Bioética, biopolítica e tanatopolítica. A obsessão doentia pela saúde perfeita.


 

Entrevista especial com Anna Quintanas

 

“Entendo a bioética precisamente como uma ‘ética para a vida’, uma ética que pretende cuidar da vida no contexto de uma sociedade que está dominada pelas consequências e pela interação entre a revolução científica da época moderna e a revolução industrial. A segunda, evidentemente, não seria possível sem a primeira”, afirma a filósofa.

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Foto: DHNet.org

“A bioética nasceu como cinto de segurança para uma vida que se pressentia, (…) ameaçada por múltiplos flancos”, diz Anna Quintanas à IHU On-Line, ao comentar que o estudo transdisciplinar entre as áreas da Saúde, da Biologia, da Filosofia e das Ciências Jurídicas surgiu, “enquanto preocupação com a vida”, no contexto da Primeira e daSegunda Guerra Mundial, “quando a morte e a destruição chegaram a limites inimagináveis para as gerações anteriores”.

Tendo em vista o contexto histórico, Anna salienta a relação entre bioética e biopolítica. A bioética, salienta, ao nascer da preocupação de cuidar da vida, a qual “é percebida como ameaçada não apenas pelas novas tecnologias, mas também pelo aumento da população mundial e dos efeitos da produção industrial sobre a vida humana e a do ecossistema, (…) não pode tratar dos problemas éticos produzidos em torno do ‘bios’ sem ter presente o marco (bio)político em que estes se dão, um marco que é presidido pela ideia da produtividade em todos os níveis”.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, ela questiona: “Pode a (bio)ética ignorar este fundo(bio)político?”. Segundo a pesquisadora, a bioética “predominante costuma fazê-lo”, mas “corre o risco de ser acusada de superficialidade, no sentido de ficar na superfície e negar-se a olhar o que há debaixo do tapete”. Para ela, é impossível enfrentar os problemas éticos da biomedicina sem levar em conta o contexto em que se desenvolve a atividade dos centros de atenção primária, os hospitais, os laboratórios, os ensaios clínicos ou as empresas farmacêuticas. E acrescenta: “O governo da vida hoje se faz a partir de padrões neoliberais. A bioética, caso quiser continuar cuidando da vida, deve enfrentar aquilo que a impede de avançar nesta direção. Cuidar da vida e tentar explorá-la são duas realidades incompatíveis. Todos os seres vivos são produtivos, a começar pela característica reprodutora que os caracteriza, mas uma coisa é reconhecer a produtividade da vida e outra é ter como objetivo principal exprimi-la sem considerações éticas”.

Anna Quintanas Feixas é uma das palestrantes do XVII Colóquio de Filosofia UNISINOS – Filosofia e bioética: entre o cuidado e administração da vida, no qual participa da Mesa-redonda sobre as mudanças ambientais, questões bioéticas e a responsabilidade social, às 16h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU, e às 19h45min fará a conferência As implicações biopolíticas da bioética.

Anna Quintanas Feixas leciona na Universitat de Girona, na Espanha, é graduada em Filosofia pela Universitat Autònoma de Barcelona e doutora em Filosofia pela Universitat de Girona. Entre seus livros, destacamos Michel Foucault: filosofia de la transgressió (Editorial Pòrtic, 2002), Salut i poder en la gènesi de l'home contemporani(Universitat de Girona, 1998) e El trasfondo biopolítico de la bioética (Documenta Universitària, 2013).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o nexo que aproxima as mudanças ambientais das questões bioéticas?

Anna Quintanas – Não se pode negar que o ponto de vista ecológico está presente desde os primórdios da bioética. Evidentemente, ocupou um lugar central em toda a obra de Van Rensselaer Potter, começando por seu primeiro artigo que data de 1970: “Bioética: ciência da sobrevivência”. Para Potter a bioética devia trazer-nos a sabedoria necessária para aprender a usar as grandes potencialidades associadas ao conhecimento humano para conseguir o bem comum, que inclui, evidentemente, a conservação da Natureza. Influenciada pelo contexto da ameaça atômica e os efeitos da industrialização, a bioética potteriana advogou por uma sobrevivência de todas as formas de vida, não apenas a humana. Para Potter a defesa de uma vida de qualidade para os seres humanos (questão social) foi uma questão inseparável do cuidado do ecossistema (questão ambiental).

Instituto Kennedy de Ética, que foi fundado por André Hellegers, em 1971, na Universidade de Georgetown, e que é considerado o segundo momento fundacional da bioética, embora nunca tenha assumido a bioética global de Potter, e que ao longo da sua história dedicou-se principalmente à ética médica, tampouco pôde evitar a questão ecológica. Atualmente, em sua página na internet afirma-se que o campo da bioética inclui uma ética da saúde, uma ética das novas tecnologias e uma ética do meio ambiente.

Em relação à origem europeia do termo “bioética” não devemos esquecer o artigo de 1927 do pastor protestante alemãoFritz Jahr“Bioética: uma revisão do relacionamento ético dos humanos com os animais e as plantas”. Realizando uma reformulação do imperativo categórico kantiano em um “imperativo biológico”, Jahr pensou as obrigações éticas não apenas para as relações humanas, mas também para a interação com as demais formas de vida. Sua “Bio-Ethik” incluía claramente as questões ecológicas e o questionamento da experimentação com animais. Defendeu uma extensão da compaixão, do amor, da responsabilidade e da solidariedade para com toda a “comunidade biótica” (assim o naturalista Aldo Leopold, professor de Potter, chamou os integrantes do planeta Terra).

Bioética e preocupação com a vida

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"Estar atento e ser solícito diante das necessidades da vida, este poderia ser um bom lema para a bioética"

Creio que é importante ter presente que a bioética, enquanto preocupação com a vida, aparece precisamente no contexto da Primeira e da Segunda Guerra Mundial, quando a morte e a destruição chegaram a limites inimagináveis para as gerações anteriores.Jahr escreve depois da Primeira Guerra Mundial, e Potter depois da Segunda no marco da ameaça atômica da Guerra Fria. Poderíamos dizer que a bioética nasceu como cinto de segurança para uma vida que se pressentia, talvez, como já não eterna, mas ameaçada por múltiplos flancos. Como o próprio Potter reconheceu, penso que se pode rastrear um fundo maternal na bioética. As deliberações bioéticas, mesmo que no nível lógico-aristotélico sejam impecáveis, mas se na prática não se transformam em atitudes solícitas, penso que não tocam o miolo da bioética. Estar atento e ser solícito diante das necessidades da vida, este poderia ser um bom lema para a bioética.

