Por Mirticeli Medeiros*
Especial para o DomTotal
Cidade do Vaticano – No Sínodo da Amazônia que acontece em Roma até o dia 27 de outubro, ele já discursou diante do papa Francisco. Na qualidade de especialista convocado pelo pontífice para tratar de questões cruciais, o cientista brasileiro, Nobel da Paz em 2007, explicou aos bispos quais os riscos do aquecimento global, tema que lhe rendeu reconhecimento internacional. Propôs à assembleia sinodal a instauração de uma bioeconomia e disse que a Amazônia está fadada à extinção, caso algumas medidas não sejam tomadas o quanto antes.
Em entrevista ao Dom Total, o pesquisador fala sobre a região à qual dedica a sua vida desde a década de 70. Suas teses sobre a “savanização” da floresta tropical em decorrência do desmatamento e uma nova perspectiva de desenvolvimento sustentável para a amazônia fizeram dele um dos maiores especialistas na floresta. Nesses dias, em Roma, ele se uniu ao papa Francisco na promoção de uma ecologia integral, após uma vida inteira dedicada às questões amazônicas.
Dom Total – Dr. Carlos Nobre, primeiramente, quais impressões o senhor colhe desse sínodo? Como o senhor avalia essa mobilização da igreja pela floresta?
Carlos Nobre –Eu sinto que o sínodo traz uma união muito maior e principalmente a elevação da preocupação a nível mundial, no momento em que o papa manifesta essa preocupação, no momento em que o papa entende e amplia o conceito de casa comum da Laudato Si, a casa comum planeta, e o risco que estamos correndo com as mudanças climáticas. Ele escolhe uma região crítica que é a Amazônia, que é o pilar dessa casa comum, um pilar importante, o qual eu costumo chamar o coração biológico da terra. Esta questão adquire uma visibilidade global, mundial. Ela deixa de ser uma preocupação da ciência ou dos movimentos ambientalistas e passa a ser uma preocupação de todos, até pelo poder de penetração que a mensagem – que as mensagens que se originam da Igreja têm. Não só entre os católicos, mas uma mensagem que atinge os países amazônicos.
Se faz um conceito muito profundo de ecologia integral que pode servir para alterarmos o rumo que nossos países amazônicos adotaram. Sabemos que a situação pode levar a um colapso da floresta amazônica e isso seria um prejuízo para o mundo como um todo, para toda forma de vida e também provocaria o desaparecimento de culturas amazônicas. Esse risco é presente e é muito importante que nós tomemos uma outra atitude em relação à Amazônia e o sínodo certamente tem ajudar a a dar ênfase a essa questão, uma questão de âmbito global.
Dom Total – O senhor disse que estamos em um ponto de não retorno, se referindo à Amazônia. Explique isso pra gente.
Carlos Nobre – A ciência mostra com clareza que o que nós já observamos na Amazônia, principalmente na porção sudoeste, sul e sudeste da Amazônia boliviana, passando por Rondônia, norte do Mato Grosso, Pará e o leste do Pará e uma parte do Tocantins são os sinais de que a Amazônia está próxima de um colapso. Nós estamos vendo a estação seca nessa enorme região de 3 milhões de quilômetros quadrados já ficando mais longa. As temperaturas da estação seca estão bem mais altas. Além do fenômeno do aquecimento global, que afeta o globo todo e afeta a Amazônia, as temperaturas estão mais altas e nós começamos a ver também um impacto nas próprias espécies de árvores. Algumas espécies de árvores já estão apresentando uma taxa de mortalidade maior do que a ciência conhecia. Então essas mudanças, aparentemente, já têm um impacto. E os estudos científicos identificam que essa é a porção mais vulnerável desse ponto de não retorno. Se não pararmos o desmatamento, se não pararmos o aquecimento global, nós temos o risco de perder 60 e até 70% da floresta amazônica.
Dom Total – 2019 tem sido o pior ano para a Amazônia?
