“Um dos principais objetivos da agroecologia é construir sistemas agroalimentares localizados, aproximando a produção do consumo. Isso só é possível quando os atores dos territórios se articulam em redes para retomar a autonomia sobre os processos de produção, transformação, comercialização e consumo”, diz Paulo Petersen, coordenador executivo da AS-PTA e membro do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia – ANA, à IHU On-Line. Na avaliação dele, a transição de um modelo agrícola industrial para um modelo baseado na agroecologia depende do estímulo do Estado a partir de políticas públicas adequadas.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Petersen chama atenção para a importância dos arranjos em redes territoriais para que a agroecologia seja adotada como referência teórico-metodológica para reorganização dos sistemas agroalimentares. “Nesta semana estamos assistindo a uma grave crise de desabastecimento, que tem muito a ver com o modelo dominante de desenvolvimento agrícola e de abastecimento alimentar. Essa crise revela o grau de vulnerabilidade desse modelo. Uma greve de caminhoneiros de alguns dias foi suficiente para que o sistema entrasse em colapso. Essa é uma demonstração da inviabilidade de uma lógica deabastecimento alimentar que depende do transporte a grandes distâncias e que faz com que os territórios importem cada vez mais o que consomem e exportem cada vez mais o que produzem. Seja por razões ambientais, energéticas ou econômicas, esse padrão é insustentável, pois é estruturalmente dependente do consumo de combustíveis fósseis. Por essa razão, um dos princípios da agroecologia é a relocalização dos sistemas agroalimentares. E isso só é possível através de redes de âmbito territorial. Não serão os grandes conglomerados empresariais que assumirão a função de coordenar essas redes descentralizadas de produção e distribuição de alimentos”, afirma.
Na avaliação dele, o modelo agrícola industrial e o agroecológico são incompatíveis. Não podem conviver no espaço e no tempo. “Existe um discurso de que o Brasil é muito grande, que tem espaço para todo mundo e para todos os modelos. Mas o que temos avaliado, com a sistematização dessas redes de agroecologia, é que essa convivência é impraticável. Isso porque um modelo que se baseia na valorização e na conservação dos recursos naturais, na biodiversidade, na construção de mercados locais e na valorização da cultura alimentar local não pode ser compatibilizado com outro que depende de se expandir territorialmente para manter as taxas de lucratividade de suas monoculturas e que, além disso, se vale de tecnologias que não respeitam divisas, como os agrotóxicos e os transgênicos. O apoio ao modelo do agronegócio acaba inviabilizando as possibilidades de expansão da agroecologia; essa é uma razão de crescentes conflitos territoriais no Brasil e no mundo.” E adverte: “Se quisermos de fato avançar com a agroecologia, é necessário retirar o apoio ao agronegócio. É possível seguir nesse caminho nos valendo de alternativas técnicas e econômicas que já existem e estão amplamente comprovadas”.
Paulo Petersen também comenta os principais objetivos do IV Encontro Nacional de Agroecologia – ENA, que ocorre entre os dias 31 de maio e 3 de junho em Belo Horizonte. “Um dos momentos chaves do ENA será analisar como, em diferentes biomas, as redes territoriais de agroecologia vêm sendo construídas desde a década de 1980. Queremos mostrar que a agroecologia é uma construção a partir dos territórios e que ela depende muito das iniciativas em rede dos atores da sociedade civil e de políticas públicas que reconheçam e fortaleçam as ações desses atores.”
Paulo Petersen é graduado em Agronomia pela Universidade Federal de Viçosa, mestre em Agroecologia e Desenvolvimento Rural pela Universidad Internacional de Andaluzia e doutor em Estudos Ambientais pela Universidad Pablo de Olavide. Atualmente é coordenador-executivo da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia – AS-PTA, vice-presidente da Associação Brasileira de Agroecologia – ABA-Agroecologia e editor-chefe da revista Agriculturas: experiências em agroecologia. É membro dos Conselhos Editoriais das revistas Agroecology and Sustainable Food Systems – ASFS, da Revista Brasileira de Agroecologia e da Coleção Transição Agroecológica (Embrapa). Também integra a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – CNAPO.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — O que são as redes territoriais de agroecologia? Como e desde quando elas estão sendo organizadas no país?
