“Não é razoável que uma matéria dessa importância fique mais de 20 anos sem tramitação no Congresso Nacional”, adverte o sociólogo.
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A PEC do Cerrado, que tramita no Congresso há quase 20 anos, “procura sanar uma grave omissão do textoConstitucional de 1988” em relação à preservação dos biomas brasileiros, diz Mauro Pires, em entrevista por e-mail àIHU On-Line.
Segundo ele, quando a Constituição foi elaborada, “aAmazônia estava literalmente em chamas, com extensos incêndios e desmatamentos, o que chamou a atenção internacional. A Mata Atlântica, por sua vez, estava ainda num ritmo de destruição igualmente intenso e o Pantanal já era conhecido como um bioma especial. Portanto, os Constituintes consideravam normal incluí-los mais a Serra do Mar como patrimônio nacional, mas deixaram de fora os demais biomas”. Assim, a PEC propõe que os Pampas, oCerrado e a Caatinga sejam incluídos na categoria de patrimônio nacional.
Pires menciona que o Cerrado sempre foi visto com preconceito, como um “bioma de menor importância”, e desde os anos 1970 as propagandas o apontam como “o celeiro do mundo”.
Durante esses 20 anos, comenta, a aprovação da PEC sempre sofreu a “resistência de setores muito fortes politicamente, com representação nos mais variados partidos, receosos de que tal aprovação possa implicar eventualprejuízo ao agronegócio”. Contudo, adverte: “Não é nada disso. No Cerrado, é possível continuar a produção, mas é fundamental que parte de suas áreas sejam conservadas e preservadas, pois, do contrário, a própria agropecuária será prejudicada”. Mauro Pires salienta ainda que o Cerrado “é considerado o berço das águas” e deve ser conservado, considerando que “estamos assistindo a crises hídricas em vários cantos do país”.
Mauro Pires é sociólogo e ex-diretor do Departamento de Prevenção e Controle do Desmatamento do Cerrado do Ministério do Meio Ambiente.
Confira a entrevista.
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IHU On-Line – Em que consiste a PEC do Cerrado, que eleva o Cerrado e a Caatinga à condição de patrimônio Nacional? O que muda em relação ao Cerrado e à Caatinga caso a PEC for aprovada?
Mauro Pires – A PEC que tramita atualmente foi apresentada em 1995, pelo então Deputado Pedro Wilson, de Goiás e, portanto, está prestes a completar 20 anos sem ter sido aprovada. Se considerarmos que o ex-deputado Fabio Feldmann (São Paulo) também havia submetido proposta de igual teor por volta de 1992, o tempo é maior. Tanto a proposta de Feldmann, restrita ao Cerrado, quanto a de Pedro Wilson, que inclui além do Cerrado, a Caatinga e, posteriormente, oPampa, procuram sanar uma grave omissão do texto Constitucional de 1988. Na época da Constituinte, que ocorreu entre 1986-1988, a Amazônia estava literalmente em chamas, com extensos incêndios e desmatamentos, o que chamou a atenção internacional.
A Mata Atlântica, por sua vez, estava ainda num ritmo de destruição igualmente intenso e o Pantanal já era conhecido como um bioma especial. Portanto, os Constituintes consideravam normal incluí-los mais a Serra do Mar como patrimônio nacional, mas deixaram de fora os demais biomas. Sobre o Cerrado, sempre houve o preconceito de que se tratava de um bioma de menor importância, afinal suas árvores tortas não chamavam a atenção. De outro lado, com avanço tecnológico, suas terras passaram a ser vistas como promissoras para o desenvolvimento agropecuário, notadamente de monoculturas e pecuária bovina. Desde os anos 1970, havia uma propaganda apontando o Cerrado como o “celeiro do mundo”. Portanto, subliminarmente ou às vezes até mesmo explicitamente havia aqueles que defendiam que não precisava ser preservado. Outra tese curiosa era de que era preferível desmatar o Cerrado em vez da Amazônia.
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“Outra tese curiosa era de que era preferível desmatar o Cerrado em vez da Amazônia” |
Portanto, as PECs pretendem corrigir essa omissão ao reconhecerem a importância desses demais biomas brasileiros. Torná-los patrimônio nacional significa que o nosso país valoriza a sua riqueza natural (única no mundo), a sua biodiversidade, a fauna e flora e toda a cultura das populações que fazem uso do Cerrado, da Caatinga e dos Pampas. OBrasil poderá demonstrar ao mundo que cuida de toda a sua natureza. Quando forem reconhecidos como patrimônio nacional, esses biomas poderão ser objeto de mais atenção do poder público e receber mais recursos governamentais e privados para a sua conservação e o uso sustentável. Será possível ampliar os esforços da sociedade civil, por exemplo, da Rede Cerrado de ONGs, criada em 1992, exatamente para chamar a atenção pública para a importância socioambiental do Cerrado e o elevado índice de destruição que vem sofrendo.