Carlos Nobre – É um ano pior por causa de dois sinais extremamente preocupantes. Existia um otimismo moderado em 2016 e 2017, quando vimos que a emissão dos gases que provocam o aquecimento global pareciam que iam se estabilizar. Então isso gerou um certo otimismo de que nós conseguiríamos estabilizar as emissões e que começaríamos a decliná-las globalmente. O acordo de Paris estabelece esse objetivo em 2030. Porém é muito distante, muito perigoso esperar até 2030. Mas infelizmente, em 2018, as emissões voltaram a crescer e, em 2019, elas crescem mais ainda. E para o nosso lado pan-amazônico, os desmatamentos começaram a crescer nos últimos anos, e tudo leva a crer que aconteceu um grande salto em 2019, principalmente na Amazônia brasileira, mas não só na Amazônia brasileira, também na Amazônia boliviana e na colombiana.
Felizmente, no Norte da Amazônia continua protegido. Mas nessa parte mais vulnerável é onde os desmatamentos cresceram e também os incêndios florestais. E os incêndios, em geral, cresceram muito. A gente também está lutando com essa questão de temperaturas mais altas. E com o período seco ficando mais longo, a floresta está mais vulnerável aos incêndios. A floresta amazônica é naturalmente impenetrável ao fogo. O fogo causado por uma descarga elétrica se propaga por algumas dezenas de metros e depois não há mais matéria combustível, porque tudo é muito úmido. Mas, agora, com a estação seca ficando mais longa, temperaturas mais altas e todos esses ramais de estradas para retirada de madeira, essa proximidade com as áreas de pecuária e a agricultura estão tornando a floresta mais vulnerável aos incêndios. Por isso estamos vendo acontecer muito em 2019.
Daí esses dois sinais alarmantes: o sinal global do aumento da emissão de gases do efeito estufa e o crescimento das taxas de desmatamentos e queimadas. Em 2014, nós tínhamos reduzido muito. Reduzimos 70% na Amazônia brasileira e também na amazônia peruana, boliviana, equatoriana. Então nós estávamos vivendo um momento muito bom. Parou em 2014 e agora estamos vendo o aumento do desmatamento e das queimadas em 2019. Um aumento muito significativo.
Dom Total – No relatório que o senhor deu a nós, jornalistas, diz que 70% do produto interno bruto da América Latina deriva da zona de afluência de chuvas produzidas pela Amazônia. Há uma ignorância coletiva em relação a esses dados. Como diz Papa Francisco, falta essa consciência de que tudo está interligado?
Carlos Nobre – O conceito da Laudato Si de ecologia integral é muito poderoso. A ciência já vinha tratando o entendimento de que todas essas dimensões estão interligadas há muito tempo, há muitas décadas. Na verdade, desde que o conceito de ecologia surgiu há cerca de 100 anos. Primeiro, surgiu o conceito de como os seres vivos evoluem biologicamente e depois se falou do papel do homo sapiens que interage com todos os outros elementos. Depois, se agregou o aspecto cultural, econômico… Antes eram coisas muito isoladas. É interessante trazer isso para o mesmo guarda-chuva – digamos assim – para gerar essa consciência de que tudo está interligado. E um elemento afeta o outro. E trazer isso para um conceito que seja facilmente assimilável por toda a população é muito importante. É algo muito ligado ao conceito de sustentabilidade, mas é um pouco mais didático, mais pedagógico, que relaciona as questões culturais, ambientais, sociais e econômicas em um mesmo conceito. E é, de certo modo, um pouco do objetivo quando se fala do desenvolvimento sustentável a longo prazo, pois queremos chegar ao mesmo denominador comum.
O conceito de ecologia integral é muito bom e é bom que ele seja ampliado para toda a sociedade. Que não seja um conceito só estudado pela ciência. É muito positivo que nós percebamos isso e percebamos a ligação entre todos esses elementos. Quanto atacamos a questão ambiental, afetamos a questão econômica, prejudicamos a questão social e vamos também destruir os valores culturais. Então tudo isso tem que caminhar junto. Temos que preservar as culturas, salvaguardar socialmente os mais pobres, criar modelos de economia sustentáveis, que nós chamamos de economias de floresta em pé, uma bioeconomia que valorize muito mais a floresta em pé do que a que substitui a floresta.
A floresta, quando derrubada, ataca o valor cultural, que é o respeito pelos direitos das populações tradicionais da amazônia que podem ser até numericamente menores do que as populações que chegaram à amazônia nos últimos 50 anos, mas nós temos uma obrigação e uma responsabilidade de manter essa diversidade cultural.
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*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.