Paulo Petersen — Redes territoriais é um conceito que vimos empregando para analisar as experiências de construção da agroecologia. O entendimento é que a agroecologia é uma construção social realizada de baixo para cima e que se materializa nas experiências de vários sujeitos articulados nos territórios em que vivem, produzem e consomem. À medida que se articulam, estabelecem as redes, que são arranjos sociotécnicos identificados com os princípios e as práticas da agroecologia.
Agroecologia como uma construção em rede
A agroecologia, nesse sentido, é uma construção social em rede. Quando falamos emredes de agroecologia, queremos dar visibilidade ao fato de que a agroecologia não se estabelece como uma alternativa efetiva ao modelo dominante a partir de experiências isoladas de famílias ou de organizações. As iniciativas de agroecologia só ganham densidade social quando articulam vários atores que assumem papéis complementares na estruturação dos sistemas agroalimentares. Embora sempre tenham existido, essas redes locais são muito pouco visíveis aos olhos dos poderes públicos.
As redes envolvem não só os produtores de alimentos, mas também agentes que atuam nas etapas do processamento, da distribuição e do consumo. Envolvem ainda atores dedicados à produção de conhecimentos em universidades, institutos técnicos e escolas (estudantes, professores, pesquisadores), muitos deles reunidos em núcleos de agroecologia existentes nessas instituições. Essas redes mobilizam recursos de diferentes políticas públicas. Essa é uma constatação muito importante porque o território é o espaço no qual a agroecologia é construída a partir da ação coletiva. Normalmente, as políticas públicas para a agricultura são orientadas diretamente para as unidades de produção, para os estabelecimentos rurais, como se os territórios fossem conformados pela soma de pequenas empresas vinculadas aos grandes e distantes mercados. Ocorre que, sem a ação coletiva na esfera dos territórios, a agroecologia não ganha escala, construindo canais diversificados de escoamento entre a produção e o consumo. Essa é uma ideia-chave que vamos debater no IV Encontro Nacional de Agroecologia – ENA, que será realizado nesta semana em Belo Horizonte.
Um dos momentos chaves do ENA será analisar como, em diferentes biomas, essas redes vêm sendo construídas desde a década de 1980. Queremos mostrar que a agroecologia é uma construção feita nos territórios e que ela depende muito das iniciativas dos atores da sociedade civil e de políticas públicas que reconheçam e fortaleçam as ações desses atores. O lema do encontro é “Agroecologia e Democracia, unindo o campo e a cidade”. Esse lema foi definido em função de nossa constatação de que o enfoque agroecológico para o desenvolvimento dos sistemas agroalimentares contribui para democratizar as relações sociais entre os agentes econômicos envolvidos na produção, na distribuição e no consumo, para democratizar o acesso a alimentos de qualidade, que deixa de ser privilégio para os que podem pagar caro. Em última instância, contribui para democratizar o próprio Estado, que passa a reconhecer nas organizações da sociedade civil um papel essencial na coprodução das políticas públicas. Além disso, ao orientar processos de relocalização dos sistemas agroalimentares, a agroecologia contribui para construir vínculos mais estreitos entre a produção e o consumo. Portanto, essa ideia de unir o campo com a cidade expressa exatamente o fato de que a agroecologia não é uma agenda só rural, mas de toda a sociedade.
Crise de abastecimento
Nesta semana estamos assistindo a uma grave crise de desabastecimento, que tem muito a ver com o modelo dominante de desenvolvimento agrícola e de abastecimento alimentar. Essa crise revela o grau de vulnerabilidade desse modelo. Uma greve de caminhoneiros de alguns dias foi suficiente para que o sistema entrasse em colapso. Essa é uma demonstração da inviabilidade de uma lógica de abastecimento alimentar que depende do transporte a grandes distâncias e que faz com que os territórios importem cada vez mais o que consomem e exportem cada vez mais o que produzem. Seja por razões ambientais, energéticas ou econômicas, esse padrão é insustentável, pois é estruturalmente dependente do consumo de combustíveis fósseis. Por essa razão, um dos princípios da agroecologia é a relocalização dos sistemas agroalimentares. E isso só é possível através de redes de âmbito territorial. Não serão os grandes conglomerados empresariais que assumirão a função de coordenar essas redes descentralizadas de produção e distribuição de alimentos. Nesse sentido, relocalizar os sistemas agroalimentares significa descentralizar o poder de comando sobre os fluxos de produção e consumo. Atualmente esse poder está fortemente concentrado em poucas corporações transnacionais que agem globalmente como verdadeiros impérios alimentares já que exercem crescente poder de comando à distância dos sistemas de produção e de abastecimento alimentar em diferentes países e territórios.
