Como a construção de sete pequenas hidrelétricas pode transformar o cenário de um dos maiores paraísos verdes do país.
"Vamos oferecer todo o conforto que luz e força tarifadas geram à custa de outro bem que não tem preço nem resgate, empobrecendo a vida na feroz ilusão de enriquecê-la". O verso faz parte do poema Adeus a Sete Quedas, escrito por Carlos Drummond de Andrade em homenagem ao belo complexo de cachoeiras, no Paraná, sepultado em 1982 pelo lago que hoje alimenta a hidrelétrica de Itaipu.
Guardadas as proporções, os amantes da Chapada dos Veadeiros (GO), a cerca de 200 quilômetros de Brasília, passam, atualmente, por dilema semelhante, que confronta as benesses da energia com os reflexos do seu sistema gerador. Isso ocorre porque o Rio Tocantinzinho, um dos principais da área, pode abrigar, ao longo dos 40 quilômetros de seu leito, sete pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). Ainda não existe autorização oficial nem data definida para o início do empreendimento, orçado em 1 bilhão de reais, mas a possibilidade de ele sair do papel já virou polêmica entre moradores de cidades goianas próximas, como Alto Paraíso de Goiás, São Jorge, São João d¿Aliança, Colinas do Sul e Cavalcante.
Preocupados, muitos líderes locais e especialistas de diversos setores preveem que tal intervenção trará graves consequências ao meio ambiente, à composição social dos municípios e ao turismo, a principal fonte de renda da região. Por isso, alguns deles tentaram aprovar o plano de manejo da área de proteção ambiental de Pouso Alto, que englobaria seis cidades da chapada. De acordo com o projeto, seria vetada qualquer atividade potencialmente poluidora nessa zona, como o agronegócio e as PCHs. O assunto, porém, ficou em aberto devido à falta de consenso entre os membros votantes do conselho formado por representantes comunitários e de entidades ambientais.
Esse temor por mudanças num dos mais belos cenários naturais do país começou em 2000, quando a empresa goiana Rialma passou a realizar uma série de estudos em busca de lugares adequados para construir PCHs na região (saiba mais sobre esse tipo de usina na pág. 23). "Ao constatarmos que a área sofre com a falta de energia, percebemos que seria possível usar a natureza para sanar esse problema", explica Emival Caiado Filho, proprietário da empresa e primo do senador Ronaldo Caiado (DEM-GO).
O levantamento patrocinado por ele mapeou 22 pontos na chapada que atendiam aos requisitos de pequenas hidrelétricas. Nove anos depois, foram iniciadas audiências públicas e oficinas com os habitantes das cidades próximas. Após muitas discussões, somente sete locais permaneceram no projeto, todos no Rio Tocantinzinho. Para sustentar as PCHs, o curso d¿água teria sua largura de 70 metros expandida para 200. "É como a cheia de um rio", afirma o empresário. De acordo com Caiado, esses trechos já foram avaliados e aprovados por cerca de 100 especialistas ambientais contratados por ele.
Avessos a esse discurso estão os pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), que realizam estudos na chapada há décadas – o envolvimento da instituição com a área é tão grande que, até o fim do ano, o centro de ensino deve inaugurar uma unidade em Alto Paraíso. Seus representantes acreditam na alteração de todo o ecossistema local com a chegada das PCHs. "Represada, a água muda de velocidade e de temperatura, afetando a cadeia alimentar", diz Denise Augustinho, mestre emdesenvolvimento sustentável. Para ela, o processo pode acarretar a morte de algas, o que reduz a comida dos peixes e, consequentemente, de animais terrestres.
O contexto se agrava quando se leva em consideração o fato de as barragens estarem localizadas perto do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (a mais próxima dista apenas 10 quilômetros de um dos principais santuários verdes do país, destino apreciado por milhares de brasilienses). "Esse rio fica na zona de amortecimento do parque, por onde transitam muitos animais ameaçados de extinção", afirma a doutora em zoologia Maria Julia Martins.