Em consequência, as questões ecológicas deveriam ser um dos principais esteios da bioética. No entanto, até há pouco tempo foram marginalizadas pelo predomínio do ponto de vista antropocêntrico e pela ética médica. É significativo que no famoso “Informe Belmont” (1979), que foi outro episódio fundacional da bioética, não se fizesse nenhuma menção aos problemas ambientais, e seu âmbito de atuação se restringisse aos dilemas éticos que podem aparecer na pesquisa com sujeitos humanos, esquecendo também a questão da experimentação animal.

IHU On-Line – Considerando um cenário empresarial preocupado primeiramente com o lucro e uma sociedade cada vez mais capturada pelo dispositivo do consumo, quais são os principais desafios da responsabilidade social?

Anna Quintanas – No mundo empresarial, a chamada “responsabilidade social”, especialmente nas grandes multinacionais, no momento é basicamente um termo que está na moda e que é útil por uma questão de estratégia de marketing. Entretanto, se tentamos associar o termo ao mundo da especulação financeira, o resultado é de absoluta incredulidade e de contradição nos termos. É certo que algumas multinacionais e alguns bancos têm fundações que oferecem bolsas de estudo, ajudas para a infância, para pessoas com necessidades especiais, para a pesquisa sobre determinadas doenças e que realizam atividades culturais diversas, o que representa para elas uma boa economia fiscal. Mas, do meu ponto de vista, a responsabilidade social deveria ser claramente legislada e seus descumprimentos teriam que comportar importantes sanções. Caso contrário, ficamos no nível puramente das boas intenções, como no caso da pregação vazia sobre os Direitos Humanos ou sobre o desenvolvimento sustentável.

No Livro VerdePromover um marco europeu para a responsabilidade social das empresas, publicado em 2001 pela Comissão Europeia, define-se a responsabilidade social como “um conceito, segundo o qual as empresas decidem, numa base voluntária, contribuir para uma sociedade mais justa e um ambiente mais limpo”. Enquanto a responsabilidade social for concebida como uma decisão totalmente voluntária por parte das grandes empresas, não há opção possível. Embora, atualmente, faça parte do senso comum que esta deve ser voluntária porque se trata do terreno privado, no futuro seguramente esta presunção escandalizará e talvez se perguntarão como foi possível que a responsabilidade social (a responsabilidade pelos problemas sociais, ambientais e o bem comum) fosse simplesmente uma opção, não uma obrigação.

Todo cidadão e todo grupo humano, seja empresarial ou não, deveria assumir que deve zelar, paralelamente, tanto pelo próprio interesse como pelo conjunto da sociedade. Atualmente, esta ideia pode parecer estranha, mas não o foi para os cidadãos da pólis clássica. Eles não faziam a separação taxativa entre o privado e o público. Sabiam que só podiam alcançar o pleno desenvolvimento como indivíduos no marco de uma pólis que lhes proporcionasse os elementos necessários para alcançá-los. Por isso, Aristóteles vinculou claramente a ética à política.

Bioética da proteção

Neste sentido, defendo a “bioética da proteção”, defendida por M. Kottow ou F. R. Schramm, porque um dos seus objetivos principais é assinalar que o centro da ética deve ser a ação, contra o que costuma acontecer na ética tradicional, que fica no abstrato, no simples nível dos enunciados. No momento, a ética da responsabilidade social ficou basicamente em declarações sem traduzir-se em ações realmente transformadoras.

Evidentemente, tenho consciência de que exigir que a responsabilidade social das grandes empresas seja legislada e definida claramente vai contra o espírito desregulador do neoliberalismo. Mas o importante é que a pressão dos cidadãos vá por esse caminho. Os poucos avanços na responsabilidade social empresarial foram conseguidos pela pressão dos cidadãos. Há uma infinidade de exemplos de boicotes dos consumidores a determinadas multinacionais como forma de protesto contra o trabalho infantil ou a produção contaminanteb. Mas, lamentavelmente, trata-se de campanhas passageiras que podem prejudicar as vendas apenas durante um prazo curto de tempo. Sem dúvida, faz falta ir além e forçar os governos para mudar o mercado mundial, mas isto é impossível enquanto a política continuar sequestrada pela economia, pelos interesses econômicos de uma pequena elite mundial.

Acredito também que são de grande importância as experiências econômicas alternativas, porque servem para mostrar que outras formas de organização do trabalho são possíveis. Refiro-me a formas de trabalho cooperativo, ao comércio justo, aos bancos éticos ou à economia do bem comum impulsionada pelo economista austríaco Christian Felber. Esta última organização procura convencer governos e empresas para a grande aposta de futuro que significaria para eles aplicar os princípios da economia do bem comum. Procuram demonstrar a viabilidade de um sistema de mercado no qual as empresas privadas substituam a competitividade desenfreada e o afã cego de lucro por formas de cooperação que tenham como objetivo contribuir para o bem comum. Em 2010, 70 empresas eram subscritoras desta economia alternativa que se define como mais humana, democrática e ecológica. No final de 2013, já contava com 1.400 empresas de 27 países. Neste mesmo ano, por exemplo, criou-se na Argentina a Fundação do Bem Comum Patagônia.

IHU On-Line – Como podemos compreender a tensão paradoxal que se estabelece quando a vida é compreendida como alteridade ética que deve ser cuidada e também como bem útil que deve ser produzido?

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Foto: Genética Y Bioética

Anna Quintanas – Não creio que devamos realizar esforços para mitigar esta contradição. O que devemos fazer é sair deste paradigma, rechaçando-o, buscar formas para desconstruí-lo e estar atentos às linhas de fuga proporcionadas pelas fendas abertas dentro do próprio sistema. Não estou iludida e sei que o edifício ainda é muito sólido, mas as mudanças históricas se produzem pela soma ou interação entre infinitas pequenas coisas. Para ir de encontro a um mundo em que, como dizia Kant, nem tudo tem um preço, é necessário não se deixar afogar pelos discursos do conformismo e do “não há nada a fazer”.

O que teria dito uma mulher europeia do século XVII se lhe tivessem explicado como viveriam suas concidadãs quatro séculos depois? Evidentemente, a situação da mulher deixa ainda muitíssimo a desejar, e em muitos lugares do mundo avançou-se muito pouco, mas se há mudanças é porque há seres humanos que pensam que as coisas podem ser de outra forma, embora, no momento em que o pensam, suas ideias vão contra o senso comum. Para mim, o avanço da mulher é muito esperançoso. Os partidos políticos, os sindicatos, as leis, todos os âmbitos da macropolítica intervieram neste processo, mas também e, sobretudo, as mulheres e homens anônimos que nunca aparecerão nos livros de história, mas sem as ações dos quais nunca teria sido possível chegar onde nos encontramos atualmente. Não há nada que um indivíduo ou grupo faça dentro deste mundo que seja insignificante para o destino da humanidade e do seu ambiente. Tudo conta e tudo soma.