IHU On-Line — Em que regiões e biomas do país as redes de agroecologia estão mais estabelecidas?
Paulo Petersen — As reflexões no IV ENA serão realizadas a partir de experiências provenientes de todos os biomas. É bem verdade que são iniciativas bastante diferenciadas entre si. É muito diferente falarmos da agroecologia nos Pampas, na Caatinga e na Amazônia. Há distinções na formação histórica das agriculturas nessas diferentes porções do território brasileiro. Nas regiões em que o projeto de modernização agrícola mais avançou, levando consigo as monoculturas e os pacotes tecnológicos da Revolução Verde, os sistemas agroalimentares locais tendem a ser mais desestruturados. Já nas regiões em que ainda existem padrões tradicionais de agricultura a agroecologia assume feições totalmente diferentes. Seja como for, é possível demonstrar que em todas as regiões existem experiências significativas de agroecologia. Apesar das expressões práticas muito diferenciadas entre elas, é possível identificar princípios comuns, como o uso sustentável da biodiversidade, o emprego de saberes locais, a valorização das culturas alimentares regionais, a construção e gestão de mercados locais, o reconhecimento e a valorização do trabalho das mulheres, o respeito aos meios e modos de vida de povos e comunidades tradicionais.
No IV ENA serão realizados debates sobre as redes territoriais a partir de exemplos sistematizados em todos os biomas. Além disso, haverá um debate sobre estratégias da agroecologia para enfrentar o desafio do abastecimento alimentar nas grandes cidades, particularmente nas regiões consideradas desertos alimentares, onde populações socialmente vulneráveis têm dificuldade de acessar alimentos de qualidade. Outro espaço discutirá as especificidades das redes de agroecologia estruturadas no litoral, envolvendo comunidades de pescadores artesanais, populações tradicionais e agricultura familiar.
Vamos retomar a partir desse encontro, com o apoio da Fiocruz, uma iniciativa iniciada há muitos anos e que vem sendo mantida em latência nos últimos tempos. Trata-se do sistema de informação Agroecologia em Rede, uma base de dados acessível na internet sobre as iniciativas desenvolvidas pelas redes de agroecologia disseminadas pelo país. Embora esse sistema não se proponha a registrar a totalidade das redes de agroecologia e suas experiências, o que seria virtualmente impossível, ele permite oferecer um quadro bastante representativo das diversificadas formas em que a agroecologia se expressa no país.
IHU On-Line — Qual é o desafio da agroecologia nas metrópoles? Que tipos de experiências existem?
Paulo Petersen — Nas duas últimas décadas o perfil da alimentação tem mudado muito no país por conta do crescente controle corporativo sobre a alimentação. Os problemas de saúde associados à má alimentação crescem vertiginosamente. O Brasil saiu do mapa da fome da FAO. Por outro lado, é como se tivesse entrado no mapa da obesidade e das doenças crônicas associadas à má qualidade da alimentação, sobretudo com o consumo de produtos ultraprocessados. Essa questão nos desafia a pensar como será possível fazer com que a população volte a se alimentar, como diz o Guia Alimentar Brasileiro, com comida de verdade e não com ultraprocessados. Esse desafio vem sendo enfrentado a partir de experiências em grandes cidades do país. As compras institucionais, por exemplo, são uma poderosa estratégia para abordar essa questão — existem exemplos de municípios que deram passos importantes nesse sentido em relação à alimentação escolar e ao programa de aquisição de alimentos da agricultura familiar.
