Mineração: o sistema exige ética por parte de todos


Desde o rompimento da barragem em Brumadinho, o MPMG ajuizou cerca de 20 ações para exigir que sejam contratadas novas auditorias. (Reuters)

Por Patrícia Azevedo
Repórter Dom Total

Fundamental para a economia do país e de Minas Gerais, a mineração é compatível com a sustentabilidade do meio ambiente desde que articulada com a tecnologia, praticada com responsabilidade e compromisso jurídico por parte dos empreendedores. A avaliação é do professor Marcelo Kokke, da Dom Helder Escola de Direito, que atua também como procurador federal da Advocacia-Geral da União. Com pós-doutorado em Direito Público Ambiental pela Universidade de Santiago de Compostela, Kokke presidirá debate sobre o tema durante o seminário Jurisdição Ambiental, que será realizado na próxima semana em Belo Horizonte.

Em entrevista ao Dom Total, o professor aponta que é preciso repensar a estrutura dos empreendimentos, considerando a gestão de riscos e a geração do passivo ambiental. “É como se nós tivéssemos fazendo grandes buracos e achando que estamos tendo lucro com o que estamos tirando do buraco. Só que, depois, a gente vai ter que utilizar os nossos recursos para tampar os buracos e regularizar. Então, aquele custo futuro vai diminuir o nosso lucro presente. E pode virar prejuízo”, explica Kokke.

Quando ocorrem desastres, o prejuízo é multiplicado com indenizações, alto custo de imagem pública e ações de reparação, entre outras despesas. De acordo com o professor, é fundamental o entendimento de que o comportamento ambientalmente adequado gera ganhos econômicos para as empresas. Para que esse comportamento seja mantido, as próprias mineradoras devem aprimorar os sistemas de controle com participação de auditorias externas. “É inviável, do ponto de vista fático, a fiscalização contínua do Estado. O sistema exige uma ética por parte de todos, e um compromisso jurídico também por parte dos empreendedores”, aponta Kokke.

Brumadinho

O aprimoramento da relação entre empresa, auditoria e fiscalização do Estado é um dos pontos que serão debatidos no seminário. Em exemplo concreto e recente, a atuação das auditorias externas no monitoramento da barragem da Mina do Feijão, em Brumadinho, está sob investigação do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). A suspeita é de que a empresa alemã Tuv Sud, responsável pelas vistorias técnicas, tenha sido pressionada a emitir laudos atestando condições favoráveis ao empreendimento.

Desde o rompimento da barragem, o MPMG ajuizou cerca de 20 ações civis públicas para exigir que sejam contratadas novas auditorias, com o objetivo de verificar as reais condições de estruturas pertencentes à Vale. “Existem hoje várias propostas, voltadas para manter o sistema de auditorias, porque ele é necessário na nossa conjuntura, mas de forma a garantir que esse sistema seja mais puro em sua execução”, informa Kokke.

Confira abaixo a entrevista:

Professor Marcelo KokkeProfessor Marcelo Kokke, da Dom Helder.Como conciliar a exploração mineral, chave para a economia de Minas Gerais e do país, com a preservação ambiental?

Um ponto-chave nesse conciliação e vinculação é a sustentabilidade. Quando falamos em sustentabilidade, quer dizer: pensar a mineração a partir de estudos de impacto ambiental, com estratégias e mecanismos tecnológicos para mitigar impactos ambientais e adotar posturas de compensação. Se a mineração for bem articulada tecnologicamente e responsável, ela é antes de tudo algo favorável ao meio ambiente. Por que eu digo isso? Porque ela gera acréscimo de renda, de distribuição de recursos e, a partir disso, nós temos maiores elementos para subsidiar ganhos ambientais em outras áreas.

Estudos de impacto ambiental e mecanismos tecnológicos são ferramentas que já existem. Como aprimorar ou estimular o seu uso?

Precisamos pensar na viabilidade econômica e nos incentivos para que as empresas adotem. O sistema Dry, que é o sistema de mineração a seco, existe, só que ele é mais caro. Então, tenho que ter impulsos econômicos e sociais, inclusive com políticas econômicas, para torná-lo favorável. Não basta uma tecnologia existir dentro de laboratórios, precisamos dela no campo real, adotada pela sociedade.

Como o senhor avalia a atuação de órgãos e entidades públicas em resposta aos desastres?

Há uma percepção – e esse evento da Dom Helder é essencial para isso – da necessidade de um tratamento holístico em relação aos desastres. É a perspectiva do todo. O evento busca justamente problematizar a necessidade de um paradigma para se pensar em desastres, para que a gente possa interiorizar o desastre como algo que possa acontecer, para que não aconteça. Nós interiorizamos o risco, traçamos estratégias em face do risco, para que não tenhamos o desastre. Devemos passar daquela época que, para se evitar qualquer tipo de desastre, as pessoas pensavam que bastava bater na madeira.

