ONU: 40% de conflitos internos nos últimos 60 anos têm vínculo com exploração dos recursos naturais


O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon destacou nesta quarta-feira (6) a importância de proteger o meio ambiente em tempos de conflito armado e ressaltou que uma forte governança dos recursos naturais pode ajudar a prevenir conflitos e contribuir para a paz a longo prazo.

“Fortalecer o gerenciamento dos recursos naturais e melhorar o monitoramento dos Estados afetados por conflitos pode ajudar a evitar que os recursos alimentem os conflitos e direcionar receitas muito necessárias para a revitalização econômica e contribuir para a paz mais duradoura”, disse Ban em sua mensagem marcando o Dia Internacional para a Prevenção da Exploração do Meio Ambiente em Tempos de Guerra e Conflito Armado.

De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), pelo menos 40% de todos os conflitos internos nos últimos 60 anos têm sido associados com a exploração dos recursos naturais – sejam os recursos de alto valor como madeira, diamantes, ouro e petróleo, como recursos escassos como a terra fértil e água.

Na Somália, por exemplo, estima-se que o comércio ilegal de carvão vegetal representa uma receita anual de até 384 milhões de dólares para grupos insurgentes e terroristas.

O PNUMA aproveitou a oportunidade proporcionada pelo Dia para lançar um novo site oferecendo aos usuários acesso gratuito a dezenas de casos de estudos que ensinam sobre o papel dos recursos naturais na construção da paz.

O site, que inclui seis livros com 150 casos de estudos e análises que examinam as experiências de 60 países e territórios afetados por conflitos, servirá como uma plataforma global para a partilha de informações, experiências e aprendizado sobre as relações entre os recursos naturais, conflitos e paz.

Ban também apontou para o desafio da eliminação segura de armas de guerra sem prejudicar o meio ambiente. “A contaminação ambiental também inclui minas terrestres e dispositivos explosivos não detonados, que representam uma ameaça particular para as mulheres e crianças, que muitas vezes são mais vulneráveis devido às suas atividades diárias”, acrescentou.

Estratégias contra crimes ambientais em debate

O PNUMA e a Interpol estão marcando o Dia com a realização de uma reunião de alto nível em Nairóbi, no Quênia, sobre os impactos do crime ambiental na segurança e no desenvolvimento.

A reunião de dois dias analisará o desenvolvimento e a implementação de estratégias inovadoras para combater o crime ambiental, trabalhando com governos, organizações internacionais e comunidades locais.

Em comunicado conjunto, as agências salientaram que o crime ambiental, como o comércio ilegal de animais selvagens, é um problema internacional crescente.

Estima-se que o comércio de animais selvagens sozinho renda 15 a 20 bilhões de dólares por ano, ajudando a financiar o terrorismo e o crime organizado em todo o mundo. Além disso, a pesca ilegal não declarada e não regulamentada varia de 11 a 26 milhões de toneladas por ano, o equivalente a 15% das capturas mundiais.

O diretor executivo do PNUMA, Achim Steiner, disse que “o roubo dos recursos naturais por parte de poucos às custas de muitos está emergindo rapidamente como um novo desafio para a erradicação da pobreza, o desenvolvimento sustentável e uma transição para uma economia verde inclusiva”.

Informe da ONU Brasil, publicado pelo EcoDebate

Conflitos fundiários e urbanos: “O Judiciário está sendo cada vez mais demandado”.


Entrevista especial com Darci Frigo

 

“A cultura geral, no âmbito do sistema da justiça — que vai além do Poder Judiciário —, é voltada para a proteção dos direitos dos mais fortes ou do direito de propriedade, em detrimento dos direitos humanos fundamentais de uma coletividade”, diz o advogado.

 

Foto: Terra de Direitos

Diante do “histórico processo de tratamento desigual que os órgãos públicos dão às problemáticas sociais coletivas”, é preciso utilizar instrumentos jurídicos que apontem para um novo olhar em relação aos conflitos fundiários envolvendo indígenas, quilombolas, agricultores e produtores rurais.

 

De acordo com Darci Frigo, um dos autores da proposta de desjudicializar as demandas de demarcações de terras, “a cultura do Poder Judiciário acha que o processo tem duas partes, como se fossem dois indivíduos, quando se pode ter, num processo, uma pessoa que é o demandante, normalmente um proprietário de imóvel rural ou urbano e, do outro lado, uma coletividade enorme”.

