“O sucesso desses mosquitos é garantido, em grande parte, pelo crescimento e aglomeração populacional que urbaniza aceleradamente os municípios, pela pobreza, falta de saneamento nas cidades, descarte inadequado de resíduos sólidos (e pífios investimentos na reciclagem), modelo de desenvolvimento que prioriza o consumo de recursos naturais, mudanças do clima, falta de educação da população e falhas na fiscalização e gestão pública”, afirma o biólogo.
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Sendo o Aedes aegypti um mosquito de “hábitos urbanos” e associado “às grandes aglomerações humanas”, tanto a população quanto o poder público têm responsabilidade no combate ao transmissor da Dengue e do vírus da Zika, diz Jáder da Cruz Cardoso à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail. “Se um proprietário deixa uma piscina ou calha sem manutenção ou acumula resíduos sólidos a céu aberto no seu quintal ou em terrenos baldios, isso é (ir)responsabilidade sua. (…) Por outro lado, o poder público também tem suas responsabilidades, oferecendo saneamento básicoe infraestrutura adequada nas cidades e atuando de forma efetiva nas ações de controle vetorial, educação em saúde, vigilância e prevenção das doenças transmitidas por esses insetos”, frisa.
Segundo ele, a proliferação do mosquito no país está associada à “falta de condições adequadas de saneamento na maioria dos municípios brasileiros”, especialmente em “regiões com falta de acesso à água potável, onde a população necessita armazenar água em barris e tonéis”, ou em “cidades com limitações no gerenciamento de resíduos sólidos e falta de coleta seletiva”.
Jáder da Cruz Cardoso é graduado em Ciências Biológicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS, especializado em Entomologia Médica pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – USP, mestre em Biociências/Zoologia pela PUC–RS e doutor em Ciências pelo departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP. Atualmente, é professor do curso de Ciências Biológicas e do Mestrado em Saúde e Desenvolvimento Humano do Centro Universitário La Salle – Unilasalle/Canoas. Também é sanitarista da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, desempenhando suas atividades no Centro Estadual de Vigilância em Saúde – CEVS.
Confira a entrevista.
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IHU On-Line – De que maneira as condições de estrutura e acesso ao saneamento básico incidem sobre as condições de saúde da população?
Jáder da Cruz Cardoso – Cidades com oferta de água potável, esgotos sanitários recebendo o devido tratamento, drenagem das águas pluviais, limpeza urbana e gerenciamento dos resíduos sólidos oferecem aos seus habitantes melhores condições ambientais que irão ampliar a qualidade de vida dos cidadãos. Por outro lado, a falta de saneamento básico degrada os ambientes e a vida das pessoas, possibilitando que populações humanas (especialmente crianças) convivam diretamente expostas à água contaminada, resíduos sólidos e todo tipo de restos orgânicos e esgoto a céu aberto. Quanto melhores as condições do meio ambiente, mais saudáveis serão as pessoas.
IHU On-Line – Quais são as principais doenças que podem proliferar em função de condições precárias ou falta de saneamento básico?
Jáder da Cruz Cardoso – Infelizmente, os investimentos em saneamento básico não são prioritários na grande maioria dos municípios brasileiros. Essa falta de cuidado com a saúde ambiental amplia a incidência de doenças de veiculação hídrica, como hepatite, leptospirose e diarreias. Insetos como baratas e moscas encontram, nesses cenários degradados, condições favoráveis à ocorrência em grandes quantidades. A falta de saneamento também contribui para o aumento da densidade de mosquitos transmissores de agentes causadores de Filariose, Dengue,Chikungunya e Zika nos grandes centros.
IHU On-Line – Especificamente em relação ao mosquito Aedes aegypti, as campanhas têm sido focadas na convocação e responsabilidade da população no combate aos criadouros do inseto. Mas qual é o peso da questão do saneamento básico na luta contra o mosquito e as doenças que ele transmite?
Jáder da Cruz Cardoso – Devemos levar em consideração que o Aedes aegypti é um mosquito de hábitos urbanos, associado às grandes aglomerações humanas. Os criadouros preferenciais desses mosquitos estão presentes nos quintais e/ou dentro das residências e estabelecimentos comerciais. É natural que a população seja convidada a combater esta espécie que, muitas vezes, recebe da própria população condições favoráveis à proliferação. Se um proprietário deixa uma piscina ou calha sem manutenção ou acumula resíduos sólidos a céu aberto no seu quintal ou em terrenos baldios, isso é (ir)responsabilidade sua. Portanto deve, sim, ser convocado a participar de campanhas de combate. Por outro lado, o poder público também tem suas responsabilidades, oferecendo saneamento básico e infraestrutura adequada nas cidades e atuando de forma efetiva nas ações de controle vetorial, educação em saúde, vigilância e prevenção das doenças transmitidas por esses insetos. A falta de condições adequadas de saneamento na maioria dos municípios brasileiros ainda favorece muito a proliferação desta e de outras espécies de mosquitos. Em regiões com falta de acesso à água potável, onde a população necessita armazenar água em barris e tonéis, a proliferação do vetor é favorecida. O mesmo vale para diversas cidades com limitações no gerenciamento deresíduos sólidos e falta de coleta seletiva, contribuindo com aumento de criadouros de mosquitos espalhados pelo seu território.