IHU On-Line – Quais são as principais implicações biopolíticas da bioética em nosso tempo?

Anna Quintanas – O tema das relações entre bioética e biopolítica está totalmente relacionado com a pergunta anterior. A bioética nasce da preocupação de cuidar da vida, de uma vida que, no caso de Potter ao menos, é percebida como ameaçada não apenas pelas novas tecnologias, mas também pelo aumento da população mundial e dos efeitos da produção industrial sobre a vida humana e a do ecossistema. Potter, assim como muitos de seus coetâneos, sentiu-se muito impactado pela obra de Rachel L. CarsonPrimavera Silenciosa (1962). Pela primeira vez eram demonstrados os efeitos devastadores do uso massivo de produtos químicos sobre toda a cadeia da vida. E Potter teve isso muito claro, e afirmou que por trás da “mão invisível” do liberalismo, que teoricamente deve acabar trazendo progresso e bem-estar, age, na verdade, uma “mão rapaz” que permite a concentração da riqueza nas mãos de uma elite mundial enquanto se viola flagrantemente os direitos humanos de boa parte da população e se destroça o mundo da Natureza.

Ou seja, a (bio)ética não pode tratar dos problemas éticos produzidos em torno do “bios” sem ter presente o marco (bio)político em que estes se dão, um marco que, como se indicava na pergunta anterior, é presidido pela ideia da produtividade em todos os níveis. Tudo deve ser produtivo, maximamente produtivo, também a vida e suas potencialidades. Recordemos a teoria do capital humano, por exemplo, na formulação de Gary S. Becker. Seu Tratado sobre a família é espetacular. Não é que analise os aspectos econômicos do mundo familiar, mas reduz seus integrantes e tudo o que acontece em seu interior ao ponto de vista econômico. Nunca o liberalismo chegou tão longe. O ponto de vista econômico, que anteriormente predominava no âmbito do mercado, do comércio e das finanças, agora pretende colonizar todo o mundo da vida, absolutamente tudo. Não há nada neste mundo que não deva ser visto do ponto de vista econômico. Este é o núcleo do neoliberalismo. Termos como produção, benefícios, otimização de recursos, investimentos, perdas, mercado, invadem todo o mundo social e a subjetividade dos indivíduos. Como disse o pensador francês Michel Foucault, é uma lógica que nos converte em “empresários de nós mesmos”.

Pode a (bio)ética ignorar este fundo (bio)político? A bioética predominante costuma fazê-lo, mas então corre o risco de ser acusada de superficialidade, no sentido de ficar na superfície e negar-se a olhar o que há debaixo do tapete. Podemos enfrentar os problemas éticos que aparecem ao redor do mundo da biomedicina sem levar em conta o contexto em que se desenvolve a atividade dos centros de atenção primária, os hospitais, os laboratórios, os ensaios clínicos ou as empresas farmacêuticas? O governo da vida hoje se faz a partir de padrões neoliberais. A bioética, caso quiser continuar cuidando da vida, deve enfrentar aquilo que a impede de avançar nesta direção. Cuidar da vida e tentar explorá-la são duas realidades incompatíveis. Todos os seres vivos são produtivos, a começar pela característica reprodutora que os caracteriza, mas uma coisa é reconhecer a produtividade da vida e outra é ter como objetivo principal exprimi-la sem considerações éticas.

IHU On-Line – Qual é o “fundo” biopolítico da bioética?

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"Somente se soubermos como funcionam as relações de poder teremos possibilidades de miná-las"

Anna Quintanas – Tudo parece indicar que a entrevista está começando a construir interações, porque uma questão já nos leva à seguinte de forma encadeada. Também a pergunta anterior mostra uma primeira tentativa de resposta a esta pergunta. O fundo biopolítico da bioética atual é o neoliberalismo. Pois bem, interessa-me muito destacar que minha utilização do termo “biopolítica” deriva das minhas leituras sobre Michel Foucault, e este pensador francês, em suas análises sobre a modernidade europeia, não somente mostrou em que sentido as relações de poder haviam se tornado biopolíticas, mas também constou o fato de que as lutas políticas, nos dois ou três últimos séculos, tiveram também como protagonista a vida, todo um conjunto de reivindicações sobre a necessidade de ser protegida, de cuidar da saúde, das suas necessidades. Os movimentos sociais reivindicam o direito a uma vida digna, luta-se pela melhoria das condições de vida, etc.

Foucault foi um autor que fez uma analítica do poder, estudou como funcionam as relações de poder dentro de um marco temporal e geográfico concreto, mas com um objetivo muito claro: favorecer a resistência. Somente se soubermos como funcionam as relações de poder teremos possibilidades de miná-las. E para Foucault onde há relações de poder há possibilidade de resistência. Se este pensador francês tinha razão em sua análise, a vida na modernidade europeia começou a tornar-se objetivo do poder, mas nunca se deixou prender totalmente. Os movimentos sociais foram aprendendo a projetar a vida contra aquilo que pretendia tirar o máximo de proveito sem importar-lhe outra coisa senão o benefício privado.

IHU On-Line – Dentro desta perspectiva, como se relacionam vida, saúde e nação?

Anna Quintanas – Este é um tema que na verdade não trabalhei a fundo, mas penso que esconde um grande potencial de pesquisa. Em sintonia com meu interesse para fazer interagir a bioética e a biopolítica, pareceu-me muito interessante o fato de que o mundo da política tivesse começado a se “medicalizar” a partir de um determinado momento. Não posso dizer qual foi o início deste processo, mas imagino que foi por volta do aparecimento do Estado-nação. Seria muito interessante fazer uma arqueologia deste processo, buscar a genealogia de expressões, tais como: “a saúde de um povo”, “é uma nação enferma”, “as doenças da política”, “sanar a nação”. Talvez seja apenas mais um capítulo daquilo que Foucault chamou de medicalização indefinida da sociedade, que começou a dar-se na Europa a partir do século XVIII e que possibilitou que cada vez mais realidades, antes totalmente alheias à medicina, tenham passado a ser tratadas medicamente. Pensemos, atualmente, por exemplo, no fato de envelhecer, na menopausa, na queda de cabelo, na timidez, etc. Sobre isso me parece muito interessante a obra de Roberto Sposito, porque mostra as relações entre o paradigma imunitário e a organização social.