O caso mais problemático é o do pato-mergulhão (Mergus octosetaceus). Ele integra o rol das aves aquáticas mais raras do mundo, com população atual estimada em menos de 250 indivíduos. Documento apresentado pela Rialma atesta que, em catorze anos, o pato não foi visto sequer uma vez no Tocantinzinho. Especialistas, todavia, garantem que há cinquenta deles nessa área, contra apenas oito espécimes avistados dentro do parque. "Esses patos vivem nas margens escarpadas de rios com correnteza forte, exatamente o perfil do Tocantinzinho", diz Gislaine Disconzi, que realizou um estudo de mestrado focado no animal. "Se o rio tiver seu leito transformado em pequenas lagoas, fatalmente o bicho vai sumir".
Os estudos de Gislaine já serviram de base para afastar a possibilidade de construção de uma PCH na Catarata dos Couros, grande atrativo turístico da chapada, onde foram encontrados ninhos do pato-mergulhão. Ambientalistas ainda destacam que a ave funciona como um importante termômetro da preservação ambiental. "Como ela é extremamente sensível, qualquer sinal de poluição impossibilita sua existência no local", conta Thomas Enlazador, fundador da ONG Instituto Biorregional do Cerrado.
Declarada Patrimônio Mundial Natural pela Unesco, a Chapada dos Veadeiros figura como um dos mais importantes destinos de ecoturismo do Brasil. O Parque Nacional, que abriga diversas trilhas e cachoeiras, chega a atingir sua lotação máxima diária (de 3 000 turistas) durante a alta temporada. Mesmo fora da área protegida, há uma série de atrativos muito procurados pelos visitantes. Esses também estão suscetíveis às consequências da instalação das PCHs. A começar, logicamente, pelas opções oferecidas no Tocantinzinho. O rio é considerado um dos melhores do país para a prática de rafting. Além disso, nele fica o Encontro das Águas, atração que recebe cerca de 500 pessoas por dia entre junho e agosto.
O sucesso do ponto turístico, contudo, não impediu a projeção de uma hidrelétrica que o deixaria submerso. Às margens do mesmo curso d’água ainda existem váriasreservas particulares de patrimônio natural (RPPNs), como a Pedra Bonita, que desapareceriam. A Cachoeira do Segredo e o Vale da Lua, localizados no Rio São Miguel, afluente do Tocantinzinho, também sofreriam efeitos indiretos por meio do controle artificial do seu fluxo de água. "Muitos turistas buscam encontrar na chapada uma natureza praticamente inalterada pelo homem. Como atrair esse tipo de público se modificarmos parte do cenário natural?", questiona Carla Guaitanele, chefe do Parque Nacional.
Outra preocupação em voga diz respeito ao impacto social de um empreendimento desse porte. Para que as sete PCHs fiquem prontas, serão necessários doze anos de obras e um contingente de 1 800 pessoas executando as construções. Os opositores do projeto acreditam que esses trabalhadores poderiam agravar o quadro de prostituição e doenças nas pequenas cidades da região. Eles resgatam os problemas gerados pela Usina Hidrelétrica de Serra da Mesa, aberta em 1998. Localizada próximo à chapada, Minaçu (GO) – distante 112 quilômetros de Colinas do Sul – foi escolhida, na ocasião, para receber os operários.
O doutor em biologia pela UnB Reuber Brandão fez visitas ao município entre 1992 e 1996 com o intuito de produzir uma pesquisa sobre os reflexos ambientais do empreendimento. Nessa experiência, ele deparou com algumas peculiaridades que iam além do seu campo de estudo. "Havia quarteirões de prostíbulos pela cidade", diz Brandão. Também foram registrados por lá, durante esse período, surtos de febre amarela e um aumento vertiginoso no número de denúncias de estupro. "Como impedir que isso ocorra novamente?", pergunta o pesquisador.
É inegável, porém, que os municípios da Chapada dos Veadeiros enfrentam sérios problemas com energia elétrica. Alto Paraíso de Goiás, onde grande parte dos turistas da região se hospeda, sofre constantemente com as quedas de luz. "Na estação das chuvas, é comum ficarmos um ou dois dias sem uma lâmpada acesa", afirma Karla Raposo, proprietária do restaurante vegano Alquimia do Sabor. Com as PCHs, seriam gerados cerca de 170 megawatts por ano, o suficiente para abastecer uma cidade com 300 000 habitantes. Trata-se de um número bastante generoso se lembrarmos que os municípios dessa zona, juntos, contabilizam, aproximadamente, 35 000 moradores. No entanto, não há nenhuma garantia de que a energia advinda desses novos empreendimentos será utilizada pelos cidadãos da área. "É só olhar para a Serra da Mesa (que gera 1 275 megawatts anuais). Nada do que é produzido por lá fica nas cidades próximas", diz Fernando Lima, engenheiro florestal da ONG Funatura. "Para mim, é só mais um discurso para convencer as pessoas de que as coisas vão melhorar".
