Degradação e desertificação no Semiárido


Especialista alerta para degradação e desertificação no Semiárido

semiárido

“O processo de degradação e de desertificação está em marcha acelerada no Semiárido, então alguma coisa tem que ser feita e agora temos um agravante que é o aquecimento global”. O professor João Ambrósio de Araújo Filho é grande entendedor do Semiárido brasileiro. Possui vasta experiência no assunto manejo agrossilvipastoril da Caatinga. Ao longo de sua trajetória, realizou pesquisas de grande relevância social e ambiental para a região. Recentemente, ele integrou a programação do Curso de manejo florestal sustentável, realizado este mês em Campina Grande (PB), e nos concedeu entrevista sobre temas como sistemas de produção agrossilvipastoril, recuperação de áreas degradadas e estoque de forragem.  O pesquisador possui graduação em Agronomia pela UFC (1965), mestrado (1968) e doutorado (1975) em Range Management pela Universidade do Arizona e pós-doutorado pela Universidade de Reading, Inglaterra (1996). Foi professor adjunto da UFC (1970-1984) e da Universidade Estadual Vale do Acaraú (1994-2012), pesquisador da Embrapa (1984-2006), membro do Comitê de Zootecnia e Medicina Veterinária (1990-1992) e membro do Governing Board do Icrisat (Instituto Internacional de Pesquisa em Colheitas para os Trópicos Semiáridos – Índia, 2001-2003).

INSA – O que é um sistema de produção agroflorestal? 
JA – Eu tenho notado que as pessoas não estão muito precisas quando falam sobre sistemas de produção agroflorestal, aí falam manejo agrossilvipastoril e quase sempre só tocam nesse ponto como se fosse uma coisa à parte, mas não é. Não existe essa história de manejo agropastoril, a história é a seguinte: você tem um sistema de produção agroflorestal ou agrossilvicultural (nome mais correto, embora o uso tenha consagrado o termo agroflorestal), que é aquele que você combina árvores, florestas com culturas (agro) e/ou animais, simultaneamente, ou numa sequência temporal. Ou seja, é a combinação de árvores – que têm que ser nativas –, culturas (milho, sorgo, feijão, etc) e/ou animais, pode ter os dois, em uma mesma área, claro, simultaneamente ou numa sequência temporal.

INSA – O manejo agrossilvipastoril é viável para a Caatinga? 
JA – É a salvação da lavoura, como diz a história. Nós temos três modelos gerais (embora cada modelo possa comportar 
dezenas de sub-modelos). Primeiro: o agrosilvicultural (árvores e agricultura, só entra esses dois componentes), próprios para áreas que têm um potencial bom para a agricultura, áreas de inverno regular, sem ocorrências de seca, regiões localizadas nos climas de sub-úmido, úmido, etc (é o da Amazônia, do Cerrado). Segundo: nós temos o silvipastoril, esse é para a região semiárida, ele combina criação de animais com floresta.

Todas aquelas técnicas de manejo da Caatinga (raleamento, rebaixamento, enriquecimento), são sistemas de produção silvipastoril. Ele é bom para a região semiárida porque a presença do animal, a exemplo do boi, é uma espécie de tampão contra os efeitos da seca sobre a produtividade da área. O animal na área tem a capacidade de absorver os efeitos da estiagem e reduzir o impacto. Por exemplo, se você pega uma área de pecuária bem manejada e compara com uma área de agricultura, num período de seca como o atual, a agricultura vai perder 80% da produtividade, mas a pecuária perde em torno de 20%, se bem manejada, claro! Não na situação agora que, na maioria da Caatinga, a pecuária está como doente terminal. Por fim, temos o agrossilvipastoril, que combina animais, culturas e árvores. Vou dar um exemplo, um roçado ecológico é um sistema de produção agrossilvipastoril porque, durante o inverno, ele é um meio de produção de grãos (milho, feijão, etc), e no verão, é um banco de proteínas. É um sequencial, quer dizer, os animais só entram em uma estação do ano, a primeira estação é agrícola, a segunda é pastoril. Então, por isso, agrossilvipastoril. Esse modelo também é muito adequado para o Semiárido, principalmente em áreas de solos que têm certo potencial agrícola.

