A economia da floresta traz uma perspectiva de desenvolvimento aliada à conservação das florestas em pé e à segurança física e cultural dos povos indígenas, quilombolas, extrativistas e demais comunidades tradicionais. É uma alternativa ainda relativamente pouco explorada no país, mas que já tem resultados significativos. O setor movimentou pelo menos R$ 3,9 bilhões, entre 2013 e 2016 – número subestimado em função da ausência de informações sobre parte da produção e comercialização.
A reportagem é de Victor Pires, publicada por ISA, 26-09-2018.
Além disso, os produtos da chamada “sociobiodiversidade” trazem benefícios não contabilizados, “externalidades positivas, como a proteção das florestas, a segurança dos recursos hídricos, a manutenção da diversidade sociocultural, regulação do regime de chuvas, conservação das matas, manutenção da diversidade sociocultural e armazenamento dos estoques de carbono.
Apesar disso, o setor ainda é encarado como secundário, carecendo de incentivos públicos e privados. Para ajudar a trazer o assunto ao debate eleitoral, o ISA o incluiu no dossiê Eleições 2018: direitos territoriais e economia dos povos da floresta no próximo mandato presidencial. Entenda algumas das propostas do ISA para esse tema na segunda reportagem sobre o documento.
Normas que vêm de fora
Especialistas e lideranças ouvidos pela reportagem reclamaram da falta de adaptação da legislação e das políticas públicas aos contextos específicos dos povos e comunidades tradicionais. Eles relatam que o problema impõe dificuldades e barreiras ao desenvolvimento das cadeias produtivas da floresta.
“Tratar de forma hegemonizada a produção é um dos piores equívocos. A produção é diversificada. Portanto, ao ser diversificada, os normativos e as políticas também precisam ser”, critica Givânia Silva, da Coordenação da Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). “Sem isso, vai se fazer políticas para os grandes latifundiários e corporações, que produzem para exportar, enquanto o agricultor e a agricultora familiar produzem desassistidos e pagando os mesmos tipos de impostos, sendo regidos pelas mesmas leis”, completa.
“Se criam padrões de estrutura que são de grande escala e não necessariamente vão garantir a qualidade. Pode se ter uma estrutura mais simples, em que todo o processo é feito de forma a manter a qualidade do produto final”, defende Jeferson Straatmann, coordenador técnico de Cadeias de Valor no ISA. Straatmann informa que, para os produtos de origem animal, as restrições são ainda mais severas. Ele dá o exemplo de comunidades quilombolas de Oriximiná e indígenas da Terra do Meio, no Pará, que tiveram seus pescados barrados no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) por não atender às normas sanitárias, sendo que os peixes abasteceriam escolas e estudantes da própria região, os quais já utilizam cotidianamente esta fonte de alimento.
No dossiê, o ISA defende que o governo federal institua normas técnicas e sanitárias diferenciadas e adequadas à produção dos povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares.
Sem apoio e infraestrutura, fica difícil avançar
Além de barreiras normativas, outro fator que dificulta o desenvolvimento das iniciativas ligadas à Economia da Floresta é a carência de infraestrutura e de incentivos tanto aos arranjos produtivos próprios dos povos indígenas, quilombolas e comunidades extrativistas quanto aos agentes privados que utilizam ou desejam utilizar os insumos provenientes destas formas de produção.
“Não se consegue desenvolver um trabalho, quando se trata de economia, onde você não tem energia 24 horas e água tratada. São duas políticas estratégicas para quem mexe com economia”, avalia Joaquim Belo, presidente do Conselho Nacional de Populações Extrativistas (CNS). A ausência de infraestrutura vai desde a dificuldade em acessar a rede de internet nas comunidades até a falta de estradas para escoar a produção.
“A infraestrutura tem que vir associada à assistência técnica, porque a infraestrutura sozinha não promove a organização comunitária, nem o beneficiamento de produtos e nem produtos de qualidade”, avalia Straatmann. O ISA traz como proposta a ampliação de assistência técnica e extensão rural especializada para sistemas agrícolas tradicionais, além de apoio à gestão das associações produtivas das comunidades e a implantação de infraestrutura necessária ao desenvolvimento das cadeias.
O ISA também propõe incentivos econômicos à produção dos povos e comunidades tradicionais. Uma das propostas no dossiê tem o intuito de implementar a desoneração tributária de produtos indígenas e de comunidades tradicionais e das receitas auferidas por suas organizações representativas.
O o advogado Felipe Cabral explica que, de acordo com a legislação, a desoneração tributária se dá em regra por meio de lei, através da discussão e eventual aprovação de um projeto pelo Congresso Nacional, processo que pode durar anos. “O que o Executivo poderia fazer é mexer em caráter imediato nas bases de cálculo de impostos a fim de, aí sim, chegar à desoneração, e no caso do ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços], por exemplo, incluir na sua regulamentação os produtos da floresta numa nova categoria específica e desonerada”, explica.
