uma crise da civilização industrial. Civilização que contém o capitalismo e o socialismo. Mais do que uma crise de como organizar a sociedade e a economia, é uma crise de para onde devemos ir, em termos de humanidade. Não havia, até muito recentemente, a crise ecológica. O propósito civilizatório de produzir cada vez mais e consumir mais tinha duas visões: distribuir bem por meio do estado, o socialismo, e não se preocupar com a distribuição que era feita pelo mercado. Mas o propósito era o mesmo: produzir mais para consumir mais. Hoje, sabemos que isso não é possível. Temos um limite na produção, temos um limite ecológico.

 

Então, isso gera uma crise de conceito, de propósito de civilização. Até bem pouco tempo, alguns diziam: o mercado é que funciona. E outros diziam: o Estado que é eficiente. Vimos que o Estado não foi eficiente na União Soviética e estamos vendo que o mercado não é eficiente, sobretudo depois da crise de 2008. Então, a crise agora é mais profunda. Por isso a crise do humanismo, como ele foi criado a partir do século XV, XVI. Aquele humanismo punha o homem como o todo poderoso em relação à natureza. Hoje, o novo humanismo vai exigir uma modéstia de perceber que nós, seres humanos, somos pequenos diante da realidade natural, da natureza.

Esse novo humanismo tem que descobrir que o ser humano — mesmo que seja considerado construído à imagem e semelhança de Deus — tem limites e não é tão poderoso quanto imaginava. Ele depende da natureza. Vamos a um exemplo: o que acontece em São Paulo com a crise de água. Achávamos que éramos capazes de inundar as ruas de automóveis e para isso podíamos pavimentar toda a superfície terrestre com asfalto. E que poderíamos continuar ocupando, de uma maneira desmesurada, a Amazônia. De repente, há uma crise do ponto de vista ambiental que desarticula as chuvas e, ao mesmo tempo, nós não fomos capazes de fazer com que as águas corressem como elas deveriam. E elas se revoltaram. Geraram inundações e escassez. O novo humanismo precisa entender o tamanho do ser humano na natureza, o tamanho pequeno.

IHU On-Line – O senhor vislumbra uma saída ou um caminho para sairmos desse mal-estar?

Cristovam Buarque – Eu tenho uma ideia. Pode ser utópica e ilusória, idealista do ponto de vista filosófico: é a educação plenamente humana. A saída não está na economia, como pensávamos até recentemente. Não está nem mesmo na política, por ela. Mas, sim na revolução de uma mente humana para fazer uma nova política e uma nova economia. Nós deveremos ter uma geração que entenda os limites do ser humano diante da natureza, que perceba que ser feliz é mais importante do que ter bens de consumo, que a felicidade exige mais tempo livre do que bens materiais. E esse tempo livre tem que ser utilizado para atividades culturais, imateriais, bem mais do que o consumo de bens materiais. Isso só virá de um processo de educação. E educação não é só escola.

IHU On-Line – Justamente. Quando falamos em educação, somos remetidos à ideia de investimento na instituição escola. Mas qual é esse conceito de educação a que o senhor se refere?

Cristovam Buarque – Antigamente, nas chamadas sociedades primitivas, a educação era uma questão da família e da tribo, num sentido amplo. E não da escola. A escola surge com as primeiras civilizações. Mas, a educação é feita pelas escolas e também pela família. Até a minha geração, quando eu era criança, a educação era a escola e a família, já não tanto a tribo. Sumiram as tribos, mas as famílias ficaram.

Acontece que neste mundo de hoje ocorreram duas coisas: o desaparecimento, a redução da importância da família – com o trabalho dos pais, com a desarticulação das famílias, que já não preenchem esses espaços – e assim surgiu o espaço que é a mídia. Então, a santíssima trindade da educação é a mídia, a família e a escola. Com a primazia da escola ainda, mas caminhando para reduzir sua primazia diante da importância da mídia. Então, educação é você começar a ter um sistema onde família – ou o que ainda existe dela -, escolas – porque a gente precisa ter uma escola diferente, que não tem no Brasil e nem nos países ricos – e, acima de tudo, a mídia – no sentido de rádio, jornal, das redes sociais ou celular na mão de um jovem – sejam vistos como parte de um sistema educacional. Tudo isso é que vai fazer a revolução da mente. É que vai trazer essa mudança no mundo por meio da educação das pessoas.