Iniciativas desse tipo possibilitam a criação de circuitos de escoamento da produção e fazem com que alimentos de qualidade cheguem para populações que não dispõem de recursos financeiros para adquiri-los nos mercados. E esse é outro problema a ser enfrentado. Alimentos de qualidade, como os certificados como orgânicos, são consumidos somente pelos que podem pagar os elevados preços praticados em mercados de nicho. Isso é uma coisa inconcebível, porque alimentação de qualidade é um direito humano. É preciso haver uma intervenção pública sobre os mercados de alimentos a fim de garantir que toda a população tenha assegurado o direito de consumir alimentos de boa qualidade. Essa é uma questão de direitos e de saúde. A gestão passada da prefeitura de São Paulo organizou uma experiência bastante consistente no sentido de disponibilizar a produção de origem camponesa para a alimentação escolar em bairros populares. Infelizmente, a prefeitura atual não deu continuidade a essa iniciativa. Pior, apresentou como alternativa para a alimentação escolar a aberrante proposta da farinata, um granulado composto por alimentos que possuem datas de vencimento próximas.
Outra vertente relevante para as estratégias de abastecimento alimentar nas grandes cidades é a agricultura urbana, ou seja, a produção de alimentos nas cidades. Essa é uma prática que cresce em todo o mundo, inclusive no Brasil. São muitas as experiências populares de agricultura urbana e periurbana. Elas são muito significativas exatamente porque são orientadas à parcela da população mais vulnerável à insegurança alimentar e nutricional. É evidente que a produção local não é capaz de abastecer as demandas de grandes metrópoles. Mas é preciso desenvolver estratégias combinadas que passam necessariamente por democratizar os mercados de alimentos, que são cada vez mais controlados por grandes redes de varejo. A revalorização das feiras livres e a criação de redes de feiras agroecológicas são caminhos importantes a serem trilhados para democratizar o acesso ao alimento de qualidade.
IHU On-Line — Aqueles que defendem o uso da agricultura em larga escala e o agronegócio argumentam que eles são importantes para dar conta da produção de alimentos. De outro lado, aqueles que defendem a agricultura familiar afirmam que ela é responsável pela produção de aproximadamente 70% dos produtos consumidos no país. Diante dessas posições, você diria que é possível substituir o atual modelo agrícola do agronegócio por um modelo agroecológico? Quais são os desafios nesse sentido?
Paulo Petersen — A substituição de um modelo por outro deve ser encarada como uma necessidade imperiosa porque a agricultura industrial e os sistemas industriais de processamento e distribuição são responsáveis diretos pela geração de um conjunto combinado de impasses enfrentados pela humanidade. Esse padrão de produção, transformação e distribuição responde por cerca da metade da emissão dos gases de efeito estufa. Portanto, o problema das mudanças climáticas está diretamente associado a esse padrão agrícola. Por outro lado, a agricultura é o setor econômico mais afetado pelas mudanças climáticas. Trata-se de um modelo que destrói as bases ecológicas necessárias para a sua própria reprodução a médio e longo prazos. A agroecologia aponta para a necessidade de mudanças estruturais nos padrões de organização dos sistemas agroalimentares. Isso foi recentemente confirmado pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), que acaba de organizar um simpósio internacional, em Roma, com o objetivo de debater os desafios para o aumento da escala da agroecologia como estratégia para o alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS. Esse simpósio é uma constatação da FAO sobre a necessidade da mudança do padrão de desenvolvimento agrícola dominante. Evidentemente, essas constatações que estão cada vez mais presentes no mundo institucional, no meio acadêmico e nos movimentos sociais sofrem muita resistência por parte dos grandes beneficiários desse modelo, sobretudo o sistema financeiro e a agroindústria.