“Praticamente não existem incentivos [para os investidores privados]. Pelo contrário, quem está envolvido, assume um risco. Acredito que são processos. Eles [os investidores] têm que fazer esse movimento, mas é fundamental que as políticas públicas e os incentivos comecem a dar uma direção nisso”, defende Rodrigo Junqueira, coordenador do Programa Xingu do ISA. Como forma de suprir essa necessidade, entre as propostas para o próximo presidente, o dossiê defende a instituição de linhas de crédito e facilidades tributárias para investimentos privados que utilizem insumos da sociobiodiversidade.
“É preciso discutir mecanismos de valorização desses produtos, para que ganhem no mercado a devida importância que devem ter”, resume Angela Kaxuyana, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
Cadeia da restauração florestal
Outra atividade econômica pouca explorada no país é a restauração florestal. O Brasilcomprometeu-se, no âmbito do Acordo do Clima, assinado em 2015 em Paris, a restaurar 12 milhões de hectares de vegetação nativa até 2030, área equivalente à da Coreia do Norte. Isso incentivou a discussão sobre o assunto. Foi instituída em 2017 a Política Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Pronaveg), que deve ser implementada por meio do Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg).
“Conversa-se muito sobre isso há anos, mas agora começou a ter algum tipo de movimento. Ainda acho que é muito tímido perante o tamanho do desafio, que é gigantesco”, avalia Rodrigo Junqueira. Segundo ele, os adiamentos sucessivos para a conclusão do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e a falta de regulamentação dos Programas de Regularização Ambiental (PRA) pelos estados são fatores que também dificultam o desenvolvimento das cadeias produtivas florestais, trazendo insegurança jurídica e desestimulando a adesão dos proprietários às iniciativas de restauração.
O CAR e o PRA estão previstos no Código Florestal (lei 12.651/2012). O CAR é o instrumento de registro de todos os imóveis rurais e das áreas de povos e comunidades tradicionais e povos indígenas no país, incluindo cursos de água, áreas podem ser desmatadas, devem ser preservadas e recuperadas.
No dossiê, o ISA defende a instituição de normas apropriadas para estimular a cadeia comercial da restauração florestal e o aproveitamento econômico da vegetação nativa. Também defende a integração entre o Planaveg e o Sistema de Cadastro Ambiental Rural e aos PRAs.
Mercados institucionais
Outra importante fonte de recursos para os povos e comunidades tradicionais são os mercados institucionais, programas e políticas oficiais. São exemplos o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa de Garantia de Preço Mínimo para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPMBio), que garante um preço base para 17 produtos da floresta, como o açaí, a andiroba e o buriti, por exemplo.
“Não basta ter a política disponível. As comunidades precisam acessar. A comunidade que consegue acessar melhora a vida das famílias. A compra institucional exige um projeto, um planejamento de venda e produção. Muda a vida”, defende Ivanildo Brilhante, técnico do Conselho Nacional de Populações Extrativistas (CNS). Ele ressalta, no entanto, que as barreiras burocráticas são um empecilho para muitas comunidades participarem desses programas.
Uma das exigências para participar do PAA e PNAE é a declaração de aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). A certidão também facilita o acesso a financiamento de custeios e investimento a juros mais baixos. “Ter que ir à cidade, quando você mora em regiões remotas para fazer cadastros, participar de pregões e atender aos processos burocráticos de forma geral cria um custo de transação maior quando se compara com o agricultor que está próximo da cidade. Isso dificulta e vale para várias políticas”, diz Straatman. Ele dá o exemplo das comunidades extrativistas da Terra do Meio (PA), que iniciaram o processo para obter a certidão de aptidão ao Pronaf em 2008 e só conseguiram concluí-lo em 2014.
Sustentabilidade e segurança
A organização e o incentivo às cadeias produtivas dos povos e comunidades tradicionais ampliam a segurança das famílias e de seus territórios.
“A gente tem muitos jovens que acabam saindo fora para procurar novos empregos, um estudo melhor. Se a gente tivesse um comércio com mais frequência, esses jovens poderiam ficar aqui, comercializando suas próprias sementes e se empolgando mais para o trabalho com a mata”, diz Maria Tereza Vieira, moradora do quilombo Nhunguara, no Vale do Ribeira (SP/PR). Ela trabalha com a coleta e comercialização de sementes e mudas nativas da Mata Atlântica para a restauração florestal.
Raimundo Belmiro, cantineiro da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, na Terra do Meio (PA), lembra do tempo em que a única opção para escoamento dos produtos e compra de materiais necessários eram as transações com atravessadores, intermediários entre os produtores e os compradores nas cidades. “Eu mesmo cansei de quebrar castanha, quando eu era novo, pra ter de 500 a 600 caixas. E no final, ficava devendo, não tirava nada. Depois da criação das cantinas, melhorou a situação”, lembra Belmiro.
As cantinas são uma iniciativa surgida da necessidade de garantir formas mais justas de comércio para os extrativistas da Terra do Meio e consistem, de forma simplificada, em espaços de comércio gerenciados pelas próprias populações, com o apoio de parceiros, onde é possível vender a produção e comprar os produtos manufaturados que vêm das cidades, tudo a um preço mais justo do que aqueles antes praticados pelos atravessadores.
IHU