Cadastro Ambiental Rural: não dá mais para esperar


"Certamente, o maior ganho em todo o debate sobre o Código Florestal foi a criação desse importante instrumento, que permitirá que o país tenha um registro de todas as suas propriedades rurais com informações sobre o imóvel e as respectivas APP – Áreas de Preservação Permanente e Reservas Legais", Fabio Feldmann, consultor ambiental, publicado pelo jornal Brasil Econômico, 03-04-2014.

 

Eis o artigo.

 

             

 

Na semana anterior participei de um debate importante sobre a regulamentação infraconstitucional do Artigo 225 daConstituição Federal, no que tange à consideração de que alguns biomas brasileiros são considerados “Patrimônio Nacional”: Mata Atlântica, Floresta Amazônica, Serra do Mar e Zona Costeira.

 

Assembléia Nacional Constituinte deixou de contemplar o Cerrado e a Caatinga nesta categoria. Em 1993, na mal sucedida revisão constitucional, houve uma tentativa de se reparar essa omissão, estando em tramitação noCongresso Nacional algumas Propostas de Emenda Constitucional (PECs) que objetivam suprir essa lacuna.

 

Infelizmente, apenas o bioma Mata Atlântica foi objeto de uma legislação específica, editada em 2006, após quatorze anos de tramitação. Ou seja, o Congresso Nacional e o Executivo Federal têm sido absolutamente omissos no que tange a essa matéria, especialmente se levarmos em conta que a Constituição Federal está prestes a completar seu 26° aniversário.

 

Esta omissão tem sido responsável, em minha opinião, por uma relação extremamente litigiosa entre ambientalistas e ruralistas, pelo fato de que o único instrumento legal existente para proteger os biomas brasileiros é o Código Florestal. Desse modo, o país perde a oportunidade de editar legislações que permitam atender a complexidade intrínseca aos biomas, dispensando o uso e o conhecimento da ciência sobre os mesmos.

 

Apenas a título de exemplo, uma legislação que trate do Pantanal deve levar em conta o regime hídrico do bioma, a sua topografia e condições de solo, bem como os impactos prováveis do aquecimento global. Significa dizer que nos dias atuais, um legislador responsável deve escolher um modelo de legislação diferente do velho e atual CódigoFlorestal.

 

Outro exemplo importante diz respeito à regulamentação infraconstitucional da Serra do Mar, também considerada “Patrimônio Nacional”: dada à sua reconhecida instabilidade geológica, potencialmente causadora de tragédias nos períodos de chuvas, caberia ao legislador nacional criar um marco regulatório que impedisse a ocupação inadequada, como vem ocorrendo nas últimas décadas.

 

Independentemente da necessidade dessa legislação sobre os biomas inseridos na categoria “Patrimônio Nacional”, o instrumento mais importante do novo Código Florestal está pendente de regulamentação: o CAR – Cadastro Ambiental Rural.

 

Certamente, o maior ganho em todo o debate sobre o Código Florestal foi a criação desse importante instrumento, que permitirá que o país tenha um registro de todas as suas propriedades rurais com informações sobre o imóvel e as respectivas APP – Áreas de Preservação Permanente e Reservas Legais. Com isso, será possível indicar com precisão os passivos e ativos ambientais, propriedade a propriedade. Essa informação, com certeza, será um instrumento efetivo de cumprimento da legislação e possibilitará o desenho de boas políticas públicas.

 

Boas políticas públicas que protejam os vários interesses em jogo. Desde a segurança jurídica necessária aos proprietários rurais, passando pela garantia de que esses biomas continuarão prestando os serviços ambientais tão necessários à Humanidade. No Brasil, nos dias atuais, é a garantia de que continuaremos a ter água.

 

Fonte: IHU – Unisinos

Crônica de uma malandragem anunciada


"A lei florestal, sob o pretexto de 'atender à questão social sem prejudicar o meio ambiente', (…) previu que os 'pequenos produtores' teriam obrigações ambientais muito menores que os demais", escreve Raul do Valle, coordenador de política e direito socioambiental do Instituto Socioambiental – ISA, em artigo publicado no sítio do ISA, 27-02-2014. 

                                          

Eis o artigo.

Às vésperas de cumprir dois anos de existência, a nova lei florestal (12.651/2012) ainda não deslanchou, pelo menos no quesito referente à recuperação ambiental dos imóveis rurais. Interessante notar, no entanto, que a não responsabilização (anistia) por desmatamentos ilegais ocorridos até 2008, outra face da mesma lei, está em pleno vigor desde o primeiro dia de sua publicação.

 

A razão principal pela qual praticamente nenhuma semente de espécie nativa foi plantada até o momento, em qualquer parte do país, para reflorestar beiras de rio ou nascentes, é a espera pelo Cadastro Ambiental Rural (CAR). Como já explicado aqui, o CAR terá como objetivo identificar eventuais passivos ambientais nos mais de 5 milhões de imóveis do país e conseguir um compromisso do proprietário em recuperá-los. Como a grande maioria dos produtores ainda desconhece sua existência e, entre os que sabem que ele virá, boa parte está aguardando sua real implementação para saber exatamente se e quanto terá de recuperar de florestas, o resultado é uma grande paralisação nas iniciativas de restauração florestal no país.