Nesse sentido, a questão a ser colocada não é se a agroecologia tem a capacidade para abastecer uma população mundial crescente. São fartas as evidências documentadas na literatura acadêmica no mundo inteiro que afirmam que a resposta a essa pergunta é sim, ou seja, a agroecologia tem capacidade de produzir de forma equivalente ou superior à agricultura industrial. Mas além dos resultados em termos de produtividade física é essencial que seja levado em consideração que a produção em base agroecológica produz externalidades positivas, ou seja, contribui para a geração de outros benefícios sociais e ambientais, enquanto a agricultura industrial só gera externalidades negativas. A questão em que deveríamos nos concentrar nessa quadra histórica da humanidade é quando e em que condições daremos início a uma transição socioecológica dos sistemas agroalimentares com base nos fundamentos da agroecologia. É certo que essa transformação não ocorrerá de golpe, de uma hora para a outra, mas como resultado de processos paulatinos apoiados por políticas públicas deliberadamente concebidas para tal fim.
IHU On-Line — Que percentual de investimentos federais é destinado para a agroecologia em comparação com o agronegócio? Quais são as principais políticas públicas de apoio ao desenvolvimento da agroecologia e quais são os desafios dessas políticas?
Paulo Petersen — Essa é uma questão de difícil resposta, pois uma política públicapode ser valorizada no território para apoiar a agroecologia e para apoiar o padrão produtivo do agronegócio. O recurso público é o mesmo. O que faz a diferença lá na ponta é a existência de atores que canalizam os recursos segundo uma racionalidade técnico-econômica ou outra. Essa é uma razão importante para considerarmos a existência das redes territoriais de agroecologia. Recursos do Pronaf, por exemplo, podem ser utilizados em um território para fortalecer iniciativas coerentes com as práticas agroecológicas. Mas se não tivermos uma rede bem estabelecida, esse recurso poderá ser utilizado para a produção de milho ou soja transgênicos. A política é a mesma, mas a mediação das relações até chegar no território e nos estabelecimentos faz com que o recurso seja orientado para um lado ou para o outro. Por isso é muito difícil termos um dado preciso sobre os recursos públicos destinados ao apoio à agroecologia.
O que é possível dizer é que a maior parte dos recursos públicos são orientados para apoiar o agronegócio. Por exemplo: enquanto a agricultura patronal recebe 120 bilhões de reais no Plano Safra, a agricultura familiar recebe em torno de 22 bilhões. Isso não significa que esses 22 bilhões sejam destinados para a agroecologia. Muito pelo contrário. Boa parte dos recursos orientados para a agricultura familiar — que são recursos para crédito agrícola — são empregados para a compra de fertilizantes químicos, agrotóxicos, sementes comerciais, muitas vezes transgênicas. Nesse sentido, trata-se de uma política para a agricultura familiar que acaba por induzi-la a incorporar a lógica técnico-econômica empresarial.
Agora, alguns programas mostraram grande aderência com as práticas da agroecologia. Dou como exemplo o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar — PAA. Esse programa — que existiu enquanto mecanismo de compra antecipada e doação de alimentos — fortaleceu muito as iniciativas de redes de agroecologia no Brasil inteiro. Os recursos nunca foram muito elevados, mas foram essenciais para fortalecer pequenas organizações econômicas da agricultura familiar, para estimular a diversificação produtiva dos estabelecimentos familiares, inclusive com a revalorização econômica de produtos da sociobiodiversidade. Mostrou-se ao mesmo tempo como uma política de promoção da segurança alimentar e nutricional, de desenvolvimento rural e de conservação da biodiversidade. A coerência com a perspectiva agroecológica está justamente no fato de que é uma política de efeito multidimensional, pois há ganhos sociais, econômicos, ambientais e culturais, já que são revalorizadas práticas, valores e hábitos alimentares que estão sendo perdidos com a disseminação da agricultura industrial.
IHU On-Line — Como o programa Ecoforte tem contribuído para o desenvolvimento de redes de agroecologia?
Paulo Petersen — O programa Ecoforte parte exatamente dessas ideias que estou abordando. Ele foi uma proposição nascida da sociedade civil, particularmente de organizações vinculadas à Articulação Nacional de Agroecologia. Trata-se de um programa de apoio às redes territoriais de agroecologia. É uma das iniciativas integradas à Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – Pnapo.
