Além de São Paulo, Minas e Cerrado atingidos. Gravidade do problema, em país com imensas reservas d’água, exige rever por completo política para rios e florestas
É preocupante que a maior parte das discussões sobre a crise no abastecimento de água em várias regiões do País continue a admitir – explícita ou implicitamente – que a solução virá, neste fim de ano, apenas com a “normalização” do regime de chuvas, principalmente em São Paulo, Minas Gerais e no Cerrado. Será preciso muito mais.
Vai-se de susto em São Paulo. Pela primeira vez na história, a nascente do Rio São Francisco, na Serra da Canastra (MG), está “completamente seca” – e o rio também quase não recebe mais, ao longo de seus 2.700 quilômetros, água de seus tributários que nascem no Cerrado ou nele estão.
Há quase uma década o autor destas linhas registrava, em documentário para a TV Cultura, que o problema já estava presente no Verde Grande e outros afluentes do São Francisco, com o desmatamento no Cerrado; o então diretor de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, professor Bráulio S. Dias, dizia que uma avaliação no subsolo do Cerrado – que verte água para as três maiores bacias brasileiras – mostrava um estoque suficiente para sete anos. Mais alguns anos à frente, já secretário-geral da Convenção da Biodiversidade da ONU, o professor Bráulio mostrava sua preocupação com a queda do estoque para um fluxo de apenas três anos.
Ao que parece, em alguns lugares o estoque se esgotou, com o desmatamento (mais de 50% do Cerrado) e a impermeabilização do solo, que impedem a infiltração da água. E não se recomporá apenas de um ano para outro. É a tese, por exemplo, do professor João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco (Recife), para quem “a chegada de novas chuvas não garante, em absoluto, a infiltração da água no solo e tampouco a volta da normalidade nas nascentes” (remabrasil, 30/9).
O problema é grave também em outras áreas. Observa o jornalista científico Julio Ottoboni (Eco21, agosto de 2014), que parte do Sudeste brasileiro, do Centro do País e do Sul podem estar caminhando “para a desertificação”, com a situação atual agravada pela seca relacionada com a devastação da Floresta Amazônica e sua influência nos regimes do clima mais a sul, como “cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e do Instituto de Pesquisas da Amazônia alertam há uma década”. A Floresta Amazônica, lembra ele, só de 1970 para cá perdeu 600 mil quilômetros quadrados de mata (já há cálculos de que, no total, sejam 750 mil quilômetros quadrados , segundo aFolha de S.Paulo, 9/6). Com isso o fluxo para o Sul de nuvens de ar úmido que dali provinham vem sendo bloqueado progressivamente.
Também a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO-ONU) vem alertando (24/7) para a necessidade premente de deter o processo de degradação do solo, que já é de moderado a altamente preocupante em 33% das terras, onde está um quarto da biodiversidade e parcela importante da água. No nosso continente a degradação já está presente em 25% dos solos; desde o século 19, nada menos que 60% do carbono armazenado nos solos se perdeu, com mudanças no uso da terra, desmatamento para a agricultura e pecuária e outras atividades.
No Semiárido brasileiro – “o mais chuvoso do mundo”, segundo João Suassuna -, 90% da água da água se evapora sem se infiltrar no solo impermeabilizado. E faz lembrar o então ministro Celso Furtado quando dizia que a ocupação da faixa litorânea do Nordeste pela cana-de-açúcar deslocara a maior parte da população para as regiões mais áridas e impróprias para a agricultura, com água escassa (daí a criação, em pequena escala, de gado bovino e bodes). Faz lembrar também o escritor Ariano Suassuna, que ao ser perguntado por este escriba sobre o que achava dos programas de combate à seca no Nordeste, respondeu de pronto: “Tentar combater a seca no Nordeste é o mesmo que tentar impedir a neve na Sibéria”. O correto são programas de convivência, explicou. Como as cisternas de placa, as barragens subterrâneas – e não com transposição de água, pode-se acrescentar.
Então, não se avançará sem forte apoio à substituição da lenha na matriz energética do Semiárido (30% do total). Não se avançará sem programas federais, estaduais e municipais de combate drástico ao desmatamento (o desmatamento recente na Amazônia voltou a crescer). Sem repressão implacável a queimadas ali e no Cerrado, onde no período janeiro/julho último foram quase 20 mil, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Onde as novas áreas de pastagens respondem por 46% da área desmatada, segundo o Inpe e Embrapa (Valor, 22/9).
E é preciso partir imediatamente, em todo o país, e mais especialmente no caso paulista, para fortes programas de redução de perdas nas redes de distribuição de água. No País, a perda média é de 40%. Mesmo em São Paulo, que as reduziu para pouco mais de 25%, não faz sentido admitir um futuro muito sombrio se é possível eliminar essa perda – desde que se impeça a influência das grandes empreiteiras de obras, que não as querem nas redes, por se tratar de pequenas intervenções ao longo de toda a cidade, e não de obras milionárias (como as de transposição ou de captação de água a grandes distâncias).
Numa cidade como São Paulo – já se escreveu tantas vezes neste espaço – não faz sentido igualmente arrancar os cabelos e, ao mesmo tempo, não poder usar um litro de água como a dos Rios Tietê e Pinheiros, altamente poluídos por deposição de esgotos, lixo, sedimentos, etc. Nem pensar, passivamente, que mais de 30 afluentes do primeiro rio continuam sepultados sob o asfalto, sem possibilidade de intervenção.
Soluções há. Mas é preciso deixar de lado velhas crenças de que a natureza, sozinha, tudo fará, e num prazo curto – basta que retornem as chuvas, esquecendo-se as situações mencionadas neste artigo e outras. O Brasil tem jeito. Mas é preciso querer buscar caminhos adequados – que precisam ser o foco das discussões no segundo turno da votação.
Por Washington Novaes, na Envolverde/IPS
Laísa Mangelli