 

Desde o final de 2013, anuncia-se que o CAR “está para sair”. O Ministério de Meio Ambiente (MMA) construiu a duras penas um sistema, fez acordo com a grande maioria dos estados para que estes o usassem ou compatibilizassem seus sistemas próprios com o nacional, capacitou técnicos para sua operação e elaborou uma minuta de normativa, discutida com outros ministérios e com a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária(CNA), mas não com as organizações do campo socioambiental, para fixar os requisitos mínimos desse cadastro. Há meses essa minuta está para ser aprovada pela Casa Civil, mas isso nunca ocorre. A razão é que o Ministério da Agricultura (Mapa) é contra e, sem consenso, o assunto não vai adiante.

 

A objeção do Mapa é a mesma da bancada ruralista, que é a mesma da CNA, e se concentra em um aspecto “singelo”: eles exigem que o CAR aceite o cadastro de matrículas isoladas, como se fossem propriedades distintas, e não apenas do imóvel inteiro, como prevê a minuta do MMA e, a rigor, a própria lei (art.29, §1o – “A inscrição do imóvel rural no CAR deverá ser feita…”). Segundo a definição do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsável pelo Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), o maior e mais antigo cadastro de imóveis rurais do país, “imóvel rural é uma área formada de uma ou mais matrículas de terras contínuas, do mesmo detentor (seja ele proprietário ou posseiro)”.

 

O objetivo dos representantes do agronegócio é claro, e já havia sido anunciado antes da sanção da nova lei: ampliar para os médios e grandes proprietários a anistia concedida teoricamente aos pequenos.

 

O raciocínio não exige muita sofisticação. A lei florestal, sob o pretexto de “atender à questão social sem prejudicar o meio ambiente”, como exposto pelo Palácio do Planalto quando de sua sanção (veja apresentação do governo), previu que os “pequenos produtores” – detentores de imóveis de até 4 módulos fiscais, sejam eles agricultores familiares ou não – teriam obrigações ambientais muito menores que os demais.

 

Assim, por exemplo, previu que nenhuma Reserva Legal desmatada até 2008 teria de ser recuperada e que as matas ciliares dos rios que cortam seus imóveis poderiam ter meros 5 ou 8 metros de largura, a depender do tamanho do imóvel. Para os médios e grandes proprietários, a obrigação de recompor a Reserva Legal permanece, embora reduzida, e as matas ciliares devem ter no mínimo 20 ou 30 metros de largura, a depender do tamanho do imóvel.

 

Se o CAR aceitar o registro de matrículas isoladas, um mesmo imóvel parecerá, aos olhos do sistema, diversos imóveis distintos, embora do mesmo proprietário. Tomemos como exemplo uma única fazenda de gado de 480 hectares no município de Uberaba, que esteja dividida, no Cartório de Imóveis, em 3 matrículas, sendo uma de 320, outra de 85 e a terceira de 75 hectares.

 

Se cada matrícula for considerada um imóvel autônomo, ao invés de ter que manter ou recuperar 96 hectares de Reserva Legal (20% da área total), ele terá de manter ou recuperar apenas 64 hectares. Isso porque as duas matrículas menores correspondem a imóveis de 4 módulos (equivalente a 96 hectares no município) e estão isentos de restaurar a reserva. Uma diminuição de 33% da área a ser protegida. O mesmo aconteceria com as matas ciliares, que pela nova lei também serão bem menores nos “pequenos” imóveis.

 

O efeito concreto desse jeitinho pleiteado pelo Mapa seria imenso. Embora os imóveis de até 4 módulos fiscais correspondam a 90% do total de imóveis do país, elas ocupam apenas 24% do território. Alargar artificialmente a classe dos “pequenos” significaria avançar com a anistia mais profunda sobre os 76% restantes do território. Teríamos, na fantasia do cadastro, um país com melhor distribuição fundiária, menos desigual. Na realidade do campo, porém, teríamos um país com muito menos rios protegidos e muito mais desequilibrado ambientalmente. E no qual a malandragem, mais uma vez, seria prática oficial.

 

Fonte: IHU – Unisinos

Crônica de uma malandragem anunciada


"A lei florestal, sob o pretexto de 'atender à questão social sem prejudicar o meio ambiente', (…) previu que os 'pequenos produtores' teriam obrigações ambientais muito menores que os demais", escreve Raul do Valle, coordenador de política e direito socioambiental do Instituto Socioambiental – ISA, em artigo publicado no sítio do ISA, 27-02-2014. 

                                          

Eis o artigo.