 

Para Frigo, situações que envolvem conflitos fundiários ou urbanos por conta de disputas de terra não devem ser tratadas como “um conflito interindividual”. Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, ele explica que a proposta consiste em fazer com que o “Judiciário se abra para o diálogo com uma gama múltipla de atores da sociedade e do Estado para encontrar uma solução que seja justa e adequada, sobretudo, para aqueles que têm os seus direitos humanos violados”.

 

Darci Frigo é formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Trabalhou por 17 anos na Comissão Pastoral da Terra – CPT-PR e atualmente, além de coordenar a ONG Terra de Direitos, é conselheiro do Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. Frigo recebeu, em 2001, o Prêmio Internacional Robert F. Kennedy, por sua luta pelos Direitos Humanos no Brasil.

 

Confira a entrevista.

Foto: Terra de Direitos 

IHU On-Line – Em que consistem os mecanismos de mediação para solucionar disputas por terras que o senhor sugere?

Darci Frigo – Trata-se de uma alternativa a um histórico processo de tratamento desigual que os órgãos públicos dão às problemáticas sociais coletivas. Normalmente a cultura do Poder Judiciário acha que o processo tem duas partes, como se fossem dois indivíduos, quando se pode ter, num processo, uma pessoa que é o demandante, normalmente um proprietário de imóvel rural ou urbano e, do outro lado, uma coletividade enorme.

 

Devemos fazer um debate — e essa é a proposta da pesquisa — para que uma situação desse tipo não seja tratada como um conflito interindividual, mas que passe a ser tratada com instrumentos mais adequados. Quais instrumentos? O juiz pode realizar um processo em que coordene a mediação desse conflito por meio de audiências públicas, de inspeções judiciais, da convocação de órgãos públicos que sejam responsáveis pela implementação de uma determinada política pública, e chamando a sociedade e os movimentos sociais que estão envolvidos nessa discussão. Em síntese, essa é a proposta: que o Judiciário se abra para o diálogo com uma gama múltipla de atores da sociedade e do Estado para encontrar uma solução que seja justa e adequada, sobretudo, para aqueles que têm os seus direitos humanos violados.

 

IHU On-Line – Como o senhor avalia o processo de judicialização das demandas de demarcações e o protagonismo do Poder Judiciário nessa questão?

Darci Frigo – Existem sinais de que novos juízes e juízas estão preocupados com a questão social. Há um Fórum de conflitos fundiários que funciona no âmbito do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que começou a olhar essa problemática de forma diferenciada. Mas a cultura geral, no âmbito do sistema da justiça — que vai além do Poder Judiciário —, é voltada para a proteção especialmente dos direitos dos mais fortes ou do direito de propriedade, em detrimento dos direitos humanos fundamentais de uma coletividade.

 

Então, o processo de enfrentamento desses conflitos acontece com uma ampla judicialização, a qual coloca os movimentos sociais — 80 a 90% dos casos — no polo passivo, como réus, como demandados perante o sistema da justiça. Na verdade, os atores que demandam e que acessam o sistema da justiça são exatamente aqueles que detêm maior poder econômico. Então, nesse sentido, o Judiciário está sendo cada vez mais demandado.

 

Ou seja, à medida que o Estado, através dos Poderes Executivo e Legislativo, não soluciona de forma adequada essa problemática social, os conflitos sociais tendem a desaguar no Poder Judiciário através de um constante processo de judicialização. Infelizmente esse processo em geral acontece contra a parte mais fraca, que são os cidadãos e cidadãs mais pobres da sociedade.

 

“Existem sinais de que novos juízes e juízas estão preocupados com a questão social”

IHU On-Line – Quantas demarcações de terras estão sendo contestadas na justiça?

 

Darci Frigo – Não é possível dizer, mas posso dar uma pista. O juiz do CNJ de Minas Gerais, Rodrigo Rigamonte, coordenador do Fórum de Conflitos Fundiários do CNJ, me disse que eles estão montando um formulário para fazer o levantamento e a classificação dos conflitos em terras indígenas, quilombolas, terras de reforma agrária, enfim, dos diferentes conflitos fundiários e possessórios urbanos existentes hoje no país.

