Setor elétrico: o achatamento da segurança e a submissão a uma sequência de erros desastrosos. Entrevista especial com Diogo Mac Cord de Faria
“Precisamos voltar a construir usinas com reservatório se quisermos garantir um crescimento sustentável de nossa economia”, adverte o engenheiro.
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“Se não fosse a crise [econômica], que no 1º semestre de 2015 fez com que o consumo de energia elétrica retraísse 1,1% (sendo que a indústria reduziu seu consumo em 4,2%), já estaríamos sem energia”, afirma Diogo Mac Cord de Faria à IHU On-Line.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o engenheiro menciona que o “descompasso entre oferta e demanda” é um dos principais dilemas do setor elétrico brasileiro há duas décadas. Ele lembra que entre 1995 e 2001 o PIB cresceu 16,91% e o consumo de energia elétrica subiu 43,85%. De lá para cá, o descompasso ainda não foi solucionado. “Entre 2011 e 2014 o PIB cresceu 6,42% e o consumo de energia aumentou apenas 13,96%. Veja que temos situações bastante diferentes, e mesmo assim não conseguimos equalizar oferta e demanda”.
De acordo com Faria, a crise do setor está relacionada à falta de planejamento. “Quando você diz que as hidrelétricas devem ser a base do sistema, e que as térmicas operam como apoio emergencial por poucas semanas no ano, você acaba contratando térmicas com baixo valor de investimento, mas com um custo variável muito elevado. A partir do momento em que as previsões não se concretizam, e as térmicas são chamadas a despachar na base, temos uma conta que não fecha. E não adianta dizer que esta é uma situação passageira: desde a MP 579 a conta já chega a R$150 bilhões. Isso daria para construir cinco Belo Montes”, frisa.
Na avaliação dele, a promulgação da Medida Provisória – MP 579, que tratou da prorrogação das concessões de geração de energia elétrica e do regime de cotas, piorou a situação, porque o Ministério de Minas e Energia cancelou, em 2012, “o leilão A-1 (de contratação de energia existente) para as distribuidoras de energia”, imaginando que “todos os concessionários aceitariam os termos da renovação de seus contratos”. Porém, explica, “a decisão pelo cancelamento ocorreu antes da confirmação das renovações, ou seja, contou-se prematuramente com algo que não se realizou. Apenas 7,8 gigawatts médios (GWmed) foram renovados nas condições estipuladas pelo governo”. Segundo ele, para agravar ainda mais a situação, os prejuízos decorrentes da MP 579 somam “R$ 60,9 bilhões entre 2013 e 2014”, porque “o governo quis bancar sozinho a redução de 20% na tarifa, o que fez a demanda crescer 6,6% nos primeiros três meses de redução tarifária”. Mas o déficit do governo no setor de energia “ultrapassará facilmente os R$ 100 bilhões”, contabilizando os custos que ainda não foram calculados.
Diogo Mac Cord de Faria é graduado em Engenharia de produção mecânica pela Pontifícia Universidade Católica – PUC-PR, mestre em Desenvolvimento de Tecnologia com ênfase em sistemas energéticos pela Universidade Federal do Paraná – UFPR e doutor em Sistemas de Potência pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente é coordenador adjunto do MBA do Setor Elétrico da Fundação Getulio Vargas nas cidades de São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Belo Horizonte e Criciúma.
Confira a entrevista.
Foto: Página pessoal Linkedin |
IHU On-Line – É possível pontuar em que momento iniciou-se a crise do setor de energia no Brasil, especialmente em relação ao setor elétrico? Pode reconstruir esse momento?
Diogo Mac Cord de Faria – É complicado identificar o momento onde a crise de fato começou, pois o Brasil possui problemas graves com relação à sua infraestrutura, abandonada há décadas. Mas podemos destacar dois momentos bastante distintos: o primeiro, quando tudo começou a melhorar, no marco regulatório de 1995, que atraiu o investimento privado e incentivou a concorrência; e o segundo no governo Dilma, quando tudo começou a piorar, com decisões arbitrárias, instabilidade regulatória e descontrole do planejamento e coordenação do sistema.
IHU On-Line – Quais são os dados que evidenciam que o Brasil está no limite de sua geração de energia, como o senhor afirma?
Diogo Mac Cord de Faria – Segundo o último Balanço Energético da Empresa de Pesquisa Energética – EPE, entre 2013 e 2014 o consumo de energia elétrica cresceu 34% mais do que a oferta. Entre 2012 e 2013, esta conta também foi desfavorável em 15%. Isso significa que estamos “achatando” a margem de segurança que tínhamos até então. E isso à custa de muito despacho térmico, que foi desenhado para ser um instrumento de apoio emergencial — e não operar na base por quase três anos seguidos. Desde o início do governo Dilma, em 2011, o setor elétrico foi submetido a uma sequência de erros desastrosos.
