Depois que ocorrem eventos extremos que causam comoção social, geralmente medidas concretas e urgentes são anunciadas pelas autoridades, visando evitar a repetição do fato danoso. O caso do desastre de Mariana (MG), contudo, é uma clara exceção à regra. No lugar de dotar órgãos fiscalizadores com estrutura e recursos para garantir a segurança das barragens, seguiu-se a inércia e negligência governamentais.
Não houve responsabilização e punição adequadas das empresas envolvidas, assim como as vítimas seguem, após mais de três anos, sem medidas que lhes assegurem condições dignas de vida.
Para piorar, desde o desastre, os sinais vindos de Brasília seguiram em direção oposta ao que seria necessário para evitar outra tragédia. Ao contrário de fortalecer o licenciamento ambiental, instrumento central da Política Nacional do Meio Ambiente, avançaram proposições legislativas destinadas a enfraquecê-lo – ou simplesmente eliminá-lo.
Desde Mariana, o País remou contra o fluxo da segurança e da prevenção e o resultado não demorou a acontecer: o rompimento de mais uma barragem de rejeitos minerários, agora em Brumadinho (MG), na maior tragédia socioambiental com vítimas fatais da história brasileira.
Sucateamento de órgãos fiscalizadores
O desastre de Mariana escancarou o sucateamento dos órgãos ambientais e minerários. Devido a um contínuo processo de desinvestimento nos âmbitos federal e estadual, esses órgãos não têm condições de cumprir as atribuições determinadas pela legislação.
Segundo o último Relatório de Segurança de Barragens, produzido pela Agência Nacional de Águas (ANA) sobre 2017, há um total de 24.092 barragens no Brasil, incluindo as destinadas à irrigação, aquicultura, hidrelétrica e rejeitos minerários. Dessas, apenas 3% foram efetivamente vistoriadas pelos órgãos fiscalizadores. Das 790 barragens de rejeitos minerários sob responsabilidade da Agência Nacional de Mineração (ANM), apenas 27% ou 211 foram avaliadas. Do orçamento federal destinado à fiscalização de barragens, foram utilizados somente 23% do previsto.
É preciso que se compreenda, urgentemente, que a falta de condições institucionais desses órgãos, além de impor inaceitáveis riscos ao meio ambiente e à população, prejudicam os próprios empreendedores, que reclamam do tempo necessário para a obtenção de licenças ambientais.
O caminho para impedir novas tragédias é o do fortalecimento desses órgãos e da transparência das informações. Aliás, de nada adianta pretender agilizar o processo de licenciamento por alterações da lei se permanecer a política deliberada de desestruturação da fiscalização.
Propostas de enfraquecimento do licenciamento
Igualmente grave é o apetite de alguns parlamentares e do lobby da mineração por enfraquecer o licenciamento ambiental, cuja principal função é prevenir impactos socioambientais. Apenas 20 dias após o rompimento da barragem de Mariana, uma comissão especial do Senado aprovou o Projeto de Lei (PL) n.º 654/2015, que estabelece o “licenciamento a jato” para empreendimentos de infraestrutura, justamente aqueles com maiores impactos e riscos socioambientais.
Menos de seis meses após a mesma tragédia, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 65/2012, que simplesmente extingue o licenciamento. Na Câmara, está pronto para votação em plenário o PL n.º 3.729/2004, apelidado de “licenciamento flex”, que dispensa de licenciamento atividades com potencial degradador e permite o licenciamento autodeclaratório, com emissão automática da licença, sem análise prévia do órgão ambiental. Não bastasse isso, a proposta de um novo Código de Mineração acabou se consolidando parcialmente por meio de três Medidas Provisórias (MPs) que ignoram qualquer questão de segurança socioambiental.
Apesar disso, não avançou nenhuma proposta voltada ao fortalecimento dos instrumentos de fiscalização e prevenção, como a que impõe sistemas de emergência para todas as barragens de rejeitos minerários.
Retrocessos nos Estados
Os retrocessos em âmbito federal foram acompanhados de propostas similares nos estados, entre os quais Minas Gerais. Dois meses após Mariana, a Assembleia Legislativa aprovou a Lei n.º 21.972/2016, proposta pelo Executivo estadual, que igualmente enfraquece o licenciamento. Com base na nova lei e seus regulamentos, a barragem da mina Córrego do Feijão, que se rompeu em Brumadinho, teve sua classificação de risco rebaixada do grau 6 para o grau 4, o que reduziu o nível de exigência do licenciamento de ampliação do empreendimento, aprovado no final de 2018, apesar dos alertas sobre os riscos envolvidos. A Comissão de Minas e Energiada mesma casa legislativa rejeitou a proposta que endurecia as regras sobre segurança de barragens, elaborada por uma comissão externa, criada após o desastre de Mariana.
A inversão de sinais é igualmente verificada no âmbito governamental. A então presidente Dilma Rousseff chegou a ser formalmente criticada por relatores especiais da ONU devido à sua postura no desastre de Mariana. Entre os atos para blindar as empresas responsáveis, celebrou e anunciou acordo sem participação da comunidade atingida ou do Ministério Público e sem homologação judicial, cujo teor limitava os valores devidos.
Ministro critica fiscais
O atual ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, utilizou seus primeiros discursos oficiais para criticar e intimidar fiscais do Ibama, como se a missão do órgão não fosse o cumprimento da lei no combate a graves crimes ambientais. No lugar de fortalecer a fiscalização, hoje combalida pela falta de recursos humanos e financeiros, Salles confere o benefício da dúvida a quem, segundo o órgão que lhe é subordinado, comete crime ambiental.
Como resposta a Brumadinho, o ministro não perdeu a oportunidade de defender propostas de políticos ruralistas, que o indicaram ao cargo, sustentando a necessidade de autolicenciamento para atividades agropecuárias. O próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, defendeu “tirar o Estado do cangote de quem produz” e afirmou que “essa questão da licença ambiental atrapalha”.
Além disso, pergunta-se como se pode pretender abrir Terras Indígenas e Unidades de Conservação à mineração, muitas delas situadas em regiões remotas daAmazônia, se o Estado não é capaz sequer de manter condições mínimas de segurança dessa atividade dentro da grande Belo Horizonte.
Se todos sabem que não se pode esperar nada da Vale, como bem registrou o promotor de Minas Gerais integrante da força-tarefa sobre Mariana, André Sperling, o fato é que, se não retomarmos a direção correta na proteção ao meio ambiente, certamente enfrentaremos novos desastres socioambientais, com consequências irreparáveis ao meio ambiente e à população.
IHU