IHU On-Line – Em que medida precisamos repensar uma ética para a vida na sociedade tecnocientífica na qual vivemos?

Anna Quintanas – Entendo a bioética precisamente como uma “ética para a vida”, uma ética que pretende cuidar da vida no contexto de uma sociedade que está dominada pelas consequências e pela interação entre a revolução científica da época moderna e a revolução industrial. A segunda, evidentemente, não seria possível sem a primeira.

Embora a bioética predominante tenha tendido a reduzir o seu objeto de estudo à biomedicina, minha opção é decantar-me pelo espírito potteriano da bioética. No começo da década de 1970, quando Potter escreveu seus primeiros textos sobre bioética, esta ainda não tinha um campo próprio. Mas Potter se deu conta, com o passar do tempo, que a versão da escola de Georgetown estava se impondo, limitando desta forma sua visão ampla da bioética. Por isso, escreveu, em 1988, seu Global Bioethics. E a partir de então até sua morte, em 2001, não deixou de repetir que sua bioética não incluía apenas uma ética médica, mas que seu espírito holístico devia assumir também uma ética ambiental, uma ética urbana e uma ética do consumo, inclusive uma ética geriátrica e uma ética social.

A bioética como ímã aglutinador

A bioética devia agir, para Potter, como uma espécie de ímã aglutinador das éticas particulares, mas sem repetir os principais erros destas, como, por exemplo, ignorar as verdades científicas, desentender-se sobre a interação entre o meio ambiente e o homem ou a visão de curto prazo. Potter estava plenamente consciente do fato de que as questões biomédicas não podem ser tratadas fora do âmbito das problemáticas gerais que afetam a sociedade. De fato, Potterafirmou já desde os seus inícios que a bioética devia servir para enfrentar a “grande crise de hoje”, uma crise que para ele era global, afetava todo o Planeta, e tanto a Natureza como o ser humano, porque o que estava em risco era precisamente a frágil rede da vida. Em seus últimos anos falou claramente da necessidade de idear uma “bioética política” que pressionasse as políticas públicas, tanto a nível nacional como internacional, para utilizar todo o grande potencial inerente ao conhecimento humano com vistas ao bem comum e melhorar as condições da vida.

Parece-me que esta postura potteriana que une uma ética ambiental com uma ética social segue sendo útil atualmente, e, além disso, vejo-a em consonância com diversas tentativas que, de uma forma muito estimulante, estão tendo lugar na América Latina para construir uma “outra bioética” que às vezes impugna e outras vezes enriquece a bioética predominante: desde a “bioética de proteção”, acima mencionada (Miguel Kottow), até a “bioética da intervenção”(Volnei Garrafa e Dora Porto), passando pelas ideias sobre a “vida boa” (Maria L. Pfeiffer) ou a “ecologia social (José Roque Junges).

IHU On-Line – Em que medida a normalização e as diferentes formas de sujeição, sobretudo das classes populares, são resultado de uma biopolítica que se tornou institucionalizada atualmente?

Anna Quintanas – Segundo Michel Foucault, na Europa do século XVIII produziu-se um fenômeno muito interessante dentro do capítulo das relações entre o saber e o poder: o “desbloqueio da medicina”. A partir de então a medicina foi abrindo progressivamente seu campo de atuação, indo muito além da simples arte de curar doenças. Atualmente, é difícil encontrar algum âmbito da vida humana que não tenha sido medicalizado, embora seja apenas ao nível teórico.

Esta medicalização progressiva da sociedade começou primeiro por ser uma medicina das coisas (sanar bairros, ruas, cidades, preocupar-se com a qualidade do ar e da água, com os efeitos sobre a saúde de certos edifícios, instituições ou práticas de trabalho como os cemitérios, os frigoríficos, os hospitais, etc.). A partir de então foram surgindo múltiplos tipos de colaborações da medicina com diferentes âmbitos do mundo social: desde o urbanismo, as políticas locais e nacionais, até o mundo do trabalho e a pedagogia. A medicina e a política encontraram múltiplas maneiras para estabelecer colaborações. O Estado, dentro do marco do mercantilismo, entendia que a riqueza dependia do número de súditos saudáveis, úteis para o trabalho em tempos de paz e preparados para as milícias em tempos de guerra. Surgiu a chamada “polícia médica”, que tinha um tríplice objetivo: garantir a ordem, promover a saúde e aumentar a riqueza nacional.

Saúde, ordem e riqueza começam a andar juntas. Multiplicam-se os cálculos sobre o valor monetário da vida humana. Amedicina social e a higiene pública tentam convencer os governos e os empresários sobre o desperdício que significa investir em uma vida humana que acabará morrendo antes de poder restituir ao Estado tudo o que este investiu nela. Assim gera-se todo um discurso a favor da melhoria das condições de vida e de trabalho das classes populares. A família operária converteu-se em objeto privilegiado de medicalização. O médico pôde entrar nas casas e bairros que os agentes da ordem não se atreviam a frequentar. Dava conselhos sobre a alimentação, a disposição dos quartos das casas, sobre o vestuário, sobre a criação dos filhos. Este processo progressivo de desbloqueio da medicina é, sem dúvida, um capítulo muito interessante na história das técnicas biopolíticas de governo da população. E os poderes de normalização das classes populares exerceram um papel protagônico neste âmbito.

A tríade no neoliberalismo

Atualmente, no neoliberalismo, a tríade que inter-relaciona saúde, ordem e riqueza já não depende primariamente de iniciativas estatais, mas o próprio indivíduo converteu-se no principal responsável pela garantia da saúde e da potencialidade de seu corpo. A subjetividade promovida pelo neoliberalismo segue o modelo empresarial. Trata-se de que todos nós nos transformemos naquilo que Foucault chamou de “empresários de nós mesmos”. Já não podemos esperar que o Estado, de forma paternal, se preocupe com as nossas necessidades de educação, saúde, moradia ou trabalho. Devemos, pois, aprender a investir em nós mesmos para melhorar o nosso presente e futuro, e de nossa família. Investir em si mesmo para maximizar os benefícios e minimizar os riscos que podem desvalorizar o nosso “cachê” através de múltiplas ações: desde um plano de pensão, um seguro de vida, uma alarma na moradia ou conseguir as melhores escolas para os filhos, até reciclar-se constantemente ou melhorar o aspecto físico.

