IEB faz 15 anos com os pés fincados na Amazônia: Instituto busca promover Justiça socioambiental fortalecendo as comunidades.
Lá eles chamam de base, é o chão. Parece longe de todo lugar, mesmo para os que vivem nesse vastíssimo “lá”, teia de muitos territórios amazônicos sumariamente semelhantes nas desigualdades – sociais, regionais, ambientais, gritantes. São gritos roucos dos filhos desse chão multidiverso que a equipe do IEB busca afinar com ouvidos receptivos, olhar atento e disposição para oferecer aos desfavorecidos uma laboriosa dinâmica de empoderamento, ao compasso da história de cada comunidade. Aos 15 anos de existência, o IEB – Instituto Internacional de Educação do Brasil tem destino e destinatário definidos para suas ações: as comunidades locais da Amazônia.
Criado para facilitar o acesso ao conhecimento sobre conservação da biodiversidade e desenvolvimento sustentável, executando projetos de formação e capacitação aplicáveis nos vários biomas brasileiros, o IEB percorreu nesse período uma trajetória singular, que abraçou o desdobramento dos focos de sua missão institucional por força do contato mais estreito com o “chão”. Não descuidou de sistematizar e disseminar os saberes sobre o uso dos recursos naturais nem sobre o indispensável alargamento da participação institucional das comunidades nos espaços públicos, mas aos poucos concentrou as ações na Amazônia – o que não é de pouca monta.
Com os pés no concreto de um cotidiano de conflitos variados, quase sempre na fronteira com a selva densa da burocracia estatal, tornou-se cada vez mais necessário encurtar a distância amazônica entre o que está no papel como políticas públicas e o isolamento em que vivem as populações originariamente beneficiárias dessas políticas – os ribeirinhos, agricultores assentados, agroextrativistas, indígenas. E então, para conferir maior sustentabilidade a sua missão, a equipe do IEB viu na gestão territorial e ambiental a perna que faltava para constituir, com o fortalecimento institucional das comunidades e os programas de formação e capacitação, o tripé de eixos temáticos que trabalha hoje.
“Nosso foco não é mais só formação porque ela não dá conta de todos os problemas” – explica a diretora-executiva Maria José Gontijo, fundadora do IEB. “A gente continua dando as bolsas, só que as bolsas são hoje muito mais voltadas para o Manejo Florestal Comunitário e Familiar, para filhos de agricultores; não é mais para o aluno da Universidade de Brasília que quer estudar a Amazônia. Fizemos a escolha de estar ali e trabalhar com o pé na terra mesmo.”
Iniciada cerca de oito anos atrás, a concentração no bioma Amazônia se deu também para atender às demandas crescentes em consequência da implantação das políticas públicas originadas nas várias esferas de governo, explica Henyo Trindade Barretto, diretor acadêmico. “Quando comecei a trabalhar com o IEB, eu o via como organização multilocal: mata atlântica, semiárido, caatinga, cerrado e Amazônia também. Mas, com o tempo, o IEB passou a ser identificado como instituição com grande inserção na Amazônia. Expressão disso são os dois escritórios regionais, um em Belém, o outro em Humaitá (AM).”
O coordenador regional Manuel Amaral Neto lembra que a criação do escritório de Belém foi definida em 2005 em decorrência de uma avaliação estratégica das ações do IEB “no campo da gestão de recursos naturais, com foco principalmente nas ações de articulação interinstitucional para o Manejo Florestal Comunitário e Familiar”. Segundo ele, esse foco conduziu à não restrição territorial do escritório de Belém, “que não se limita às ações realizadas no Pará, mas abrange toda a Amazônia brasileira”.
A capacitação e a participação da comunidade no desenvolvimento dos projetos de manejo florestal tornara-se eixo de atuação do IEB a partir de 1998, quando a implementação de projetos do PP-G7 mostrou a fragilidade legal do processo. (PP-G7 era o Programa Piloto de Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras, do Banco Mundial, com recursos dos sete países ricos.) “Não tinha marco regulatório para as ações do programa, que previa e contemplava a aprovação de planos de manejo na escala comunitária; não tinha mecanismo de fomento, de crédito que pudesse também apoiar essa atividade” – conta Manuel.
“Tentava-se criar algo novo na região e o PPG-7 apoiava os projetos, que enfrentavam enormes dificuldades; então o IEB promovia encontros que a gente chamava diálogo intersetorial pra discutir esses problemas. Foi dessa iniciativa que surgiu o marco regulatório que se tem hoje estabelecido para o Manejo Florestal Comunitário na Amazônia brasileira.”
Na fronteira do desmatamento
A avaliação de 2005 indicou também a necessidade de produzir uma estratégia regional para o Sul do Amazonas. “O diagnóstico apontou uma fragilidade institucional muito grande, nas comunidades e nos seis municípios da região” – conta o diretor técnico do IEB, Ailton Dias, um dos autores do estudo realizado em Lábrea, Humaitá, Manicoré, Boca do Acre, Canutama e Novo Aripuanã.