INSA – Quais estratégias podem ser utilizadas para o estoque de forragem? 
JA – Em primeiro lugar é utilizar a forragem dentro do percentual recomendado. Por exemplo, em uma área de Caatinga raleada, rebaixada, você deve ajustar a carga animal de tal maneira que a utilização da forragem disponível não ultrapasse 60% (tem que ficar sempre 40% do que está produzido, em dezembro tem que ter 40% no campo em relação ao que tinha em agosto). Isso vai garantir uma recuperação do solo, um aumento do teor de matéria orgânica e melhorar a chamada resiliência desse solo ou a capacidade de absorver principalmente os efeitos da seca. Agora, se está me falando em reserva alimentar estratégica, aí temos diversas alternativas de armazenagem de forragem (feno, silagem), ou então uso de cactáceas. Em alguns lugares pode ser a palma forrageira, a mais comum, mas vamos sanear uma injustiça muito grande. Nesses últimos quatro anos de seca, grande parte da nossa pecuária foi salva com mandacaru, em um processo puramente extrativista e predatório.

Porque durante os anos melhores não formamos áreas com mandacaru adensado para servir de reserva estratégica numa seca dessas? O mandacaru é mais lento que a palma, está certo, mas se já estão usando palma irrigada, então se você irrigar mandacaru, a coisa vai mudar. Há regiões, como o sertão do Ceará, por exemplo, que por questões climáticas e fisiológicas, o mandacaru produz melhor que a palma, em condições de sequeiro. Outra coisa é que tem a variedade de mandacaru sem espinhos, bem adaptada. Além disso, enquanto a palma tem de 7 a 8% de proteína, o mandacaru tem 18% de proteína. Infelizmente, eu sempre digo, se a gente tivesse investido em mandacaru metade do dinheiro que a gente investiu em palma, a gente estava melhor na maioria do nosso sertão baixo, da depressão sertaneja.

INSA – Com relação às áreas degradadas do bioma Caatinga, o que pode ser feito para reverter esse processo e recuperar as áreas produtivas?
JA – Eu fiz uma consultoria para o projeto mata branca, em todo o Semiárido, sobre as técnicas existentes para recuperação de áreas degradadas. Eu não posso negar que fiquei decepcionado, porque em termos de recuperação de áreas degradadas todo mundo fala, mas não tem nada. E outra coisa muito interessante é que muita gente que está falando não tem noção da coisa. A degradação de uma área tem, em termos gerais, seis níveis, e é muito importante que se perceba em que nível se está, antes de definir que prática irá ser usada. Você tem a degradação que é simplesmente o início, quer dizer, apenas problemas na fisiologia das plantas mais importantes que está sendo explorada. A segunda fase é a mudança na composição da vegetação original, as espécies melhores começam a sumir, e as espécies intermediárias ou piores começam a aumentar na área, mas são espécies daquela comunidade. Começa a haver mudanças, por exemplo, a pressão de pastejo começa a fazer com que 
as melhores espécies forrageiras desapareçam e as intermediárias ocupem o lugar delas. Então você tem a degradação, mas quando olha, está bonito, está tudo verde, mas a qualidade muito baixa. Temos várias alternativas: uma alternativa muito interessante são os sistemas de produção agroflorestal, principalmente no caso da nossa pecuária pode ser silvipastoril ou agrosilvipastoril, são opções interessantes, agora precisam de um tempo e custam investimentos.

Porque em todo o Semiárido nós temos uma conta ambiental de proporções gigantescas, nós maltratamos e superutilizamos essa nossa vegetação da Caatinga a níveis totalmente incompatíveis com a sobrevivência dela. Por isso já temos 25% de área desertificada, temos degradação em mais de 25% da área (está degradada mesmo!) e essa conta quem é que vai pagar? Quem for recuperar. Por exemplo, você pega uma área no estágio 4 (desaparecimento da cobertura vegetal original), digamos que é uma pastagem. Vamos analisar o seguinte: o nível 1 de degradação é distúrbio fisiológico, no quarto, já é o desaparecimento da vegetação original. No primeiro, se faz só um ajuste, como é uma pastagem, reduz o número de animais, aumenta a produção e recupera a área, apenas reduzindo o número de animais, no quarto, você vai ter que tirar todos os animais de dentro da área, proteger a área, possivelmente ressemear, fazer o enriquecimento com espécies nativas, preferencialmente para recuperação da biodiversidade, talvez repor fertilidade, com adubos orgânicos, dependendo da área, e os animais vão ficar fora pelo menos 2 ou 3 anos, para poder entrar na área de volta. É aquela história: ou tu faz ou tu desertifica por completo. O processo de degradação e de desertificação está em marcha acelerada no Semiárido, então alguma coisa tem que ser feita e agora temos um agravante que é essa história muito certa do chamado aquecimento global.