Dentro deste registro, a saúde torna-se um valor de grande cotização porque esta já não é entendida apenas como ausência de doença, mas como otimização da nossa energia vital através de vários recursos: dietas, academia (agora também academia e receitas culinárias para os nossos neurônios; se não as conhecem é porque não estão atualizados), controle de peso, atenção aos níveis de colesterol, etc. Embora não estejamos doentes nem tenhamos nenhuma dolência importante, devemos colocar em marcha todos estes dispositivos, porque não se trata de sermos mais ou menos saudáveis para poder viver, mas de viver para estarmos saudáveis (e, consequentemente, o biomercado que se produziu em torno desta tendência parece não ter limites de expansão).

Dentro do jogo macabro que já Foucault nos desenhou entre biopolítica e tanatopolítica, enquanto em determinados lugares do mundo a saúde tornou-se uma obsessão doentia e o gasto sanitário desnecessário aumentou exponencialmente, para uma significativa parte da população mundial não está disponível nem tão somente umatendimento sanitário básico.

IHU On-Line – A partir deste cenário, qual é a contribuição e a atualidade da filosofia de Michel Foucault, 30 anos após sua morte?

Anna Quintanas – Desde a minha tese de doutorado sobre “Saúde e poder na gênese do homem contemporâneo", que defendi em 1997, Foucault tem sido a minha principal referência intelectual. Às vezes, penso que já seria hora de mudar de registro, mas nos campos em que trabalho, como a antropologia filosófica, o pensamento político contemporâneo ou a bioética e a biopolítica, suas obras ainda me são estimulantes e me proporcionam ferramentas para analisar o presente no qual vivemos. Como ele mesmo afirmou, toda a sua obra tem no fundo como objetivo desenhar uma “ontologia do presente”, daquilo que somos e acontece (conosco), com vistas a desmascarar aqueles aspectos intoleráveis da nossa racionalidade e das relações de poder com as quais esta interage.

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"Minha percepção é que ainda não saímos inteiramente do diagrama que Foucault descobriu com seus estudos arqueológicos e genealógicos"

Minha percepção é que ainda não saímos inteiramente do diagrama que Foucault descobriu com seus estudos arqueológicos e genealógicos, mesmo que tenha morrido em 1984. Toda a sua obra, mas em especial seus estudos sobre os mecanismos biopolíticos e as formas de governo liberal (desde o liberalismo clássico até o neoliberalismo) são ainda de grande atualidade. Sempre e quando falarmos do mesmo Foucault. Muitas vezes leio interpretações sobre o seu pensamento que me deixam desconcertada, pois parece que não estamos falando do mesmo autor. Por exemplo, a interpretação de Habermas no seu célebre livro O discurso filosófico da modernidade, onde Foucault é qualificado deneonietzschiano conservador que nos condena ao quietismo e à submissão ao poder: não há saída, estamos presos nas redes do poder.

Ao contrário, eu preciso continuar a ler Foucault para não perder minhas ânsias de “fora”, para não deixar de vislumbrar que mais além da “caverna” ainda é possível construir realidades inéditas. De fato, meu interesse pela filosofia originou-se no ensino médio, quando tive as primeiras aulas sobre História da Filosofia. A verdade é que na época não entendi praticamente nada sobre os pré-socráticos, mas quando a minha professora me explicou o mito da caverna, minha juventude não ficou indiferente, porque experimentei como algo próprio essa estranha necessidade de pensar que as coisas podem ser diferentes de como são. Esse reconhecimento é também o que me prendeu à obra de Foucault e que ainda não me largou.

BIBLIOGRAFIA

– Tesis doctoral: “Salut i poder en la gènesi de l’home contemporani” (http://www.tdx.cat/handle/10803/7815).

– "Govern de la vida i intervenció social: l’arrel biopolítica dels conflictes ètics", en Els reptes ètics de la intervenció social, Fundació Campus Arnau d'Escala, Girona, 2010 (http://www.campusarnau.org/2009/downloads/simposietica2009.pdf).

Em castelhano:

– “Una crítica político-antropológica al ‘choque de civilizaciones’ de S.P. Huntington”, Isegoría. Revista de Filosofía Moral y Política, 2002 (http://isegoria.revistas.csic.es/index.php/isegoria/article/view/577/577).

– “Del mito del hombre democrático a la nueva Internacional civil”, Utopía y Praxis Latinoamericana. Revista Internacional de Filosofía Iberoamericana y Teoría Social, 2002 (dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/2736956.pdf).

– “V. R. Potter: una ética para la vida en la sociedad tecnocientífica”, Sinéctica, 2009 (http://www.sinectica.iteso.mx/assets/files/articulos/32_v_r_potter_una_etica_para_la_vida_en_la_sociedad_tecnocientifica.pdf).

– "Bioética, biopolítica y antropotécnicas", Ágora. Papeles de Filosofía, 2009 (http://dspace.usc.es/bitstream/10347/7361/1/08.Quintans.pdf).

– "El tabú de la muerte y biopolítica según M. Foucault", Daimon. Revista Internacional de Filosofía, 2010 (http://revistas.um.es/daimon/article/view/148581/131941).

– "Higienismo y medicina social: poderes de normalización y formas de sujeción de las clases populares", Isegoría. Revista de Filosofía Moraly Política, 2011 (http://isegoria.revistas.csic.es/index.php/isegoria/article/view/730/732).

(Por Márcia Junges e Patricia Fachin)

Forma de vida e os dispositivos biopolíticos de exceção e governamentalização da vida humana


 Entrevista com Castor Bartolomé Ruiz

  

"Todas as formas de governo, assim como os diferentes projetos que se propõem atualmente como alternativas, terminam sendo engolidos por uma lógica maior, qual seja a governamentalização da vida na racionalidadeoikonomica e pela espetacularização das democracias reduzidas a uma espécie de liturgia da glorificação dos governantes", afirma o filósofo.

No livro Altíssima PobrezaGiorgio Agamben, propõe "'formas de vida' alternativas aos dispositivos biopolíticos de controle social atualmente hegemônicos. A economia política capitalista dominante e o direito como dispositivo de captura da vida se impõem de forma tão absoluta que conseguem assimilar as diferenças e normatizar as divergências numa espécie de totalidade única impedindo a percepção de uma exterioridade ao sistema. Todas as formas de governo, assim como os diferentes projetos que se propõem atualmente como alternativas, terminam sendo engolidos por uma lógica maior, qual seja a governamentalização da vida na racionalidadeoikonomica e pela espetacularização das democracias reduzidas a uma espécie de liturgia da glorificação dos governantes. Agamben pensa a possibilidade de criar aberturas para a biopolítica atual através de novas formas de vida que não se submetam às práticas governamentais existentes", comenta Castor Bartolomé Ruiz.