Michael Melo
Julio Itacaramby: crença de que a solução para a falta de luz na chapada está na energia solar
Em Cavalcante, localidade que costuma ficar sem luz por períodos de até uma semana, a Rialma chegou a receber uma contraproposta. A comunidade apresentou à empresa um documento, com 3.000 assinaturas, que apoiava a construção de uma PCH no sítio histórico Kalunga (incluída entre os 22 empreendimentos previstos na fase inicial). A condição do acordo era que 1% do lucro obtido pela unidade ficasse com os locais. "Logo em seguida a empresa desapareceu e não se falou mais no assunto", lembra Zé Ronaldo, ex-secretário de Turismo e morador da cidade há quarenta anos.
Para Julio Itacaramby, gerente de meio ambiente de Alto Paraíso de Goiás, a solução ideal para conciliar infraestrutura e respeito à natureza na região passa pelo investimento em energia solar. "A cidade recebe sol todos os dias por seis meses seguidos. É um lugar perfeito para esse tipo de produção de energia", afirma. No município, há equipamentos que podem abastecer uma casa inteira sendo vendidos por 5.000 reais.
Para que possa levar adiante, de fato, as intervenções planejadas no Tocantinzinho, a Rialma precisará, em última instância, de um licenciamento ambiental da Secretaria do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos de Goiás (SEMARH). Até mesmo Emival Caiado Filho acredita num longo processo de análise, que pode, facilmente, superar uma década. Resta saber se, nesse prazo, a grave crise energética vivida pelo país vai mexer com uma balança que, hoje, ainda pende bem mais para o lado preservacionista.
O MAPA DA POLÊMICA
Confira os locais previstos para receber as usinas e alguns dos temas discutidos ao longo da iniciativa
Serra da mesa: a usina hidrelétrica conta com o maior reservatório do mundo em volume de água. Mesmo produzindo 1 275 megawatts anuais, suficientes para abastecer Brasília, nenhuma parte da energia vai para as cidades da região.
Pedra bonita: a Reserva Particular de Patrimônio Natural (RPPN) conta com trilha, praia de água doce, cachoeira e restaurante. Mesmo assim, está entre as áreas que podem ser riscadas do mapa caso sejam construídas as PCHs.
Pato-mergulhão: a ave aquática ameaçada de extinção tem população estimada em menos de 250 indivíduos no mundo. Sensível à poluição, ela funciona como termômetro de preservação ambiental.
Parque Nacional: sua fronteira sul dista 10 quilômetros do Rio Tocantinzinho. Diversos tipos de animais raros do parque, ao buscar alimento e abrigo, circulam pelas áreas que seriam afetadas pelas usinas hidrelétricas.
Catarata dos couros: a região que abarca a bela cachoeira já foi cogitada para receber uma usina. Graças aos estudos que apontaram a existência do pato-mergulhão na área, ela ficou fora do projeto energético.
MODELO DE ALTOS E BAIXOS
Mais econômicas em comparação com as térmicas, as PCHs têm vida útil bem menor que a das grandes hidrelétricas
De acordo com definição da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), as pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) são usinas com capacidade para gerar até 30 megawatts por ano. Em termos de área, seus reservatórios apresentam, no máximo, 3 quilômetros quadrados. Trata-se de uma opção mais econômica que a termelétrica, outro modelo muito utilizado no Brasil. Para se ter uma ideia da diferença de custo, cada megawatt de uma PCH é vendido por 180 reais, enquanto as usinas movidas à queima de carvão comercializam a mesma potência por 900 reais. Embora as pequenas usinas sejam construídas com mais rapidez e tragam menos prejuízos ambientais que as grandes hidrelétricas, elas perdem no quesito tempo de vida. Em média, as PCHs funcionam por quatro décadas, contra noventa anos dos complexos maiores. Nesse processo de deterioração, sedimentos reduzem, aos poucos, a profundidade do reservatório e, consequentemente, a potência energética do lugar.
Fonte: Planeta Sustetável