 

Não há, no âmbito do Judiciário, uma pesquisa que possa dizer, neste momento, quantos são os conflitos judicializados na questão indígena. O que é público e notório é que a Confederação Nacional da Agricultura – CNA e a Bancada Ruralista articulam nacionalmente as suas ações políticas em três direções: estão investindo no âmbito do Congresso Nacional para desconstruir ou desconstitucionalizar os direitos indígenas, tornando a Constituição uma letra morta no sentido de inviabilizar os direitos indígenas; no âmbito judicial procuram contestar todas as demarcações para retardar o processo de retirada de invasores de áreas indígenas — a palavra “invasor” só serve para essa situação, só se aplica para quem adentra em terras indígenas, e não na situação em que um sem terra ou outro posseiro entra em uma fazenda, nesse caso é ocupação mesmo; e a terceira via é a que se manifestou nos discursos dos deputados ruralistas do Rio Grande do Sul, propondo inclusive a ação armada paramilitar, uma resistência ou uma ação direta contra os indígenas que estão reivindicando a demarcação das suas terras.

 

IHU On-Line – Como está o processo de demarcação das terras indígenas hoje no Brasil? É possível estimar quantas terras estão sendo estudadas, quantas foram delimitadas, homologadas e regularizadas?

Darci Frigo – No lançamento da pesquisa, os representantes da articulação dos povos indígenas do Sul se manifestaram sobre a necessidade de o governo federal agilizar o processo demarcatório dessas áreas que estão sendo disputadas com pequenos agricultores.

 

Na ocasião, colocamos publicamente uma posição preocupante em relação às situações do Sul, porque entendemos que talvez elas sejam a “ponta de lança” para o processo de desconstitucionalização dos direitos indígenas ou retrocesso em toda a política indigenista, porque envolvem pequenos agricultores e a bancada ruralista. Esses setores já utilizaram os pequenos agricultores para mudar o Código Florestal e poderiam querer convencer a sociedade, neste momento, contra os direitos indígenas. Isso nos preocupa muito.

 

Não é na Amazônia Legal nem nas regiões onde as áreas indígenas estão sendo demarcadas que existem os maiores conflitos. Nas Regiões Sul e Nordeste é que estão acontecendo os enfrentamentos mais agudos na retomada de territórios indígenas, portanto, é ali que pode haver a arregimentação dos agricultores familiares contra os direitos indígenas.

 

“Os atores que demandam e que acessam o sistema da justiça são exatamente aqueles que detêm maior poder econômico”

IHU On-Line – Quais são os principais impasses em torno das demarcações? Reconhecer quem é o dono original da terra?

 

Darci Frigo – O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST nasce exatamente de uma situação de colonos que haviam sido assentados pelo Estado em terras indígenas no Rio Grande do Sul. Eles tiveram de ser retirados e então acamparam na beira das estradas. O acampamento da Encruzilhada Natalino é um exemplo de ex-colonos que receberam terras do Estado.

Como há prevalência dos direitos indígenas sobre outras pretensões, então, a solução para esses conflitos nas regiões já ocupadas é que o Estado indenize e também faça o processo de reassentamento dessas famílias. Não há outra saída.

 

Se o território indígena for reconhecido por meio dos laudos antropológicos, o caminho é encontrar uma solução mediada, negociada e com indenização e reassentamento das famílias. No entanto, esse tipo de solução já não serve para invasores de outras áreas indígenas, como está acontecendo, por exemplo, em uma área que está sendo demarcada no Maranhão, e que foi invadida.

 

Nesse sentido, os invasores não têm direito, porque adentraram em área indígena, se apropriaram dos recursos florestais, ameaçaram os índios, criaram uma série de situações que colocaram em risco, inclusive, a vida dessas comunidades. Nesse caso nós não defendemos algum tipo de compensação para esses invasores.

 

 

IHU On-Line – Além do caso da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, que outras comunidades indígenas têm disputas com a União ou com agricultores no Supremo Tribunal Federal? É possível estimar quantas ações por disputas de terra tramitam no STF?

Darci Frigo – Comunidades de guaranis do Norte do Rio Grande do Sul, do Oeste de Santa Catarina e do Mato Grosso do Sul, onde ocorrem os conflitos mais graves, envolvendo os Terena e os Guarani Kaiowá. Esses são os conflitos mais sérios.

 

Neste momento, o território mais conflituoso é o do Sul da Bahia, com os Tapajós. Trata-se de um conflito aberto, várias pessoas foram assassinadas recentemente e o exército está no local. A situação é tão grave que levou à medida extrema — com a qual não concordamos — de ter a presença do exército no local.

 

IHU On-Line – O senhor propõe um diálogo do Poder Judiciário com órgãos públicos e movimentos sociais que reivindicam políticas públicas para a questão indígena. Como se daria esse diálogo?