Só que aí é que vem o problema: não sabemos como fazer com que um celular se transforme num veículo educativo. Não sabemos como colocar a televisão dentro de um sistema educativo, mantendo ao mesmo tempo uma liberdade de imprensa de seus donos. E tem que manter a liberdade de imprensa, senão deixa de ser educativo. Mas trabalhando apenas para o mercado ela não é educativa. Nem a televisão, nem os jornais.

E a mídia social que a gente conhece, a internet, carrega talvez tantos componentes deseducativos quanto educativos. Sobretudo no que se refere — e isso é muito importante para o humanismo — à profundidade dos temas como são estudados e conhecidos. Nós entramos em um tempo em que as pessoas ficam lendo pedaços de livros e não leem os livros fundamentais, os chamados canos, o cano da cultura. Ficamos lendo coisas superficiais e em pedaços. Hoje eu sou usuário de e-books. Leio, hoje, talvez mais pelo kindle e pelo Ipad do que no papel. E já descobri — eu que sou eu, com essa minha idade, na minha formação — que hoje leio menos aprofundadamente. Eu, hoje, termino menos livros que começo a ler do que há cinco anos.

IHU On-Line – E o senhor acredita que a ferramenta tecnológica tem contribuído para isso?

 

Novo humanismo vai exigir modéstia de perceber que nós somos pequenos diante da realidade natural

Cristovam Buarque – Tem contribuído, sim. Porque nós não fomos ainda educados para usar esses novos métodos educativos na profundidade que necessitamos na revolução educacional. Eles estão sendo usados por todos nós de uma maneira superficial. Mas não dá para parar. O destino é esse. O futuro é esse. A escola vai ter que ser cada vez mais “tecnificada”. Não sei se dá para usar essa palavra. Mas, cada vez mais, o professor vai ser como o cavaleiro em cima do computador. O computador vai ser cada vez mais o cavalo do professor, e a televisão, cada vez mais o veículo de transmissão de conhecimento. Cada vez mais a gente terá menos a presença física do professor em sala de aula e mais o uso dos equipamentos de educação a distância. Inclusive nas primeiras idades, em que a gente não pode pensar a educação com uma criança fora da escola. A escola também tem um papel de sociabilizar a criança, mas dentro da sala de aula uma parte vai ser da televisão, através de programas educativos feitos para aquela idade, com aqueles temas.

 

Você ensina astronomia hoje melhor por meio de um professor que tem acesso aos softwares de astronomia do que um professor apenas com quadro-negro. No quadro-negro, ele faz um pontinho branco dizendo que é o sol. Faz outro prontinho branco dizendo que é a terra, faz uma roda e diz que é a órbita terrestre. Nenhuma criança aguenta isso. Isso não é verdade, para ela. Isso tem que ser mostrado colorido, dinâmico, em movimento. Isso vale para a astronomia e vale para a biologia. A aula sobre cérebro desenhando num quadro negro ou em cartazes, quando hoje você vê o cérebro, não tem sentido. Tem que passar isso para as crianças. Tudo isso é parte da crise do humanismo.

IHU On-Line – E como fugir da educação tecnificante, valorizando somente a técnica?

Cristovam Buarque – O problema não é como fugir da técnica e sim como dominar a técnica e não ser dominado por ela. A técnica é positiva dependendo da ética de quem a usa. O computador é uma maravilha, mas pode ser usado para o mal. O professor que usar os programas de televisão só para não dar aula, porque não gosta de dar aula, vai prestar um desserviço. Agora, aquele que pesquisa quais são os melhores softwares e que adaptam, e para isso é preciso conhecimento, à necessidade de suas turmas, é uma maravilha.

É possível que quando tenham inventado o livro impresso algumas pessoas possam ter dito que não tinha sentido. Porque perdia a relação com aqueles escrivinhadores, que escreviam o livro à mão. Quando começou o cinema, muita gente das artes dramáticas foi contra. Disseram que não fazia sentido você ter o deleite com a peça teatral na tela de cinema. Achavam que só fazia sentido o drama se o ator estivesse no mesmo espaço de quem assistia à peça. Por isso, muitos atores de teatro não foram para o cinema. Achavam que isso negava a própria essência da arte dramática.