Segundo o professor e pesquisador do PPG de Filosofia da Unisinos, "a questão de fundo que Agamben se propõe desenvolver nestas obras finais do projeto Homo sacer é uma questão ética, ela diz respeito à possibilidade de criar uma forma de vida capaz de superar os dispositivos biopolíticos de controle social em que estamos imersos". Segundo Castor, trata-se de "uma abordagem ética da vida, uma perspectiva que identifica a forma de vida como um modo ético de criar uma nova política. Esta perspectiva ética seria o paradigma político da comunidade que vem e da política que vem".

 

Castor Bartolomé Ruiz é professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos. É graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, é mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas.

Escreveu inúmeras obras, das quais destacamos: Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escritos, 2004) e As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006).

Leia, ainda, o livro eletrônico do XI Simpósio Internacional IHU: o (des)governo biopolítico da vida humana, no qual Castor contribui com uma reflexão intitulada “A exceção jurídica na biopolítica moderna”, disponível em http://bit.ly/a88wnF.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a temática central abordada em Altíssima Pobreza?

Castor Bartolomé Ruiz – O tema central desta obra de Giorgio AgambenAltíssima pobreza (São Paulo: Boitempo, 2014), é a relação entre a regra e a vida. No marco deste tema geral, Agamben se propõe investigar o que denomina de forma de vida. É uma temática que implica os dois conceitos: forma e vida, procurando mostrar as possibilidades de uma vida que se dá forma a si mesma sem estar submetida a regras externas que a normatizam ou excluem.

O interesse de Agamben por este tema decorre de suas pesquisas anteriores sobre os dispositivos biopolíticos de controle social e governo da vida: exceção e oikonomia.

A arqueologia sobre a forma de vida, ou seja, sobre as possibilidades da vida humana poder se dar uma forma própria de viver, apresenta-se como paradigma possível para outras formas de vida que não se deixam normatizar pelos dispositivos biopolíticos, oikonomicos, dominantes.

Agamben pretende mostrar nestas pesquisas últimas a possibilidade de criar uma forma de vida, uma vida capaz de dar forma a seu modo de viver sem ficar presa aos dispositivos jurídicos ou econômicos que regem nossas sociedades. Esta é uma abordagem ética da vida, uma perspectiva que identifica a forma de vida como um modo ético de criar uma nova política. Esta perspectiva ética seria o paradigma político da comunidade que vem e da política que vem.

Como é habitual nas suas obras, Agamben utiliza-se do método arqueo-genealógico para mostrar suas teses. Nesta obra, realiza uma arqueologia da forma de vida do monacato cristão dos séculos IV e V e dos movimentos religiosos dos séculos XI e XII, entre eles o franciscanismo. O objetivo do autor é encontrar nestas formas de vida paradigmas de experiências que problematizaram a vida de tal modo que criaram uma forma diferente de vivê-la. O eixo sobre o qual o monacato criou sua forma de vida foi a regra. Agamben faz uma análise arqueológica sobre a relação entre regra e vida e como a regra foi problematizada nas formas de vida das primeiras comunidades cenobitas cristãs.

IHU On-Line – O que significa o conceito “forma de vida” e qual é o nexo que se estabelece entre regra e vida a partir dessa perspectiva?

Castor Bartolomé Ruiz – O sintagma “forma de vida” não é uma invenção dos movimentos franciscanos nem do monacato cristão, ele já se encontra em pensadores clássicos como CíceroQuintilianoSêneca (sanam ac salubrem forma vitae tenete), entre outros.

Agamben destaca que nunca antes desta época, séculos IV e V, tinha se produzido tanta literatura nem tão sólida sobre a regra de vida. Segundo Agamben, a novidade da regra de vida do monacato cristão reside em que não se cria a regra para impô-la sobre a vida, como ocorre com o direito comum, mas é a vida que deve dar-se a regra mais conveniente para viver. Nas origens do monacato, não existe a regra como norma independente e externa à vida, pelo contrário, a regra se origina do modo de vida que se escolhe e se pretende viver. Na origem do monacato cristão há uma experiência de forma de vida na qual se propõe a vida como critério para definir as regras e não o contrário, que é como que habitualmente opera o direito e os dispositivos normatizadores das instituições modernas.

A regra, no monacato cristão originário, era imanente à vida, dela devia derivar e a ela tinha que se assimilar. Por isso, a forma de vida a que se aspirava não era a de cumprir as regras dadas a modo de obediência servil a uma lei, senão a de internalizar uma regra de vida, escolhida pelos monges, a tal ponto que se fizesse indiscernível a regra da vida, havendo transformado a vida numa forma regrada de viver e a regra numa forma de vida. O elo crítico sobre o que girava esta frágil relação era a opção do monge por escolher essa regra como uma forma de viver, fazendo desse viver uma forma de regrar a vida.

Agamben chama atenção a respeito da originalidade desta experiência de vida, uma vez que ela questiona a tradicional e atual relação entre a lei e a vida. Para a lei, a vida é um elemento que deve ser capturado, normatizado, regrado para seu melhor controle e eficiência. A lei está a serviço da ordem, como as normas o estão das instituições, para ambas a vida é o elemento subsidiário que deve ser legislado e normatizado.

A arqueologia do monacato cristão mostra que nele se constituiu uma forma de vida diferente que decidiu ignorar o direito comum como norma de sua convivência comunitária, estabelecendo em seu lugar uma relação singular entre a regra e a vida.

A regra de vida do monacato se tornará ofício litúrgico aspirando a fazer da vida uma liturgia e da liturgia uma forma de vida. Na experiência monástica, por um lado, tudo se faz regra e ofício até o extremo que a vida se dilui na regra. Concomitantemente, tudo se faz vida, as regras, desenvolvidas cada vez mais na forma de ofício litúrgico, se tornam “preceitos vitais”. À lei que se indetermina numa forma de vida corresponde uma vida que se torna integralmente lei para si mesma.

Embora essa experiência de vida monástica originária não foi permanente, pois a relação livre entre regra e vida foi posteriormente  normatizada pelo direito canônico seguindo o modelo de submissão da vida à lei, ela mantém sua validade como experiência que conseguiu criar uma forma diferenciada com a regra.

IHU On-Line – Qual é o lugar que esse livro ocupa nos escritos de Agamben e o que ele representa dentro da obra do filósofo em termos mais amplos?