IHU On-Line – O mosquito Aedes aegypti já esteve radicado no Brasil? Como ele foi reintroduzido no país?
Jáder da Cruz Cardoso – Sim, Aedes aegypti chegou ao Brasil provavelmente em navios negreiros, no período colonial. Devido à sua importância como vetor do vírus da febre amarela urbana, foi alvo de muitas campanhas de controle, chegando a ser considerado erradicado em 1955. No entanto, como estava disseminado por outros países da América, incluindo os vizinhos Venezuela e Guianas, não foi difícil sua reintrodução por Belém do Pará, em 1967. Desse período até os dias de hoje, essa espécie se espalhou por praticamente todos os grandes centros urbanos do país.
“O Ministério da Saúde recomenda o uso de larvicidas, todos avaliados e aprovados pela Organização Mundial de Saúde” |
IHU On-Line – A febre Chikungunya e o vírus da Zika são doenças relativamente novas no país. Como elas chegaram aqui?
Jáder da Cruz Cardoso – No Brasil, os primeiros casos de Chikungunya foram detectados em 2014, e Zika, em 2015. Ambas as doenças são causadas por vírus transmitidos por Aedes aegypti. Para haver a transmissão de uma doença vetorial, necessitamos do vetor (mosquito), do agente patogênico (vírus) e de pessoas saudáveis (suscetíveis). No Brasil temos ambientes impactados pelo homem e extremamente favoráveis à proliferação de Aedes aegypti, especialmente nas grandes cidades. Além disso, a maioria da população nunca teve contato com esses vírus, não possuindo, portanto, resposta imunológica a esses organismos. Nessa cadeia de transmissão falta o vírus propriamente dito. Nos dias de hoje, com a agilidade dos meios de transporte (especialmente aéreos), esse elo pode ser completado por pessoas que adquirem patógenos durante uma viagem, chegando ao país no período de transmissibilidade. Não existe consenso sobre como, exatamente, essas doenças entraram no Brasil. Acredita-se que tenha sido a partir de brasileiros que tenham viajado para áreas com circulação desses vírus, iniciando a transmissão no retorno ou por meio de turistas procedentes dessas áreas endêmicas em visita ao país.
IHU On-Line – De que maneira o senhor avalia o uso de larvicidas no combate ao Aedes aegypti no Brasil? No Rio Grande do Sul, como vê a suspensão do uso do larvicida Pyriproxyfen em reservatórios de água potável?
Jáder da Cruz Cardoso – As estratégias de combate ao Aedes aegypti incluem prioritariamente a não oferta de criadouros para as larvas. Em situações específicas nas quais os depósitos não podem ser protegidos fisicamente ou há necessidade de armazenamento de água, em virtude da falta de abastecimento, necessitamos de alternativas para diminuir a infestação de mosquitos. Nesse sentido, o Ministério da Saúde recomenda o uso de larvicidas, todos avaliados e aprovados pela Organização Mundial de Saúde – OMS. Na lista desses larvicidas recomendados está oPyriproxyfen, amplamente utilizado no país. Até o momento, alguns estudos têm mostrado evidências da associação entre vírus da Zika e microcefalia, como a presença do vírus no líquido amniótico de mães que tiveram filhos com microcefalia.
Por outro lado, ainda não existem estudos epidemiológicos que comprovem cientificamente a associação do uso dePyriproxyfen com microcefalia. As secretarias estaduais de saúde têm autonomia para utilizar (ou não) os produtos adquiridos e distribuídos pelo Ministério da Saúde. O Estado optou, de forma acertada, por suspender o larvicida em depósitos com água para consumo humano, como medida de precaução. Nos demais tipos de criadouros continua recomendado o uso do Pyriproxyfen, reiterando a importância de priorizar a proteção ou eliminação mecânica dos depósitos.
IHU On-Line – Em seus estudos o senhor defende a importância da Vigilância Entomológica dentro das políticas de saúde pública. Em que ela consiste, qual seu papel na prevenção da saúde e como é realizada hoje no Brasil?
Jáder da Cruz Cardoso – A Vigilância Entomológica é uma estratégia de saúde pública direcionada a doenças transmitidas por insetos. Utiliza o monitoramento constante de populações de insetos vetores como forma de reunir informações sobre biologia e ecologia das espécies, visando detectar padrões de densidade, distribuição e comportamento que possam interferir na ocorrência de doenças e agravos. No caso de doenças como Dengue, Chikungunya e Zika, para estimar o risco de transmissão, é necessário conhecer a distribuição geográfica do vetor (Aedes aegypti), calcular índices de infestação e abundância, conhecer aspectos ecológicos e biológicos da espécie e ter pessoas treinadas para a identificação e reconhecimento morfológico da espécie em meio a tanta biodiversidade de mosquitos.
