Andre de Paiva Toledo*
O Rio Orenoco, o canal natural de Gaciquiari, o Rio Negro, o Rio Amazonas e o Oceano Atlântico são os limites da região localizada no extremo Nordeste da América do Sul, conhecida como Guiana. Não se discute assim que a Guiana Francesa seja um espaço amazônico. Porém, a Guiana Francesa não é um Estado soberano. Ao contrário, ela compõe organicamente o território da França.
A França tem sido excluída do processo de integração amazônica, por razões geopolíticas. Por exemplo, quando da assinatura, em Brasília, do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), em 1978, a França, além de não ter participado das negociações, não pode aderir a ele posteriormente, em virtude do artigo 27.
Por conta da distância entre a Guiana Francesa e a França Metropolitana, há dificuldades práticas para inserir a Amazônia na dinâmica interna do país europeu. Isso não impede, entretanto, que a Guina Francesa se destaque regionalmente por conta da existência de mecanismos de amparo do Estado de bem-estar social. Isso faz com que a Guiana Francesa seja o destino de muitos migrantes brasileiros, haitianos, surinameses e guianenses.
Apesar da distância, a França é soberana sobre uma pequena porção da Amazônia, o que faz com que o Direito francês seja ali aplicado. Analisando as normas internas relativas à Amazônia, destaca-se a Carta Ambiental, que, em consonância com todo o bloco constitucional, obriga a França a agir para proteger o meio ambiente amazônico, impedindo a prática de atos potencialmente destrutivos.
No que concerne aos cursos d’água, que são abundantes na Amazônia, o Estado deve garantir que as intervenções artificiais (por exemplo, construção de hidrelétricas) não comprometam o bom funcionamento dos ecossistemas aquáticos à jusante. A mesma abordagem de prevenção deve ser adotada quando da exploração dos recursos minerais, que são de propriedade pública. Para tanto, o Estado deve expedir previamente um título de mineração.
Na Guiana Francesa, destaca-se a mineração de ouro. Apesar do controle do Estado francês sobre a mineração, o aumento significativo da procura pelo ouro – o que também incentiva os movimentos migratórios regionais – tem causado importantes impactos socioambientais na floresta, que cobre 95% do território ultramarino e é um dos últimos massivos equatoriais quase intactos. O garimpo ilegal de ouro em terras indígenas também é um desafio enfrentado pelo Estado na Guiana Francesa.
Diante de sua rica biodiversidade amazônica, a França tem criado mecanismos legislativos de proteção da fauna e flora. Neste sentido, adotam-se atos administrativos para listar as espécies protegidas, cujo comércio é proibido. Além disso, o Estado tem criado reservas naturais nacionais e regionais como espaços de conservação ambiental. Na Guiana Francesa, destaca-se o Parque Amazônico da Guiana, que possui uma área de 3 milhões de hectares.
Segundo a lei francesa, é possível que recursos biológicos encontrados no Parque Amazônico da Guiana sejam explorados e aproveitados, desde que seja garantida a partilha de benefícios. Trata-se de um regime específico de consentimento, fundado na repartição de competências entre a região e o departamento, em vista de utilização sustentável dos recursos amazônicos franceses.
Na Guiana Francesa, assim como em outros departamentos ultramarinos, reservas biológicas integrais têm sido instituídas com o propósito de constituir redes representativas da diversidade dos ecossistemas florestais e proteger as florestas primárias, o que implica uma atuação harmônica com os modos de vida das populações tradicionais.
No que concerne a essas populações, já nos anos de 1960, a França constatava a precariedade das condições de vida dos indígenas da Guiana Francesa. Vivem no departamento ultramarino mais de 10 mil indígenas, divididos em seis grupos, que compõem cerca de 5% da população daquele departamento ultramarino. São eles os Arawak, Kali’na, Palikur, Teko, Wayana e Wayapi. As populações indígenas da Guiana Francesa são majoritariamente transfronteiriços, podendo ser encontrados no território dos Estados vizinhos. Na comuna de Awala-Yalimapo, por exemplo, há uma coordenação inédita entre o Direito francês e o costume indígena, consolidada em uma Comissão Mista, criada pelo Conselho Municipal com base no Código Geral das Coletividades Territoriais.
Ao longo do tempo, tem-se discutido um estatuto para as terras tradicionalmente ocupadas por esses grupos. Chegou-se ao impasse de que a noção de “terras coletivas e de usufruto” reivindicadas por essas populações confrontava-se diretamente com o instituto da propriedade privada. Em 1987, instituiu-se enfim o regime das zonas de direitos e usos coletivos, que beneficiou diretamente os povos indígenas da Guiana Francesa, ao lhes conceder títulos reais de uso dos recursos florestais para subsistência. Além disso, a Lei de Orientação para o Além-Mar também dispõe sobre o regime jurídico das atividades produtivas autóctones em suas terras tradicionais. Contudo, apesar do avanço normativo, a efetividade desse regime tem sido constantemente questionada.
Apesar de ser um país desenvolvido, a França enfrenta os mesmos desafios socioambientais enfrentados pelos outros oito Estados subdesenvolvidos, no que concerne à proteção da Amazônia. Em vista desse objetivo comum, é importante considerar a França, não apenas em termos geográficos, mas em termos político-jurídicos, como Estado amazônico, de modo a facilitar a construção de instrumentos de cooperação internacional.
** Este texto é o sexto da série de nove artigos sobre jurisdição ambiental dos países que compõem a Pan-Amazônia. A versão integral do livro Pan-Amazônia: O ordenamento jurídico na perspectiva das questões socioambientais e da proteção ambiental está disponível gratuitamente no site da Editora Dom Helder. Leia amanhã texto de Márcio Luís de Oliveira e José Adércio Leite Sampaio sobre o Peru.
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* Doutor em Direito pela Université Panthéon-Assas Paris II. Professor da Dom Helder Escola de Direito. Membro do Grupo de Pesquisa da Pan-Amazônia.