Castor Bartolomé Ruiz – O próprio autor inclui esta obra na coletânea por ele denominada de Homo Sacer, com a numeração Homo Sacer IV,I. Anuncia-se para setembro 2014 a publicação de outra obra: “L'uso dei corpi”, Homo Sacer IV,II.

Altíssima Pobreza seria uma das obras conclusivas desta magna pesquisa do Homo Sacer. Neste contexto, a problemática da forma de vida, central nesta obra, pretende responder às anteriores pesquisas sobre os dispositivos biopolíticos da exceção e da oikonomia. Estes dispositivos visam objetivar a vida humana instrumentalizando-a através da sua governamentalidade econômica ou capturando-a nos dispositivos de exceção. Ambas são formas biopolíticas de captura e governo da vida humana.

A questão de fundo que Agamben se propõe desenvolver nestas obras finais do projeto Homo sacer é uma questão ética, ela diz respeito à possibilidade de criar uma forma de vida capaz de superar os dispositivos biopolíticos de controle social em que estamos imersos.

 Agamben preocupa-se em traçar aberturas filosóficas às arqueologias da exceção e da economia política realizadas nas obras anteriores. As teses críticas de Agamben sobre a atualidade do estado de exceção como técnica de governo, do campo como paradigma da política moderna e da economia política como prática governamental da vida humana, têm um acentuado caráter crítico da realidade atual. Nesta obra, Altíssima Pobreza, o autor desenha aberturas possíveis para os dispositivos biopolíticos de controle social.
 
Junto com a obra Altíssima Pobreza há que situar a outra obra publicada concomitantemente: Opus Dei: arqueologia do ofício, que também realiza uma arqueologia ética sobre a forma de vida. Esta outra obra Agamben analisa a relação entre a noção de dever e a prática litúrgica cristã do “ofício das horas”. Nesta obra, o autor defende a tese de que o conceito moderno de dever, inclusive a noção deontológica do dever remete à genealogia do ofício litúrgico.

Há que se destacar um certo paralelismo e um diálogo silencioso entre a genealogia da forma de vida que Agambenvem realizando e a genealogia do cuidado de si realizada por Michel Foucault em suas últimas obras e cursos ministrados no Collège de France.

Foucault provocou uma virada ética nas pesquisas últimas identificando na genealogia do cuidado de si nas sociedades greco-romanas um discurso e uma prática através da qual os sujeitos aprendiam a constituir uma subjetividade autônoma. Para Foucault, esta prática ética do cuidado de si possibilitou aos sujeitos criar um estilo de vida próprio, sem sujeitar-se a determinações heterônomas da conduta. De alguma forma, Foucault estava propondo a ética do cuidado de si como uma possibilidade política de resistência aos dispositivos de vigilância e controle biopolítico das sociedades contemporâneas.

Agamben, nestas últimas pesquisas, também realiza uma virada ética no tema e no problema da política. As análises arqueo-genealógicas sobre a forma de vida no cristianismo primitivo são também um paradigma político que, além de resistir aos dispositivos biopolíticos de controle, oferecem aberturas para construir o que autor denomina: uma política que vem.

Agamben assinala também algumas diferenças importantes entre a forma de vida do monacato cristão e outros estilos de vida clássicos que influenciaram as práticas dos monges, porém delas também se diferenciaram. Os monges criaram uma forma de vida vinculada ao ofício litúrgico com um elo tão estreito entre ambos que a vida se tornava ofício e o ofício vida. O ser e a práxis tendiam a indiferenciar-se no modo de vida.

O monge não vive nem age como o filósofo estoico para observar a lei moral presente na ordem cósmica; também não se assemelha ao modo de vida do patrício romano que seguia escrupulosamente a prescrição jurídica e o formalismo ritual dela derivado; também se diferenciava da prática judaica do mitzwot que cumpria a lei em virtude do pacto fiduciário que o vinculava a Deus; também se diferenciava do modo de vida do cidadão ateniense que exercia a liberdade procurando a beleza e a sabedoria.

A forma de vida criada pelo monacato cristão inovou a forma como a vida se torna uma celebração (liturgia) permanente submetendo a este fim as regras de vida.

IHU On-Line – Em que sentido a genealogia das regras monásticas realizada nessa obra nos remete a dilemas do mundo contemporâneo?

Castor Bartolomé Ruiz – Como indicamos anteriormente, o interesse de Agamben por estas experiências de vida do cristianismo primitivo tem a motivação política do presente. Os estudos altamente eruditos que Agamben vem realizando sobre teologia, liturgia e história do cristianismo têm como tese de fundo que a teologia, especificamente a teologia cristã, é o saber que subjaz a uma grande parte das instituições e dispositivos políticos modernos. Inclusive, como afirmava Walter Benjamin em sua tese I Sobre o conceito de história, a teologia, embora hoje apareça como algo feio e desprezível (um anão feio e corcunda, diz Benjamin) para os olhos da racionalidade moderna, contém um resto de potencialidade política que os discursos políticos habituais não têm. Esse resto discursivo da teologia possibilita criar aberturas conceituais e práticas alternativas ao pensamento único imposto no presente.

Nesta obra de Agamben, fica clara a intenção do autor de propor “formas de vida” alternativas aos dispositivos biopolíticos de controle social atualmente hegemônicos. A economia política capitalista dominante e o direito como dispositivo de captura da vida se impõem de forma tão absoluta que conseguem assimilar as diferenças e normatizar as divergências numa espécie de totalidade única impedindo a percepção de uma exterioridade ao sistema. Todas as formas de governo, assim como os diferentes projetos que se propõem atualmente como alternativas, terminam sendo engolidos por uma lógica maior, qual seja a governamentalização da vida na racionalidade oikonomica e pela espetacularização das democracias reduzidas a uma espécie de liturgia da glorificação dos governantes.Agamben pensa a possibilidade de criar aberturas para a biopolítica atual através de novas formas de vida que não se submetam às práticas governamentais existentes.

Ao fazer a genealogia da forma de vida franciscana, Agamben mostra como o debate entre, por um lado, os franciscanos, e, por outro, teólogos oficiais do papa e autoridades políticas, põe em questão um dos elementos definidores de nossas sociedades ocidentais: a propriedade. A genealogia desse debate coloca à mostra a lógica da propriedade e da apropriação e o modo como foi implantada por decreto e por direito como a forma de vida no ocidente. Essa lógica da propriedade será crucial para consolidar o modelo capitalista baseado na acumulação indefinida do ter, no consumir de forma ilimitada e em produzir sem limites.