Darci Frigo – Isso vale para casos envolvendo quilombolas, indígenas e trabalhadores rurais que lutam pela reforma agrária, como também outros posseiros que enfrentam conflitos coletivos. A proposta é que o juiz, diante desta situação, chame as partes para uma audiência pública para encontrar caminhos de solução contrários aos propostos pela bancada ruralista e pela CNA.

 

Nesse sentido, o juiz pode chamar órgãos públicos para participarem das ações. No caso dos conflitos envolvendo a reforma agrária ou no caso da questão quilombola, chamar o INCRA; no caso da questão indígena, chamar a FUNAI. Além disso, um responsável da Justiça pode ir ao local em que está acontecendo o conflito e tomar ciência da realidade de uma determinada comunidade.

 

Conhecemos várias comunidades na Região Sul ou na Região Centro-Oeste, no Mato Grosso do Sul, tanto de indígenas quanto de quilombolas, que vivem em frações ínfimas de terra, e ali há um processo de pobreza extrema, de violência, etc. À medida que os juízes tomarem ciência dessas situações, poderão aplicar os comandos constitucionais de forma bem mais aberta do que simplesmente olhar para o direito de um proprietário, por exemplo, e deixar o direito de uma coletividade em segundo plano.

 

Se ao longo do tempo a incidência política do Estado se dirigiu ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo como poderes mais permeáveis às incidências políticas, hoje a sociedade reclama do Poder Judiciário mais abertura e diálogo nesse processo, e que ele se corresponsabilize para reparar, promover e efetivar direitos humanos.

 

Fonte: IHU – Unisinos

Um fermento na democratização do Brasil


 

O MST tem muitas razões para celebrar os seus 30 anos. Primeiro, é um grande feito histórico e político a sua autoconstrução como movimento social, como sujeito coletivo, tendo por base uma grande fração de trabalhadores rurais composta por grupos sociais heterogêneos, mas tendo em comum a marca da exclusão, da insegurança econômica, da desestruturação sociocultural e da dominação imposta por séculos de domínio dos senhores donos de terra e gente, do Sul ao Norte do Brasil.

 

Ainda temos muitos assim, sem eira nem beira, migrando de um canto ao outro em busca de algum trabalho e renda, fora da cidadania elementar, condenados a viver como lumpesinato, nas terras degradadas, nas periferias das grandes propriedades e das cidades do interior.

 

Devemos ao MST a transformação politicocultural de importante contingente dessa massa submissa, dependente do favor dos poderosos e seus mandantes, – tão presente até hoje no nosso ambiente rural do agronegócio modernizado – em gente com identidade social, “sem terra” mas visível, que se orgulha de si mesmo, confiante em sua própria cidadania e titularidade de direitos, coletivo que acredita ser possível mudar. Isto, em si mesmo, é uma marca, uma conquista a comemorar.

 

Tão importante quanto a primeira razão, e a ela diretamente ligada, cabe destacar a relação entre MST e democracia no Brasil. Desde o início, até antes de virar o MST, tendo o Coronel Curió e outros truculentos no encalço lá em Encruzilhada Natalino, Rio Grande do Sul, e todo Oeste de Santa Catarina e Paraná, o nascente movimento torna-se parte do caldeirão social e político que leva ao fim da ditadura militar e nos permite conquistar a democracia.

 

Mas mais do que isto, coube ao MST em particular radicalizar a democracia, trazendo ao debate público e ao processo de democratização a questão fundamental da tensão entre direito legítimo e direito legal. Não foi e não é a legalidade em si que move o MST, mas é a legitimidade da condição de cidadania, entendida como direito igual de todas e todos.

 

Sua luta é por direitos legítimos de cidadania que não são reconhecidos, devido aos privilégios de classe que impregnam nossas leis, os tribunais, o Estado. A lei de terras, certidão de nascimento da sociedade excludente e desigual que somos até hoje, é para os donos de gado e gente, nunca foi para a cidadania.

 

O que o MST sempre afirmou e praticou é que em nome de direitos de cidadania e contra privilégios, mesmo legais, é legítimo ocupar terras. Nisto reside o caráter de fermento do MST na democratização. Ele inspira outros grupos excluídos a se organizar e lutar por seus legítimos direitos, com insubordinação e desobediência civil, se necessário for.

 

Neste aspecto fundamental para uma sociedade patrimonial como a brasileira, o MST merece celebrar mudanças que vem operando na cultura política democrática do país.