A Pnapo é uma política que envolve vários ministérios e órgãos públicos e, por meio de um plano de ação e investimentos, o Planapo, procura dar coerência às políticas desses ministérios e órgãos no sentido de apoiar a agroecologia. Qual é o sentido inovador do Ecoforte? Em primeiro lugar, o fato de que o Estado reconhece a sociedade civil como protagonista na promoção da agroecologia a partir da conformação da ação em redes territoriais. Esse primeiro aspecto não é de pouca relevância em um Estado que historicamente teve resistência a reconhecer as organizações da sociedade civil como agentes de promoção e defesa do interesse público. Em segundo lugar, o fato de que o programa é implementado a partir de editais públicos por meio dos quais as redes elaboram e apresentam as suas propostas. Portanto, não estamos falando de projetos elaborados de cima para baixo a serem executados por organizações não-governamentais. São as próprias redes que são convidadas a elaborar suas propostas. Essa é uma expressão do que antes chamamos de democratização do Estado, isto é, o Estado e a sociedade coproduzindo políticas públicas. Então, as propostas que seguem para os diferentes territórios são, necessariamente, diferentes porque as realidades são distintas e essa é uma característica da agroecologia. Ou seja, não existe solução única válida para todo lugar; as soluções dependem do tempo e do espaço nos quais essas redes estão se desenvolvendo.
Existe uma série de critérios técnicos e de composição das próprias redes, que devem necessariamente envolver organizações diversificadas cumprindo diferentes funções, podendo ser elas estatais e não-estatais. Outro aspecto a ser considerado nos projetos submetidos aos editais do Ecoforte é a participação de mulheres, jovens, comunidades de assentados, povos indígenas e comunidades tradicionais. Todos esses são critérios classificatórios para a seleção dos projetos que indicam a determinação da política em reconhecer as especificidades de diferentes sujeitos de direitos das políticas públicas. Os recursos alocados são provenientes do BNDES e da Fundação do Banco do Brasil. O Ecoforte é uma experiência extremamente inovadora, muito coerente com os fundamentos técnicos e sociais da agroecologia. Estamos exatamente nesse momento realizando na ANA um esforço de sistematização dos resultados do primeiro edital do Programa Ecoforte de apoio às redes de agroecologia. No IV ENA haverá um seminário específico onde os resultados preliminares dessa sistematização serão apresentados e debatidos. Dados o caráter inovador do programa e o forte interesse internacional pelas iniciativas brasileiras de institucionalização da agroecologia, temos tido a oportunidade de divulgar o Ecoforte em diferentes espaços de debate, como no simpósio da FAO, por exemplo. Procuramos ali demonstrar que o Programa Ecoforte não substitui nem toma o lugar de outras políticas. A sua maior virtude é justamente é a de favorecer que elas sejam adotadas em sinergia segundo uma coerência estratégica definida pelas redes de agroecologia.
Arrisco a dizer que o Programa Ecoforte talvez tenha sido a maior das maiores inovações institucionais no âmbito da Pnapo.
IHU On-Line — Quais são as dificuldades das redes territoriais diante do alto consumo de agrotóxicos e de transgênicos na agricultura?
Paulo Petersen — Essa é uma questão que tem sido muito discutida e que será objeto de debate no IV ENA. Foi também debatido no Simpósio da FAO a que me referi. O fato é que as redes territoriais de agroecologia não se desenvolvem sem conflitos nos próprios territórios em que estão estruturadas. Da mesma forma que existem redes de agroecologia, existem redes do agronegócio que disputam recursos e meios de produção. Como já disse, o Estado emprega a maior parte dos orçamentos de suas políticas no apoio aos arranjos produtivos do agronegócio, que se caracterizam por serem cadeias estruturadas verticalmente que vinculam as unidades de produção a agentes econômicos externos aos territórios.
Existe um discurso de que o Brasil é muito grande, que tem espaço para todo mundo e para todos os modelos. Mas o que temos avaliado, com a sistematização dessas redes de agroecologia, é que essa convivência é impraticável. Isso porque um modelo que se baseia na valorização e na conservação dos recursos naturais, na biodiversidade, na construção de mercados locais e na valorização da cultura alimentar local não pode ser compatibilizado com outro que depende de se expandir territorialmente para manter as taxas de lucratividade de suas monoculturas e que, além disso, se vale de tecnologias que não respeitam os limites dos estabelecimentos, como os agrotóxicos e os transgênicos. O apoio ao modelo do agronegócio acaba inviabilizando as possibilidades de expansão da agroecologia; essa é uma razão de crescentes conflitos territoriais no Brasil e no mundo. O que temos afirmado é o seguinte: se quisermos de fato crescer com a agroecologia, precisamos reduzir o apoio ao agronegócio.