Qual a situação das empresas mineradoras neste momento em Minas Gerais? Como essa situação tem refletido na economia do estado?

Isso é muito importante, porque quando a gente pensa em empresas mineradoras, há uma tendência de uniformizarmos todas e colocá-las em uma imagem tal qual as grandes mineradoras. Isso é irreal. O problema da mineração hoje pode ser um problema tanto micro como macro empresarial. Temos problemas seríssimos com garimpeiros em Minas Gerais. Há regiões, como o Norte de Minas, com lesões ambientais gigantescas derivadas de garimpeiros. Por quê? O garimpo em si é feito sem responsabilidade ambiental. Você não sabe sequer quem faz. Não há planejamento, não há estudo de impacto ou avaliação nenhuma sobre quem faz. E os garimpos estão afetando áreas de preservação permanente, cursos hídricos.

Além disso, nós temos uma percepção de que as empresas em si, aquelas que são empresa mesmo, têm o mesmo porte. Não têm. Você tem desde a micro mineradora até as grandes mineradoras internacionais. Não se pode tratar todas de forma igual. Temos que ter um anteparo, por exemplo, para pensar em um fundo em relação às pequenas mineradoras, porque, se a pequena mineradora gera um desastre, quem vai arcar? Qual a estrutura para fazer face a uma prevenção e precaução de desastre para o pequeno empreendedor? Em face disso, ainda é preciso robustecer o sistema de monitoramento de riscos. E esse sistema demanda que se reduza os níveis de tecnologia passíveis de risco. Por exemplo, as barragens de alteamento a montante, repensar barragens, repensar estruturas para gerar o menor passivo ambiental. Quando se pensa em lucro hoje, deve se pensar em lucro conjugado com o menor passivo ambiental e gestão de risco. O evento da Dom Helder é muito mais do que um evento ligado apenas à temática jurídica, ele pensa o todo para refletir como o Direito está ligado a problemas sociais, culturais e econômicos. Devemos encarar os problemas econômicos de frente e não simplesmente renegá-los, porque renegar um problema é fechar os olhos para uma catástrofe que vai acontecer.

A relação entre empresas e Estado é complexa e apresenta falhas, sobretudo com relação a fiscalização e dados informados pelas empresas aos órgãos governamentais competentes. Como aprimorar esta relação?

Há uma necessidade hoje de lidar principalmente com as auditorias independentes, as auditorias externas. O ponto-chave tematizado hoje é: como garantir um sistema de controle por parte dos próprios empreendedores. É inviável, do ponto de vista fático, a fiscalização contínua do Estado. E quando eu falo isso, as pessoas geralmente se assustam, porque não têm ideia de como é uma fiscalização de controle de barragens, por exemplo, ou sistema de controle minerário. Há situações em que a fiscalização tem que fazer apurações diárias, e quão muito quinzenais. Com autos e relatórios. Então, imaginem, nós teríamos fiscais para estar em todos os locais, diária ou quinzenalmente? Não teríamos. E se tivesse, a economia ia ficar travada, é como se eu afirmasse que todo dia haveria um policial em cada rua de Belo Horizonte conferindo se todo mundo está com carteira de motorista ou documento do carro. Em outros termos: é necessário repensar as auditorias para garantir uma fidedignidade nos laudos e garantir uma seriedade no repasse de informações às agências governamentais. O sistema exige uma ética por parte de todos, e um compromisso jurídico também por parte dos empreendedores.

Colocando regras mais rígidas para essas consultorias?

Isso. E há uma proposta de que o próprio Estado determine, em vias de sorteio, quais serão as consultorias a serem contratadas. São propostas várias que existem hoje, voltadas para manter o sistema de auditorias, porque ele é necessário na nossa conjuntura, mas garantir que esse sistema seja mais puro em sua execução.

Isso acontece em âmbito mundial? Uma consultoria alemã está sendo processada pelos laudos emitidos para a Barragem do Feijão, em Brumadinho.

É como se a gente tivesse gerando uma situação um tanto quanto íntima por demais entre o empreendedor que contrata e a empresa que é contratada. Imagine o seguinte: se uma determinada auditoria externa é tão rígida, tão rígida, ela pode se tornar uma empresa avessa a ser contratada pelo mercado. Qual é a ideia? Se houver uma base de sorteio, o empreendedor não pode se negar a contratar aquele que é rígido. Nós darmos também para a auditoria externa, enquanto ordenamento jurídico, respaldo para que ela possa, de forma ética e economicamente viável, executar seu trabalho.

Com colaboração e edição de Pablo Pires.

Redação Dom Total