De outro lado, o debate sobre a forma de vida franciscana deixa exposta uma via política nunca seriamente explorada, a do uso em lugar da propriedade. Se pensarmos que a lógica capitalista de produção e consumo ilimitados está-nos conduzindo à beira de um abismo planetário, já que esse modelo é ecologicamente insustentável e promove a desigualdade social estrutural cada vez maior, talvez repensar a relação política do uso das coisas e não da propriedade pode abrir novas possibilidades estruturais de uso do necessário, assim como a liberdade do supérfluo que nos possibilite criar novos modelos estruturais de relação política.

Agamben mostra, através desta arqueo-genealogia, que a questão que foi deixada deliberadamente de fora da filosofia e da política ocidental é a reflexão e prática sobre o uso. Enquanto o discurso e a prática sobre a propriedade foi desenvolvida à exaustão até chegar a fazer da propriedade o elemento nuclear da política moderna, a arqueologia da forma de vida franciscana  e seus conflitos mostraram que a noção do uso das coisas foi deliberadamente submetida pela lei da propriedade. Agamben afirma que um dos grandes desafios que teremos que fazer se quisermos modificar a política moderna é criar uma sólida teoria do uso em lugar da propriedade. O título da obra que se anuncia para setembro de 2014, “L'uso dei corpi”, parece criar certa expectativa a respeito de uma pesquisa do autor sobre temática do uso.

IHU On-Line – Quais são as implicações ético-políticas dos conflitos da “forma de vida franciscana” a respeito da propriedade e o direito na obra Altíssima pobreza?

Castor Bartolomé Ruiz – Nos séculos XI e XII vemos surgir no cristianismo uma série do que podemos denominar “movimentos religiosos” de grande impacto na cultura da época: os humilhados, os pobres de Cristo, os homens bons, os irmãos menores ou franciscanos, entre outros. A característica comum destes movimentos é a reivindicação de uma forma de vida pobre.

A pobreza como forma de vida está presente em todos eles, reivindicando o direito de criar uma forma de vida segundo a pobreza, o desprendimento e a liberdade de não ter. Eles reivindicavam o direito a poder usar as coisas sem ter a obrigação de tê-las em propriedade, porque através desta forma de vida se consegue, já nesta vida, a felicidade oferecida no evangelho como a grande bem-aventurança daqueles que, desprendidos do ter, sabem viver livres do uso das coisas. É importante assinalar que esta forma de vida não era proposta como uma forma ascética, senão como um modo alegre de atingir a felicidade evangélica. O ideal de vida destes movimentos era a vida feliz, sendo a alegria o resultado imediato de estar livres das correntes do ter.

Estes movimentos, em sua maioria, não entravam em debates sobre questões dogmáticas ou canônicas, eles reivindicavam uma forma de vida diferente daquela que exige ter em propriedade das coisas e faz da apropriação do ter o modo de viver. Reivindicavam o uso como forma de vida.

Ainda que não questionassem aspectos dogmáticos ou jurídicos, não demorou em se estabelecerem conflitos agudos das instituições eclesiais e políticas contra estes movimentos. Estes movimentos colocavam em questão, pela primeira vez, não a regra, mas a vida; não a profissão dogmática de qualquer artigo de fé, mas o direito a viver diferente e a praticar com alegria uma outra forma de vida. Estes movimentos, em concreto os irmãos menores franciscanos, reivindicavam uma vida e não uma regra, uma forma vitae e não uma lei ou doutrina.

A forma de vida criada pelo monacato procurou fazer da vida uma regra e da regra uma forma de vida. Estes movimentos reivindicam o direito a viver além de determinadas regras, em concreto aquelas que impõem a propriedade e a apropriação como a forma oficial de viver em sociedade. Eles propunham viver fora e além do direto estabelecido, criando uma nova relação da vida com o direito. O que estes movimentos propunham era um tipo de direito que não fosse capaz de capturar a vida, conferindo à vida o poder de criar seu próprio direito de viver segundo a melhor forma. A referência para este desafio do direito era o evangelho, que supera qualquer direito através de formas de vida que estão além da lei estabelecida. Não se trata de aplicar uma forma, ou regra, a uma vida, mas de viver segundo essa forma construindo uma vida que se funde com a forma desejada até coincidir forma e vida.

O movimento franciscano foi um dos movimentos que se destacou neste conflito. A estratégia dos setores oficiais da igreja foi desviar o conflito da forma de vida para a doutrina, a fim de poder enquadrar estes movimentos como hereges. No entanto, estes movimentos reivindicavam o direito a uma forma vitae na qual o que se questionava não era a regra, a doutrina ou o direito, mas a vida. Porém, a forma de vida reivindicada por estes movimentos questionava as regras existentes. A forma de vida pobre, sem apropriação ou propriedade, que questionava as hierarquias sociais fundadas no acúmulo de propriedades, questionava o modo de vida de uma grande parte das hierarquias eclesiásticas baseado no poder da propriedade.

Os aspectos centrais reivindicados como forma de vida no conflito destes movimentos abrangem, de um lado, o direito, de outro a propriedade, embora ambos se encontrem imbricados nas diversas posições. Os movimentos, entre eles os franciscanos, reivindicavam o direito a uma forma de vida sem propriedade. No lugar da propriedade, exigiam o direito a criar um estilo de vida a partir do uso. As coisas deveriam ser usadas sem ter obrigação de detê-las em propriedade, desse modo a vida encontrava-se livre das âncoras da apropriação que obrigam a viver defendendo como próprio a propriedade e acumulando propriedades para ser alguém propriamente estimado na sociedade. O papa João XXII afirmou, contra os franciscanos, o caráter inseparável da propriedade e o uso, obrigando à ordem franciscana a deter em propriedade os bens que usa.

O debate sobre a forma de vida sem propriedade e com direito ao uso questiona o próprio uso do direito como instrumento de enquadramento e captura da vida. O direito vigente obriga a uma vida de apropriação e propriedade, uma vida apropriada pelo direito na obrigação de ter que viver com títulos de propriedade.

A forma de vida franciscana debateu abertamente contra este direito, contra o direito vigente que lhes obrigava a viver como proprietários. Reivindicavam o direito a viver fora desse direito para poder viver uma forma de vida segundo o uso das coisas.

É uma forma de vida que não se alcança através do direito, senão que se realiza além do direito. Esta forma de vida, que os franciscanos reivindicavam para si, é o paradigma ético da vida que vive além das capturas da lei.

Este é, para Agamben, o horizonte que deveremos construir numa política que vem, se quisermos superar os dispositivos biopolíticos de exceção e governamentalização da vida humana que se ramificam por todo o planeta.

(Por Márcia Junges)

Fonte: IHU – Unisinos