No Brasil, outros programas envolvendo doenças transmitidas por vetores como leishmanioses, doença de chagas, filarioses e malária também lançam mão de conceitos, metodologias e estratégias da Vigilância Entomológica. Apesar dos esforços para qualificação das ações e consolidação da Vigilância Entomológica no país, ainda existem algumas limitações. Muitas universidades, especialmente no sul do Brasil, ainda não atentaram para a necessidade de formação de entomólogos (profissionais que estudam insetos) capacitados para atuação em saúde pública. Além disso, os profissionais habilitados, disponíveis no mercado, com conhecimentos específicos e fundamentais para qualificar equipes multiprofissionais de combate a doenças transmitidas por vetores, não são absorvidos pelas secretarias de saúde municipais e estaduais, nem pelo Ministério da Saúde.
IHU On-Line – Recente pesquisa do Instituto Butantã revelou uma grande capacidade de adaptação do inseto ao ambiente, como a habilidade de se reproduzir em menores volumes de água, a resistência a inseticidas e a variação no horário do ataque às pessoas, que agora também ocorre à noite. Em que essa capacidade evolutiva do mosquito pode implicar nas políticas de combate a esses insetos e erradicação das doenças por ele transmitidas?
Jáder da Cruz Cardoso – O estudo confirma aquilo que estamos percebendo no dia a dia. Embora existam padrões biológicos bem característicos de cada espécie, esses mosquitos se ajustaram muito bem às pressões seletivas e condições de vida oferecidas nos ambientes antropizados. São insetos extremamente oportunistas. A alta capacidade de conseguir responder às mudanças impostas pelo meio ambiente requer estratégias de controle cada vez mais integradas, focadas no saneamento ambiental e participação da comunidade. Ao contrário do que fora preconizado no passado, Aedes aegypti não é uma espécie a ser erradicada, mas sim, mantida em baixas densidades, para inviabilizar a transmissão de patógenos.
“Ao contrário do que muitos pensam, Aedes aegypti é uma espécie que não pode mais ser erradicada” |
IHU On-Line – De que maneira avalia o uso de Aedes aegypti transgênicos como política de combate ao mosquito? E dos mosquitos machos esterilizados por radiação?
Jáder da Cruz Cardoso – Considerando toda a complexidade que envolve a biologia e ecologia de Aedes aegypti, são necessárias ações integradas de controle do vetor. A biotecnologia é mais uma estratégia que se soma às existentes, mas mosquitos transgênicos ou esterilizados por raios X ou Gama são tecnologias que ainda necessitam de mais tempo para serem incluídas como estratégias recomendadas, pelo Ministério da Saúde, para uso em todo o território nacional. O mosquito transgênico com gene letal que impede o desenvolvimento da larva, por exemplo, ainda não tem autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. Esse é um tema polêmico e muitos estudiosos questionam a liberação no meio ambiente de espécies modificadas geneticamente sem medir as consequências disso. De qualquer maneira, o conhecimento científico só avança com pesquisas e, neste momento, vários pesquisadores estão nos laboratórios ou fazendo testes de campo, em algum município, para ampliar os conhecimentos sobre esse assunto.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Jáder da Cruz Cardoso – Como já foi dito, ao contrário do que muitos pensam, Aedes aegypti é uma espécie que não pode mais ser erradicada. E muitos afirmam que “um mosquitinho desses” não pode ser mais forte do que nós, os humanos. Creio que esta visão antropocêntrica atrapalha muito o combate ao vetor. A população tem informações sobre o risco, mas não acredita nele, não enxerga. O sucesso desses mosquitos é garantido, em grande parte, pelo crescimento e aglomeração populacional que urbaniza aceleradamente os municípios, pela pobreza, falta de saneamento nas cidades, descarte inadequado de resíduos sólidos (e pífios investimentos na reciclagem), modelo de desenvolvimento que prioriza o consumo de recursos naturais, mudanças do clima, falta de educação da população e falhas na fiscalização e gestão pública. Além disso, há uma alta carência de recursos para o SUS e pesquisas aplicadas à saúde e qualidade de vida da população.
Este cenário só poderá ser alterado se o poder público e a população estiverem articulados com todos os segmentos da sociedade (a imprensa tem papel fundamental nisso!), defendendo políticas públicas que favoreçam investimentos pesados em saneamento básico, acesso à moradia, combate à pobreza, educação e preservação ambiental, modelo de desenvolvimento que priorize energias limpas e ambientes mais saudáveis para se viver nas cidades. As altas densidades e distribuição desses mosquitos demonstram o quanto ainda temos que avançar como sociedade.
Por Leslie Chaves e Patricia Fachin
Fonte: IHU