Às vésperas de cumprir dois anos de existência, a nova lei florestal (12.651/2012) ainda não deslanchou, pelo menos no quesito referente à recuperação ambiental dos imóveis rurais. Interessante notar, no entanto, que a não responsabilização (anistia) por desmatamentos ilegais ocorridos até 2008, outra face da mesma lei, está em pleno vigor desde o primeiro dia de sua publicação.

 

A razão principal pela qual praticamente nenhuma semente de espécie nativa foi plantada até o momento, em qualquer parte do país, para reflorestar beiras de rio ou nascentes, é a espera pelo Cadastro Ambiental Rural (CAR). Como já explicado aqui, o CAR terá como objetivo identificar eventuais passivos ambientais nos mais de 5 milhões de imóveis do país e conseguir um compromisso do proprietário em recuperá-los. Como a grande maioria dos produtores ainda desconhece sua existência e, entre os que sabem que ele virá, boa parte está aguardando sua real implementação para saber exatamente se e quanto terá de recuperar de florestas, o resultado é uma grande paralisação nas iniciativas de restauração florestal no país.

 

Desde o final de 2013, anuncia-se que o CAR “está para sair”. O Ministério de Meio Ambiente (MMA) construiu a duras penas um sistema, fez acordo com a grande maioria dos estados para que estes o usassem ou compatibilizassem seus sistemas próprios com o nacional, capacitou técnicos para sua operação e elaborou uma minuta de normativa, discutida com outros ministérios e com a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária(CNA), mas não com as organizações do campo socioambiental, para fixar os requisitos mínimos desse cadastro. Há meses essa minuta está para ser aprovada pela Casa Civil, mas isso nunca ocorre. A razão é que o Ministério da Agricultura (Mapa) é contra e, sem consenso, o assunto não vai adiante.

 

A objeção do Mapa é a mesma da bancada ruralista, que é a mesma da CNA, e se concentra em um aspecto “singelo”: eles exigem que o CAR aceite o cadastro de matrículas isoladas, como se fossem propriedades distintas, e não apenas do imóvel inteiro, como prevê a minuta do MMA e, a rigor, a própria lei (art.29, §1o – “A inscrição do imóvel rural no CAR deverá ser feita…”). Segundo a definição do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsável pelo Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), o maior e mais antigo cadastro de imóveis rurais do país, “imóvel rural é uma área formada de uma ou mais matrículas de terras contínuas, do mesmo detentor (seja ele proprietário ou posseiro)”.

 

O objetivo dos representantes do agronegócio é claro, e já havia sido anunciado antes da sanção da nova lei: ampliar para os médios e grandes proprietários a anistia concedida teoricamente aos pequenos.

 

O raciocínio não exige muita sofisticação. A lei florestal, sob o pretexto de “atender à questão social sem prejudicar o meio ambiente”, como exposto pelo Palácio do Planalto quando de sua sanção (veja apresentação do governo), previu que os “pequenos produtores” – detentores de imóveis de até 4 módulos fiscais, sejam eles agricultores familiares ou não – teriam obrigações ambientais muito menores que os demais.

 

Assim, por exemplo, previu que nenhuma Reserva Legal desmatada até 2008 teria de ser recuperada e que as matas ciliares dos rios que cortam seus imóveis poderiam ter meros 5 ou 8 metros de largura, a depender do tamanho do imóvel. Para os médios e grandes proprietários, a obrigação de recompor a Reserva Legal permanece, embora reduzida, e as matas ciliares devem ter no mínimo 20 ou 30 metros de largura, a depender do tamanho do imóvel.

 

Se o CAR aceitar o registro de matrículas isoladas, um mesmo imóvel parecerá, aos olhos do sistema, diversos imóveis distintos, embora do mesmo proprietário. Tomemos como exemplo uma única fazenda de gado de 480 hectares no município de Uberaba, que esteja dividida, no Cartório de Imóveis, em 3 matrículas, sendo uma de 320, outra de 85 e a terceira de 75 hectares.

 

Se cada matrícula for considerada um imóvel autônomo, ao invés de ter que manter ou recuperar 96 hectares de Reserva Legal (20% da área total), ele terá de manter ou recuperar apenas 64 hectares. Isso porque as duas matrículas menores correspondem a imóveis de 4 módulos (equivalente a 96 hectares no município) e estão isentos de restaurar a reserva. Uma diminuição de 33% da área a ser protegida. O mesmo aconteceria com as matas ciliares, que pela nova lei também serão bem menores nos “pequenos” imóveis.

 

O efeito concreto desse jeitinho pleiteado pelo Mapa seria imenso. Embora os imóveis de até 4 módulos fiscais correspondam a 90% do total de imóveis do país, elas ocupam apenas 24% do território. Alargar artificialmente a classe dos “pequenos” significaria avançar com a anistia mais profunda sobre os 76% restantes do território. Teríamos, na fantasia do cadastro, um país com melhor distribuição fundiária, menos desigual. Na realidade do campo, porém, teríamos um país com muito menos rios protegidos e muito mais desequilibrado ambientalmente. E no qual a malandragem, mais uma vez, seria prática oficial.

 

Fonte: IHU – Unisinos