A Caatinga possui um patrimônio imenso de espécies xerófilas, adaptadas à seca, mas no ritmo em que estamos, não vamos mais ter a vegetação porque estamos acabando com o que temos. Participei recentemente de um evento do Ministério do Meio Ambiente, em João Pessoa, sobre Unidades de Conservação. Por motivos óbvios, todos os locais escolhidos e mapeados para serem Unidades de Conservação ficavam em cima de serras, porque é onde resta vegetação arbórea e chove mais. É interessante e fundamental porque preservarmos a vegetação da Caatinga podemos ter um banco de sementes excepcional, vamos ter abrigo para a fauna, e assim por diante. Mas temos que montar também Unidades de Conservação em áreas degradadas, primeiro porque as espécies que estão lá na área degradada podem ser a base da recuperação da área. Há muitas espécies lá que, do nosso ponto de vista de pecuarista, não servem para coisa nenhuma, mas do ponto de vista da natureza são importantes, como espécies pioneiras. Segundo, toda área degradada tem as áreas relíquias, áreas de difícil acesso protegidas por touceiras de mandacaru, xique-xique, onde não entra boi, não entra cabra, nem ovelha, mas o extrato herbáceo está lá, e aquelas plantas são testemunhas do potencial desta área, do que ela pode evoluir se você proteger.

INSA – Quais os principais desafios para se promover o manejo da Caatinga?
JA – Treinamento de técnicos, sensibilização dos produtores, acesso a crédito e uso das tecnologias disponíveis. Já existem tecnologias prontas para serem usadas, o crédito está razoável, mas falta a sensibilidade do produtor e, porque não dizer, falta o treinamento dos técnicos. Qual escola de agronomia no Semiárido tem uma disciplina chamada “Caracterização do semiárido e do bioma Caatinga”? O pessoal sai da agronomia sem sequer saber o que é Caatinga. Nós temos que ter essa disciplina, assim como de recuperação de áreas degradadas do Semiárido, sobre técnicas de manejo da Caatinga para fins agrícolas e pastoris, nada disso existe. Não quero exagerar, mas é uma tendência muito grande de o pessoal das Universidades se voltar muito para o agronegócio. Para começo de conversa, 62 a 65% das propriedades do Semiárido têm menos que 10 hectares, e se você somar toda área dessas 65% corresponde a 5,6% da área total do Semiárido. É esse pessoal que está querendo ajuda. Agora, eles são responsáveis pela degradação? Muito. Mas acontece que a área deles é pequena. Aquele pessoal intermediário, dos 100 hectares para baixo, é que está o problema da degradação, então é uma situação muito crítica.

INSA – Como surgiu seu interesse pelo tema e que resultados alcançou em suas pesquisas?
JA – A gente trabalhou lá no Centro de Caprinos durante muitos anos, em 2008 desenvolvemos um trabalho sobre sistemas de produção para a região semiárida. Em 1992 comecei a ouvi falar em sistemas de produção agroflorestal. Na biblioteca do Centro de Caprinos, não tinha nada. Em 1995, fui para a Inglaterra fazer pós-doutorado na Universidade de Reading. Primeiro dia que fui para a Universidade, na biblioteca tinha 25 periódicos só sobre sistemas de produção agroflorestal, aqui na nossa não tinha um artigo. Quando voltei, em 1997, para montar esse experimento, observei a estrutura fundiária e disse: “bom, eu tenho que montar esse experimento para viabilizar ecológica e economicamente essa propriedade dos 10 hectares, que é um tamanho dominante”. Então todas as áreas do sistema agrossilvipastoril com que eu trabalhei montando esse experimento tinham 8 hectares, porque eu queria criar um sistema de produção que o pequeno produtor pudesse usar. Instalamos o sistema com três objetivos básicos: primeiro: fixar a agricultura no terreno, o que quer dizer que o produtor pudesse utilizar aquela área para produção de grãos e não ter que a cada dois anos ir plantar e queimar aquela área que ele preparou, ele vai usá-la durante décadas. Segundo objetivo: deter a degradação, e terceiro objetivo, melhorar a renda e a qualidade de vida dos agricultores. Os resultados foram alcançados. O sistema esteve em andamento durante uns 18 anos. E mostrou o seguinte: que pode fixar a agricultura. Aquele pedaço de terra que eu preparei em 1998 até 2010 estava produzindo o equivalente a quase 3 vezes a média da região, sem ter trazido nada de fora, o mais importante é isso, ninguém nunca usou um grama de inseticida comercial ou de adubo químico, tudo foi manejo dentro do sistema, tudo potencial do próprio sistema.

Entrevista do Insa – Instituto Nacional do Semiárido, publicada no Portal EcoDebate, 29/06/2015