IHU On-Line – Como compreender a crise energética considerando que o país tem 1.159 usinas, segundo o Banco de Informações de Geração da Aneel?
Diogo Mac Cord de Faria – Vários são os motivos que nos levaram a esta situação. No mais óbvio, o sistema não foi devidamente planejado. Quando você diz que as hidrelétricas devem ser a base do sistema, e que as térmicas operam como apoio emergencial por poucas semanas no ano, você acaba contratando térmicas com baixo valor de investimento, mas com um custo variável muito elevado. A partir do momento em que as previsões não se concretizam, e as térmicas são chamadas a despachar na base, temos uma conta que não fecha. E não adianta dizer que esta é uma situação passageira: desde a MP 579 a conta já chega a R$ 150 bilhões. Isso daria para construir cinco Belo Montes.
"A 'crise hídrica' só é crise por causa da falta de planejamento" |
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IHU On-Line – Quais os impactos da MP 579 na crise energética que o país enfrenta hoje?
Diogo Mac Cord de Faria – Prevendo que todos os concessionários aceitariam os termos da renovação de seus contratos, o Ministério de Minas e Energia – MME cancelou, em 2012, o leilão A-1 (de contratação de energia existente) para as distribuidoras de energia. Na conta do Ministério, havia 11,8 GWmed que seriam disponibilizados no mercado por conta destas renovações. Como havia apenas 8,6 GWmed de contratos no Ambiente de Contratação Regulada – ACR que estavam vencendo em 31/12/2012, os geradores cotistas seriam suficientes para atender à demanda das distribuidoras, o que eliminaria a necessidade do leilão. Ocorre que a decisão pelo cancelamento ocorreu antes da confirmação das renovações, ou seja, contou-se prematuramente com algo que não se realizou. Apenas 7,8 GWmed foram renovados nas condições estipuladas pelo governo.
Para piorar, a real necessidade de contratação das distribuidoras era superior aos contratos que venciam no final do ano — pela lógica de ampliação orgânica do mercado. Dos 9,8 GWmed que eram realmente necessários, portanto, 2 GWmed ficaram descontratados, no que se chamou de “exposição involuntária” das distribuidoras, já que foi o Governo quem optou por cancelar o leilão A-1, e não as empresas que erraram no dimensionamento de seus mercados. Para agravar ainda mais o déficit, o governo quis bancar sozinho a redução de 20% na tarifa, o que fez a demanda crescer 6,6% nos primeiros três meses de redução tarifária. Os prejuízos resultantes desta medida, apurados pelo Tribunal de Contas da União – TCU, somaram R$ 60,9 bilhões entre 2013 e 2014. Não foram considerados no cálculo, ainda, as indenizações da parcela da Rede Básica das transmissoras – RBSE, ainda não pagas e estimadas em R$ 20 bilhões pelo mercado; os juros da conta ACR, de R$ 8,8 bilhões; os ativos de geração “incrementais”, ainda não indenizados; e os ativos de geração das concessionárias que optaram pela não renovação, que precisarão ser indenizados entre 2015 e 2017.
Assim, a conta ultrapassará facilmente os R$ 100 bilhões, não esquecendo que este deverá ser o valor líquido pago às concessionárias. Considerando que todo o montante é faturado pelas distribuidoras ao consumidor final, e que o Imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços – ICMS, Programa de Integração Social – PIS e Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – COFINS da tarifa de energia representam em média 37% do montante total, para arrecadar R$ 100 bilhões líquidos é necessário cobrar do consumidor 100 / (1 – 37%), o que resulta em uma conta de R$ 158 bilhões — equivalente ao faturamento anual das distribuidoras de energia, ou quase duas vezes o orçamento anual da educação.
IHU On-Line – Que tipo de usina é melhor para o Brasil, com reservatório ou a fio d’água? Pode nos explicar as vantagens e desvantagens de cada modelo?
Diogo Mac Cord de Faria – A energia elétrica precisa ser consumida no exato momento em que é produzida. Isso significa que nossas fontes precisam ser “seguras”: quando o consumidor liga sua televisão, alguma usina, em algum lugar, deverá estar à disposição para aumentar um pouco sua produção de energia para atender àquela nova carga. Quando não podemos contar com determinada usina, dizemos que ela é “intermitente”. É o que acontece, por exemplo, com a eólica: se venta, ela produz; se não venta, fica parada. Quando temos uma hidrelétrica com reservatório, a água funciona como uma bateria: a hora que o consumidor ligar a televisão, poderemos contar com aquela energia.