Portanto, a proposição da convivência de modelos não é realista. Temos que, de fato, começar a colocar restrições a um sistema que é extremamente predatório. Nesse sentido, temos alguns exemplos, entre eles, a própria Pnapo. Na Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, da qual faço parte, foi elaborado um Programa Nacional de Redução dos Agrotóxicos – Pronara. Esse programa não tinha nada de radical. Não propunha uma ruptura com os agrotóxicos. Ao contrário, a proposta foi elaborada exatamente para reduzir a carga de agrotóxicos empregados nas lavouras, uma parte importante dela absolutamente desnecessária para os produtores. Muitos produtores que têm a perspectiva de produzir orgânicos são impossibilitados de levar à frente seus projetos porque a vizinhança produz com agrotóxicos; isso é uma verdadeira violação de direitos. Então, a proposta era começar a trabalhar com as alternativas que existem, porém não são estimuladas pelas políticas públicas, a começar pelo crédito agrícola.
Uma das ações do Pronara era direcionada à capacitação para o uso de alternativas técnicas aos agrotóxicos. Além de serem menos danosas para a saúde e para o meio ambiente, essas alternativas podem ser mais baratas. Evidencia-se mais uma vez o fato de que a perspectiva agroecológica induz a soluções tecnológicas do tipo ganha-ganha; nesse caso, ganham os agricultores, ganham os consumidores. Mas, se é assim, por que essas alternativas não são mais incentivadas? Essa é a questão a ser respondida. Se temos alternativas técnicas, elas precisam ser colocadas em prática e estimuladas pelo Estado. Este foi o princípio do Pronara que, infelizmente, não saiu do papel.
IHU On-Line — Quais são os objetivos do IV Encontro Nacional de Agroecologia – ENA? Quais são os principais desafios em relação às redes territoriais de agroecologia?
Paulo Petersen — Como já disse, o lema do IV Encontro Nacional de Agroecologia é “Agroecologia e Democracia, unindo o campo e a cidade”. Esse lema tem muito a ver com a conjuntura nacional: sofremos um golpe institucional, que derrubou um governo legitimamente eleito. Estamos falando de um governo que tinha a escuta para a sociedade civil. Portanto, esse debate da democracia é fundamental, porque temos a consciência de que, sem um Estado que crie instâncias de diálogo em diferentes espaços, dificilmente a agroecologia prosperará.
O aprofundamento da democracia é uma condição para o avanço daagroecologia. As políticas públicas de apoio à agroecologia ou para refrear o agronegócio são fundamentais. Essa é a nossa agenda principal. Assim, no encontro vamos repercutir como as redes de agroecologia estão enfrentando este momento atual em seus territórios. Sabemos que este é um momento de grande recrudescimento da violência no campo, com assassinato de lideranças e violência contra as mulheres e povos tradicionais, que têm seus direitos territoriais ameaçados. Isso tudo se dá por conta de uma lógica econômica expansiva, violenta e autoritária. Estamos fazendo esse debate não só para denunciar o golpe, mas para pensar estratégias para seguir adiante.
Temos, inclusive, que discutir com forças de esquerda que também têm dificuldades de entender a vitalidade dessas experiências e de entender que a sociedade civil precisa ser chamada para cogerir as políticas públicas. As experiências de agroecologiademonstram que o Estado sozinho não tem condições para construir e fortalecer sistemas agroalimentares democráticos e sustentáveis. Vamos fazer essa reflexão a partir da realidade dos territórios, porque 70% do encontro é composto por agricultores e agricultoras, quilombolas e indígenas, que vão trazer a voz dos territórios, que é a voz menos escutada. São nesses territórios onde as experiências de agroecologia são construídas. Precisamos aprender com essas experiências. Esse é o grande sentido do IV Encontro Nacional de Agroecologia.
IHU