 

Bom professor é melhor se for capaz de usar bem as técnicas modernas de pedagogia

Hoje, há pessoas que acham que o uso das técnicas modernas não é compatível com a nobreza da atividade pedagógica. Era capaz de ter havido isso quando o quadro-negro foi inventado. Quadro-negro é um instrumento muito recente, tem só uns 250 anos. Até o século XVIII, as aulas eram dadas da mesma maneira que Sócrates dava em Atenas, com o professor rodeado de seus discípulos, nem alunos se chamavam. Então, o quadro-negro foi que permitiu colocar 40 pessoas na sala. Foi o quadro-negro com microfone que permitiu colocar 200. A televisão permite colocar o mundo inteiro numa imensa, grande sala de aula. A gente não pode ter medo da técnica, mas não se pode cair sob a dominação dela. Hoje, tem gente achando que jogar computador pela janela dentro de uma sala de aula melhora a qualidade da escola. Não melhora nada. O que melhora a escola é o bom professor. Agora, o bom professor é melhor se ele for capaz de usar bem as técnicas modernas de pedagogia, da tecnologia da informação.

 

IHU On-Line – Ainda sobre crise, fala-se que não se tem mais um pensamento nacionalista no Brasil, capaz de promover o cimento social de uma ideia única de nação. Concorda?

Cristovam Buarque – Concordo, desde que essa ideia de nação esteja adaptada ao mundo global de hoje. Faz parte do novo humanismo entendermos que nós brasileiros somos parte da humanidade e que temos de caminhar para uma grande integração da humanidade em uma só dentro de alguns séculos. A ideia de que a nação brasileira fica melhor se isolada do resto do mundo não é uma ideia humanista atual. Porque hoje o mundo ficou global. Não adianta cortarmos as pontes que foram construídas pela internet e pelo comércio internacional, pela televisão global que temos hoje. O nacionalismo tem que ser integrador. Não pode mais ser desintegrador, separando o Brasil do resto do mundo. Isso é outra crise no pensamento. Como ser nacionalista sem cair num isolamento? Como entender o mundo global sem diluir a nação?

IHU On-Line – E o senhor tem respostas para essas questões?

Cristovam Buarque – Não. Estou procurando conversando com vocês. Eu, pelo menos, tenho as perguntas. Não quero ficar no nacionalismo tradicional, que é antigo, nem quero cair na diluição do globalismo que está aí. Mais uma vez a resposta é a educação. É a gente formar uma mente a partir das crianças que seja capaz de dizer “eu sou brasileiro” e “eu sou humano”. “Sou brasileiro, mas também sou parte do grande projeto que é a humanidade”.

Na Europa, tentou-se isso. Está havendo certa crise também. Mas eu conheci jovens que me diziam: “eu sou europeu. Nasci em Portugal”. Ou seja, tinha o conceito de continente que antes não existia. Deu um salto na globalização sem perder o pé no país dele, que era Portugal. Com a crise da unidade europeia, se vê como é difícil ter um pé no país e um pé no mundo, como é difícil ser global e ser nacional. É a crise europeia que está mostrando isso. A Grécia está mostrando isso. A Espanha está mostrando isso. São países que começam a duvidar se ser da Europa é bom. Mas por que essa crise? Disseram que todo mundo vai ter o mesmo padrão de consumo dos alemães. E viram que para isso Espanha, Itália, Grécia tiveram que se endividar muito. E aí vem a crise.

Se a Europa tivesse mudado o propósito civilizatório, ao invés de ser a taxa de crescimento que não deslancha, mas sim mais tempo livre, mais produção cultural, imaterial… Se tivesse feito esse salto, a Europa estava bem. Ela deu um salto do ponto de vista comercial, mas não do ponto de vista de filosofia, o que se chama de ontológico. Ou seja, o propósito da civilização europeia. O que fizeram? Continuaram com o propósito da revolução industrial em um tempo de globalização. Isso é o que trato em meu livro O Erro do Sucesso (Rio de Janeiro: Garamond, 2015). Ali eu coloco a civilização numa encruzilhada em busca de um novo humanismo.

IHU On-Line – Fala-se que o insucesso do governo desenvolvimentista do PT se deu em função de estar num momento, mas pensar muito com a cabeça na década de 80, talvez até anos 70, ainda inspirado na década de 50, final do governo de Getúlio Vargas. O senhor concorda? É possível se pensar nessa linha com relação à Europa, fazendo uma analogia com o Brasil?

Cristovam Buarque – É possível fazer muito essa analogia. Mas eu aprofundo dizendo que pior é que o governo do PT está no poder pensando em continuar no poder. Ou seja, chegou ao poder e passou a ter como propósito continuar no poder. Por exemplo, o grande programa, a marca do Lula do ponto de vista de novidade, foi ter ampliado o Bolsa Escola – de Fernando Henrique Cardoso – de 4 milhões para 12 milhões de famílias. Mas foi uma visão antiga porque se manteve assistencial. Foi um avanço do ponto de vista da generosidade, porque a elite brasileira não tem a tradição de generosidade, é uma elite egoísta. Então, houve um salto para a generosidade em pegar uma quantidade de bilhões de Reais e transferir para os pobres. Mas não deu educação para os pobres. Então, ficou no período anterior.