Já as hidrelétricas a fio d’água não possuem reservatórios. Se por um lado seu impacto ambiental é menor, por outro não nos dá segurança. Temos que pensar o seguinte: já que vamos construir uma usina, que o façamos da melhor forma possível. Mesmo que isso implique em custos adicionais de condicionantes socioambientais, vale a pena por conta da segurança.
Precisamos voltar a construir usinas com reservatório se quisermos garantir um crescimento sustentável de nossa economia. Belo Monte, por exemplo, abriu mão de seu reservatório (de 1.225 km2) que poderia garantir energia durante todo o ano para operar com um reservatório de apenas 516 km2 que, no período de seca, reduzirá a produção em 90%.
IHU On-Line – A crise econômica atual e o baixo crescimento anunciado para o próximo ano podem impactar o mercado elétrico? De que maneira?
Diogo Mac Cord de Faria – Se não fosse a crise, que no 1º semestre de 2015 fez com que o consumo de energia elétrica retraísse 1,1% (sendo que a indústria reduziu seu consumo em 4,2%), já estaríamos sem energia. Novamente, evidencia-se o total descompasso entre oferta e demanda. Entre 1995 (eleição FHC) e 2001 (ano do racionamento), o PIB cresceu 16,91% e o consumo de energia elétrica subiu 43,85%. Já entre 2011 (ano da eleição de Dilma) e 2014 o PIB cresceu 6,42% e o consumo de energia aumentou apenas 13,96%. Veja que temos situações bastante diferentes, e mesmo assim não conseguimos equalizar oferta e demanda. É preciso reconhecer que o modelo não está funcionando, por dois motivos: primeiro, a energia de “placa” das usinas não está certa: o somatório das garantias físicas das hidrelétricas não é aderente à energia que elas realmente podem gerar. Segundo, porque o governo tem criado um cenário onde a iniciativa privada não recebe a sinalização correta para investir em projetos de longo prazo.
"O Brasil possui problemas graves com relação à sua infraestrutura, abandonada há décadas" |
IHU On-Line – A crise hídrica pode afetar o setor elétrico? Já se sentem os efeitos da crise hídrica no setor de energia?
Diogo Mac Cord de Faria – A “crise hídrica” só é crise por causa da falta de planejamento. Precisamos com urgência voltar a discutir, com responsabilidade, mas sem preconceito, a geração nuclear (próxima dos centros de carga e com menores custos de transmissão), reestruturar o mercado de gás natural, acabando com o monopólio que a Petrobras tem, de fato, neste segmento, aumentando a geração térmica a gás natural (hoje inviabilizada pelo alto custo deste insumo), e voltar a construir usinas com reservatório.
É importante lembrar que, apesar de importantes para complementarem o sistema, as fontes eólica e solar são intermitentes (ou seja, não podemos contar com elas, já que a energia deve ser gerada no exato momento do consumo), e estas têm sido apontadas como as grandes “salvadoras” do sistema nacional. Não são. A conta é simples: se uma térmica de 500 megawatts (MW) é segura, ou seja, o Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS pode contar com ela quando precisar de 500 MW, o custo de instalação é só daquela planta. Agora, se quando o ONS precisar de 500 MW e encontrar no Sistema Interligado Nacional – SIN uma fazenda eólica de 500 MW sem vento, o que ele vai fazer? Procurar outra, e outra, até encontrar. Quantas fazendas eólicas de 500 MW precisamos ter para garantir que, quando esta potência for necessária, ela estará disponível?
Veja: não estou dizendo que não é importante investir em eólicas ou em solares. Acho que a complementaridade da matriz é fundamental. Mas temos que olhar o problema de uma forma bastante ampla e consciente.
IHU On-Line – O que se vislumbra para o setor energético em relação à política energética e ao planejamento energético nos próximos anos?
Diogo Mac Cord de Faria – Isso vai depender muito da próxima gestão. No momento, temos que nos preocupar com o que mais a gestão atual vai fazer: só neste ano temos a questão do GSF [o GSF é um indicador de déficit de geração das hidrelétricas, que ocorre quando as usinas são obrigadas a gerar menos para poupar água nos reservatórios], da renovação das concessões de distribuição e a licitação das usinas “velhas” não renovadas pela Companhia Paranaense de Energia – Copel, Companhia Energética de São Paulo – Cesp e Cia Energética de Minas Gerais – Cemig. O interessante é que a maior atingida por estes três fatores é a Eletrobras — ou seja, ou o governo quebra de vez a maior empresa do setor elétrico, ou deverá pensar seriamente em um programa de privatização, que pode ser por subsidiária ou total.
Por Patricia Fachin