 

O MST é imediatamente associado à Reforma Agrária. Fazendo um balanço dos 30 anos, sem dúvida o movimento vai lembrar muitas conquistas, outras tantas derrotas, com tragédias inclusive.
Vai lamentar até o impasse em que nos encontramos hoje, num governo de origem democrática e popular, mas…dependente do agronegócio, de exportações primárias e da Bancada Ruralista.

 

Erros políticos? Sim, ocorreram erros e são parte do processo de qualquer movimento. O importante seria que o próprio movimento prestasse contas à sociedade sobre seus aprendizados com os erros. Não vou lembrá-los aqui pois penso que, no seu todo e sobretudo pelas razões apontadas acima, o MST tem que celebrar seus feitos nesse seu aniversário de 30 anos.

 

E, nós, organizações de cidadania ativa, devemos agradecer pelo que a própria existência do movimento provoca e obriga a mudar em termos de ideias, visões e possibilidades para a democracia. Por definição em lutas democráticas a gente nunca consegue tudo, mas continua a lutar para tornar possível o que parece impossível. O MST é exemplo desta tenacidade em busca do legítimo. Distante, difícil, quase impossível, mas de esperança e busca de direitos legítimos. Na sua legitimidade reside a inspiração e a força política para se tornar possível.

 

Mas qual é o legítimo, afinal? Não tenho dúvidas em responder que, do ponto de vista de cidadania e democracia, é legítimo radicalizar e querer transformar as estruturas da face agrária da sociedade brasileira. A luta do MST mostra que Reforma Agrária não é só desapropriar e distribuir terras por aí.

 

Reforma Agrária é mudar estruturas agrárias e, mais do que isto, mudar a sociedade no modo como se relaciona, organiza e usa os recursos do território, um bem comum de todas e todos na sociedade. Claro que existe um confronto de paradigmas entre agronegócio e agroecologia, com impacto na soberania e segurança alimentar, no combate à fome e pobreza, no padrão de consumo e de saúde de toda a população.

 

Existe o confronto entre, de um lado, as grandes explorações econômicas, com enorme concentração de terras e utilização de água, com máquinas, agrotóxicos, transgênicos, homogeneidade de cultivos e criações, com destruição da biodiversidade, voltada à produção de commodities e não necessariamente alimentos; e, de outro, a agricultura familiar, de pequena escala, com pouca terra, mas onde a terra em si não é tratada como negócio antes de mais nada, pois é meio de vida, estilo de vida familiar e comunitária, cultura alimentar e identidade social.

 

Mas existe um confronto maior de que a Reforma Agrária faz parte: a disputa de territórios, tanto no campo como nas cidades, entre capital e cidadania. Aqui a dimensão da luta do MST se soma às lutas de povos indígenas, de quilombolas, de ribeirinhos e pescadores, de extrativistas dos frutos da floresta, de posseiros, de comunidades expulsas por grandes obras, atingidos por barragens, mineração e exploração do petróleo (terra e mar), favelados ameaçados de remoção nas grandes cidades, populações das periferias atingidas por obras de infraestrutura ou grandes empreendimentos industriais, mesmo os atingidos pelas grandes obras para Copa e Olimpíadas.

 

As disputas territoriais, de que faz parte a Reforma Agrária, estão no centro da grande questão para o avanço da democracia no Brasil hoje: como mudar de paradigma? Os territórios são para gente viver, em primeiro lugar, ou para o negócio, para acumulação privada? Para cidadãs e cidadãos que vivem e dependem do território local ou para capitais de fora, sem rosto, em busca de sua única e exclusiva valoração?

 

Que modelo de sociedade, economia e poder queremos? Para promover justiça social, direitos de cidadania de todas e todos, participação democrática, sustentabilidade socioambiental, bem viver, enfim? Ou, o contrário, queremos continuar sendo terra de conquista, colonização e exploração, fazendo tudo para seremos uma potência capitalista emergente, território de especulação e negócio a serviço do cassino global que domina o mundo?

 

Obrigado, MST! Obrigado por ser um real sujeito coletivo que nos aponta toda esta agenda cidadã e nos fazer ver que precisamos acreditar ser possível mudar. Incluo-me entre os muitos democratas de diferentes costados, que não temem ser solidários com o movimento, mas também críticos, sempre que considerarmos não legítimos seus passos em alguma frente de luta.

 

Texto por: Cândido Grzybowski – Sociólogo, diretor do Ibase

Foto: Reprodução

Fonte: Canal Ibase