O programa não foi emancipador. O que precisava era de um programa emancipatório para a população pobre. O Bolsa Família não é emancipatório. O Bolsa Escola era. Não por causa da bolsa, mas por causa da escola. O Bolsa Família é um programa assistencial porque é bom, é generoso, porque o povo precisa comer. Mas não basta comer. É preciso dar um salto adiante e esse salto, na cabeça do Lula e do PT, é o mesmo dos anos 80: vamos criar emprego e essas pessoas sairão da pobreza. Só que hoje não se cria emprego sem dar educação. Antigamente, no que se chama keynesianismo na economia, você criava emprego criando estrada. Para abrir estrada você precisava de pessoas. Hoje, para abrir uma estrada precisa de técnicos que manejem as novas máquinas. E precisa de educação para você manejar uma dessas máquinas do agronegócio, ter um motorista habilitado em técnicas de computação. Eu entrei numa dessas máquinas e parecia que estava na cabine de um avião.

 

O que o governo do Lula não entendeu é que hoje a economia tem que ser do conhecimento

O que o governo do Lula, governo do PT, não entendeu é que hoje a economia tem que ser do conhecimento, da ciência e tecnologia. A base da ciência e tecnologia é a base do ensino superior, que tem uma base no ensino básico. Não fizeram esse salto, não fizeram essa revolução. E, além disso, acreditaram que o país podia, de certa maneira, um tanto fechado, encontrar seu caminho próprio. Foi um erro total de estratégia. Está aí nossa crise. Essa crise que estamos vivendo não é só uma crise por causa do déficit fiscal, que é também devido à farra com que o governo Dilma tratou as finanças públicas. Foi uma farra, agora está numa ressaca. Mas não é só isso. A crise vem do propósito da sociedade brasileira querendo apenas aumentar o padrão de consumo e distribuir algumas bolsas para os que ficarem de fora. E não ver que nós precisamos de uma economia eficiente, que exige educação, e de uma sociedade harmônica, o que exige educação igual a todos. Isso não foi visto. E isso é parte da crise hoje. É uma crise intelectual, é uma crise de conceito, de projeto de nação.

 

IHU On-Line – Como o senhor observa essa chamada crise da esquerda no país? Está mesmo em crise? E, se sim, como sair dela?

Cristovam Buarque – Está em crise porque continua prisioneira do passado. E você pode ser de direita preso ao passado, mas não se pode ser de esquerda preso ao passado, buscando a liberdade do futuro. Ser de esquerda é querer o futuro. Esse é o primeiro ponto. E querer esse futuro vem automaticamente pela evolução, como muitos direitistas defendem e nós temos que respeitar. Eles querem melhoria, um povo melhor. Mas eles acham que a evolução natural fará isso. Não. Não fará. Para melhorar, tem que haver intervenção. Intervenção social e política. Tem que ter uma organização social procurando isso. Pode chamar de Estado.

Então, ser de esquerda é olhar o futuro. E olhar, sobretudo, em momentos como esses, o futuro das ideias. Há momentos em que as ideias velhas servem para construir o futuro real. Mas há momentos em que o futuro da realidade só virá se mudarmos as ideias do presente. A grande crise da esquerda é que existe um vazio de ideias num mundo de esquerda. Nós temos alguns que pensam hoje, e já faz algumas décadas, o problema ambiental – que tem que fazer parte da agenda – , mas não consegue casar a agenda ambiental com a agenda social. Há outros que pensam a agenda social, mas desprezam a agenda ecológica. Vou dar exemplo: o verde que diz que é preciso proteger a natureza, mesmo que isso gere desemprego, mesmo que isso mantenha a fome. E os da agenda social: é preciso criar emprego e acabar com a miséria, mesmo que destruindo a natureza.

Nós não construímos ainda, de uma maneira plena, correta e lógica, um projeto que diga que nós vamos proteger a natureza e ao mesmo tempo vamos acabar com a pobreza e melhorar as condições de vida de todos. Não conseguimos e não conseguiremos, em grande parte, porque não mudamos o propósito. Só vai ser possível combinar o respeito à natureza com a ética social em relação à punição da exclusão e emancipação do povo, quando dissermos: olha, você não vai passar fome, você vai ter uma vida boa. Mas você não vai ter automóvel. Porque não dá para ter automóveis para todos. Mas tanto os verdes quanto os outros continuam dizendo que a gente vai ter um automóvel para cada família. Essa é uma proposta dos anos 50, que o povo ainda quer.