IHU On-Line – Por quais razões a PEC do Cerrado e Caatinga deixa de fora o bioma Pampa, no Rio Grande do Sul?
Mauro Pires – Como dissemos acima, essa exclusão foi corrigida e atualmente a proposta inclui tanto o Cerrado quanto a Caatinga e o Pampa. Mas é fundamental que seja aprovada. Não é razoável que uma matéria dessa importância fique mais de 20 anos sem tramitação no Congresso Nacional. Por diversas vezes, nós nos mobilizamos para sua aprovação ao longo desse período, mas sofremos resistência de setores muito fortes politicamente, com representação nos mais variados partidos, receosos de que tal aprovação possa implicar eventual prejuízo ao agronegócio. Não é nada disso. No Cerrado, é possível continuar a produção, mas é fundamental que parte de suas áreas sejam conservadas e preservadas, pois, do contrário, a própria agropecuária será prejudicada. Se não cuidarmos das nascentes, se não diminuirmos o assoreamento dos rios, se não diminuirmos o desmatamento, os serviços ecossistêmicos gratuitamente ofertados pelos biomas brasileiros cessarão e a agricultura poderá se inviabilizar.
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IHU On-Line – O que torna, ou seja, quais características fazem com que um determinado bioma ganhe status de patrimônio nacional e outros não?
Mauro Pires – Não há um critério objetivo. Na verdade, até onde apuramos (iniciamos uma pesquisa na Sociologia da UnB a respeito), durante a Constituinte houve até algumas propostas de parlamentares procurando incluir ao menos o Cerrado no capítulo de meio ambiente da Constituição, mas essas não entraram na fase de sistematização e finalização do texto. Como dissemos acima, havia um certo preconceito, que ainda persiste, de que o Cerrado não é belo, não é útil e, portanto, pode ser destruído e ceder suas áreas às extensas monoculturas e pastos. No caso da Caatinga e dos Pampas, eu diria que o preconceito é idêntico.
IHU On-Line – Quais os resultados concretos do status de patrimônio nacional, além da captação de recursos?
Mauro Pires – Concretamente, hoje nós temos biomas de primeira e de segunda categoria, o que é inadmissível. Quando todos se tornarem patrimônio nacional, isso acabará. Poderemos iniciar uma grande campanha de valorização dos biomas; poderemos ampliar a fiscalização ambiental a ser feita pelos órgãos ambientais. As propostas de criação de áreas protegidas (unidades de conservação) serão mais fortalecidas, bem como as propostas de investimentos em uso sustentável. O prof. Donald Sawyer, do ISPN, ao longo de décadas vem se dedicando ao conceito de paisagens produtivas sustentáveis, especialmente no Cerrado, que procura alinhar práticas de produção com a conservação ambiental e a manutenção dos serviços ecossistêmicos. Se esse bioma for elevado à condição de patrimônio nacional, poderemos batalhar para que esse conceito seja expandido e, fundamentalmente, praticado na atividade agropecuária atual.
IHU On-Line – Quais são os grupos que apoiam e os que são contrários à PEC? Quais são os principais pontos de divergência e os argumentos que cada grupo sustenta?
Mauro Pires – Os grupos que apoiam a PEC são as entidades como a Rede Cerrado de ONGs, os movimentos sociais, os indígenas, os trabalhadores rurais, as populações tradicionais, a academia e alguns membros do governo. Os seus argumentos são de que é necessário valorizar todos os biomas, valorizar a riqueza natural e social imbricadas nos biomas. Consideram que a condição de patrimônio nacional é uma importante luta em favor da conservação ambiental. Entre os que são contrários, estão a bancada ruralista e seus representantes no governo. O seu temor é de que a condição de patrimônio nacional prejudique o agronegócio e venha a limitar a expansão do desmatamento. Nós temos debatido com eles que essa tese é equivocada. Se não houver o engajamento dos proprietários rurais, realmente oCerrado perecerá, estando os poucos remanescentes limitados às pequeninas manchas presentes nas unidades de conservação que, vale dizer, estão longe de representar um bioma que originalmente cobria 25% do território brasileiro. Nós acreditamos, assim, que os proprietários devem ser agentes da conservação.
IHU On-Line – Que alianças seriam necessárias para que a PEC fosse aprovada? Concorda com opiniões de que seria necessário uma aliança com a bancada nordestina? Por quê?