E aí vem a outra crise: como ser político e como se eleger dizendo que não dá mais para elevar o nível de consumo de todos? É difícil, pois é o que está na cabeça das pessoas. Essa é a crise da esquerda. Ela não foi capaz, ainda, de entender o novo tempo.

O papel do Estado

Outra ideia que a esquerda ainda não conseguiu entender é o papel do Estado. Não é mais o que era até 50 anos atrás. O Estado hoje é uma instituição que tem que ser melhor do que era. É preciso ser forte e tudo bem. Mas não é mais aquela. Melhor no sentido de ser mais eficiente e mais justo. E menor, também, no sentido de não precisar sair estatizando o setor produtivo. A não ser em casos em que se age como uma Petrobras. Mesmo assim, a esquerda entendeu que a Petrobras era do Partido dos Trabalhadores e não da nação brasileira.

 

A esquerda também não entendeu a diferença entre privado e público

A esquerda também não entendeu a diferença entre privado e público. A esquerda ainda continua confundindo o que é estatal com o que é público. E que para ser público tem que ser estatal. Está errado isso. Por exemplo, um hospital do governo que não funcione bem não é público. É do Estado. E um hospital que tem um dono particular, mas que seja capaz de atender bem alguns doentes sem exigir que ele pague, porque alguém paga, provavelmente o Estado, ele é público.

 

A esquerda não entendeu ainda, por exemplo, a definição do que eu costumo dar como de um hospital público. Eu acho que preenche três condições: não tem fila para entrar, não se sai doente e nem precisa pagar. Para mim isso é público. Pode ser um hospital particular em convênio com algum setor governamental. Isso vale até para escola. Eu não descarto a possibilidade de escolas com parcerias público-privadas, que é assim que chama. A esquerda não entendeu ainda. Acha que a escola pública é a escola estatal. Tem escola estatal que não é pública, que não presta o serviço que nossas crianças precisam. E pode haver escolas particulares que são públicas, se atendem bem o que a população e as crianças precisam sem que os pais tenham que pagar. Vou dar um exemplo: o Bradesco — sem querer fazer propaganda, nem tenho conta nesse banco — tem uma fundação, a Fundação Bradesco. Ela tem uma rede de escolas da Fundação, que é uma instituição privada. Mas as escolas do Bradesco são públicas. Porque são de alta qualidade, preenchem um vazio muito grande numa demanda de educação nas camadas pobres, de forma gratuita, com alta qualidade. Eu falo dessa Fundação porque é a que conheço mais, mas vale para muitas outras. A esquerda está velha, ainda achando que público é sinônimo de estatal.

IHU On-Line – Que Brasil teremos nos próximos quatro anos?

Cristovam Buarque – Eu imagino que não vá ser muito diferente do que está posto aí. Até porque temos um governo que acaba de começar e que tem um mandato de quatro anos e que só em caso muito excepcional esse mandato seria interrompido. Eu não vejo a possibilidade de termos uma mudança.

Acho que é possível que, em quatro anos, se saia dessa crise que está aí se a presidente decidir conversar com as oposições com todas as forças. Se as oposições aceitarem a responsabilidade que têm diante do país de dizerem à presidente que foi eleita: ela está querendo conversar, vamos levar nossas propostas. Se criar um governo capaz de tirar dessa crise imediata, não deixar que a inflação estoure, não deixar acabar com os programas de transferência de renda que mantêm a pobreza comendo, retomando um pouco de crescimento.

O Brasil que eu gostaria de ver é aquele em que o filho do mais pobre estuda na escola do filho do mais rico. A escola do filho do trabalhador não é diferente da escola do filho do patrão e que, ao lado da escola, temos uma mídia e o papel da família juntos construindo uma nova mente. Isso acho que não vai ser em quatro anos. Vai levar muito tempo até que a gente consiga. Vou dar um passo que simboliza isso: seria preciso que o Lula conversasse com o Fernando Henrique Cardoso, que as lideranças deles dois trouxessem para os outros políticos do Brasil, dos outros partidos, a ideia de que o Brasil precisa de uma espécie de acordo para não deixar continuar essa acefalia que estamos vivendo por falta de liderança intelectual, para pensar alternativas, lideranças políticas, para conduzir o processo, e liderança ética, para parar a corrupção. Eu simbolizei nestas duas figuras o que acho que nós políticos deveríamos estar fazendo. Chegando a um grande acordo nacional para salvar o Brasil deste momento de crise.

Por João Vitor Santos