Mauro Pires – Sim. Na verdade, essa aliança já foi realizada algumas vezes. Por exemplo, em 2006, quando estávamos à frente do Núcleo Cerrado e Pantanal do MMA, procuramos alguns deputados, entre eles o Carimbão, de Alagoas, oDutra, do Maranhão, que ajudaram na aprovação da PEC na Comissão Especial destinada à sua análise, apesar da resistência do deputado relator, que era do Mato Grosso. Precisamos, sim, ampliar essa aliança, o que é tarefa para todos os segmentos. Vamos esperar que com a nova legislatura, que se iniciará em fevereiro de 2015, juntamente com o governo que sairá das urnas, seja possível novamente uma grande mobilização nacional em favor dos biomas esquecidos.
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“Entre os que são contrários, estão a bancada ruralista e seus representantes no governo” |
IHU On-Line – Além da aprovação da PEC do Cerrado, que outras medidas seriam necessárias para garantir a manutenção da vegetação nativa e preservar o bioma?
Mauro Pires – Claro. A PEC é apenas uma parte da luta. É fundamental implementar o PPCerrado, que é o plano do governo federal para diminuir as queimadas e o desmatamento no Cerrado. É igualmente necessário que os governos estaduais e os municípios também se envolvam em ações de conservação e proteção do Cerrado, da Caatinga e dos Pampas. Aliás, com aLC 140, de 2011, os governos estaduais receberam mais atribuições em matéria ambiental e, portanto, sua participação nessa agenda é essencial. Além disso, é fundamental que os proprietários rurais cumpram ao menos o que determina o Novo Código Florestal, registrando os imóveis rurais no Cadastro Ambiental Rural, e iniciando a recuperação dos passivos ambientais. O governo deve agilizar os mecanismos que beneficiam a conservação, como o pagamento por serviços ambientais, as cotas de reservas ambientais, previstas nesseCódigo Florestal, bem como trabalhar para expandir o número de unidades de conservação nos biomas, muitíssimo abaixo do que estabelecem as Metas de Aichi.
IHU On-Line – Qual é o principal interesse econômico em explorar o Cerrado brasileiro?
Mauro Pires – O principal interesse econômico no Cerrado é sua ocupação agropecuária, baseada, sobretudo, em monoculturas e pastos para a pecuária bovina. O Cerrado está conectado às principais cadeias das commodities globais. Há vários grupos estrangeiros que passaram até mesmo a adquirir terras em suas áreas, como, por exemplo, no Oeste da Bahia. Portanto, o agronegócio na região é o principal motor. Infelizmente, essa ocupação vem sendo feito sem critérios e baseada no desmatamento e nas queimadas.
IHU On-Line – Que percentual do Cerrado já é ocupado pela agricultura e agropecuária? Quais as consequências dessa ocupação? É possível mensurar qual tem sido o ritmo de devastação do Cerrado?
Mauro Pires – Para a Amazônia, o INPE e a Embrapa desenvolvem o sistema TerraClass, que mapeia o uso das áreas desmatadas e, portanto, permite saber quanto dessas áreas são ocupadas pela agropecuária. No Cerrado, infelizmente, sequer temos um sistema anual e permanente de monitoramento do desmatamento. O que há, entretanto, é um projeto de monitoramento feito pelo IBAMA para todos os biomas extra-amazônicos. Esse projeto de monitoramento indica que quase metade do Cerrado já foi desmatada até 2010. Portanto, as consequências disso são a perda da biodiversidade, o assoreamento dos rios, as emissões de gases de efeito estufa, a perda de território por parte das comunidades tradicionais. Isso leva a crises hídricas, ao encarecimento dos produtos agropecuários, ao aumento, portanto, do custo de vida.
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“O Cerrado é considerado o berço das águas, pois suas nascentes correm para as bacias do Paraguai, Paraná (Prata), do Araguaia-Tocantins, do Xingu, do São Francisco e do Parnaíba” |
IHU On-Line – É possível conciliar o desenvolvimento da agricultura e da pecuária com a preservação do Cerrado?
Mauro Pires – Acreditamos que sim. Se aproveitarmos bem as áreas já abertas, é possível expandir a produção agropecuária sem necessidade de aumentar o desmatamento no Cerrado.
IHU On-Line – Qual a influência do Cerrado na distribuição de água para os estados brasileiros? Por que a relevância do Cerrado não é levada em conta quando se fala em crise de abastecimento, por exemplo?
Mauro Pires – O Cerrado é considerado o berço das águas, pois suas nascentes correm para as bacias do Paraguai, Paraná (Prata), do Araguaia-Tocantins, do Xingu, do São Francisco e doParnaíba. A sua vegetação e o seu sistema radicular funcionam como verdadeiras esponjas de água. Quando é desmatado, essa função é dizimada, comprometendo a vazão e a disponibilidade hídrica. Por isso, o Cerrado deveria ser levado a sério. Já estamos assistindo a crises hídricas em vários cantos do país. Se não cuidarmos do Cerrado, isso tenderá a se ampliar.