“Presença do Estado muito precária, quase ausente; Prefeituras que não desempenhavam a função pública, algumas capturadas por corrupção e crime organizado. E ao mesmo tempo uma pressão vinda de fora, das madeireiras, uso ilegal das terras, grilagem, violência. Uma situação quase explosiva.”
O diagnóstico confirmava a percepção que vinha se cristalizando nas ações do IEB, como recorda Maria José: “Em 2003 nós começamos a trabalhar com a ideia de espaço público. E constatamos que nesse espaço o empresário é muito empoderado, o poder público é muito empoderado. Quem realmente é o lado fraco nessa equação são as comunidades. A gente começou a perceber que se não fizesse essa opção por fortalecer quem precisava, nunca teria espaço público com algum resultado plausível”.
Essa percepção foi determinante na “estratégia de fortalecer as instituições locais, de prepará-las para uma situação de maior conflito social e ambiental na região, para gerir esses conflitos de maneira mais proativa”, na definição de Ailton Dias. O conflito explode na fronteira do desmatamento, o que exigiu uma estratégia de antecipação. “Nossa atuação no Sul do Amazonas está muito ligada a isso: chegar nas áreas onde a fronteira do desmatamento não chegou, mas vai chegar, e os grupos locais estão muito fragilizados pra poder reagir, oferecer alguma resistência.”
A precariedade é de tal ordem que “o IEB trabalha nas várias frentes, ajudando desde a constituição da associação local; em alguns casos, a gente apoiou a própria realização de assembleia, a organização dos procedimentos para a eleição de uma diretoria”.
A gente desgarrada e o atropelo
A prática desse tipo de intervenção num meio social onde o isolamento favorece a desagregação dos mais frágeis deu origem ao Programa Liderar, para capacitação de lideranças já reconhecidas nessas comunidades. Coincidiu com a celebração dos 15 anos do IEB, em dezembro de 2013, a reunião presencial de conclusão da primeira turma de formandos. Um deles, Virgílio dos Santos Silva, é agricultor no assentamento Virola-Jatobá, no município de Anapu/AM.
“A gente fica desgarrado, luta só com as próprias forças” – diz ele, acrescentando que na capacitação aprendeu a “administrar uma reunião, como liderar um grupo, entender o lado de cada um”. Virgílio reconhece que a presença do IEB na região “foi um laço muito forte pra gente ter mais firmeza e abriu uma nova perspectiva”.
Nesse cenário de desigualdade, lembra Ailton Dias, “atrair o Estado e levar as políticas públicas para a região se tornou um requisito para qualquer ação que a gente quisesse desenvolver”. A legislação que rege as Unidades de Conservação (UC), por exemplo, exige a participação de representantes da comunidade no conselho de gestão, e essa representação deve ter uma estrutura institucional. “Esse debate às vezes demora anos até que se crie um consenso de que precisa de uma associação mais ampla, representando os diversos setores do território, a associação-mãe”, conta o diretor-técnico do IEB.
“O passo seguinte é institucionalizar o conselho de gestão e garantir que as políticas públicas cheguem àquele território e passem pelo conselho, como uma instância que funcione para aplicação de recursos, Bolsa Verde, programas de transferência de renda, programas habitacionais, de criação de mercado, merenda escolar. Todas essas coisas podem ter o conselho como instância de discussão, deliberação e aplicação. É o que a gente chama de fortalecimento institucional.” Esse processo demanda tempo, mercadoria escassa, pois “o que mais tem na Amazônia é atropelo”.
Maria José reforça que “pra conquistar a confiança dessas pessoas leva três ou quatro anos, até podermos começar a trabalhar”. E questiona: “Quem quer investir nisso? Ninguém quer investir nesse tipo de coisa”. Por isso mesmo, o esforço do qualificado grupo de técnicos do IEB ganhou o respeito de instituições do Estado, como o ICMBio: “É um trabalho que eles não conseguem fazer. Ou seja, tem um grupo de pessoas dentro de uma UC que consegue dizer pra eles: olha isso aqui é a nossa agenda, é isso o que nós queremos. É sopa no mel para eles. Hoje essas comunidades já têm uma instância de diálogo com o ICMBio”.
O diálogo, a conduta e a regularização
Em Barcarena, próximo a Belém do Pará, o IEB aos poucos vence o mesmo desafio de apoiar a organização e qualificação das comunidades para dialogar com o Estado e, no caso, com empresas do polo de mineração que em três décadas produziram um grande passivo ambiental sem fornecer proporcionais contrapartidas à sociedade local.
Como resultado da capacitação das lideranças da comunidade e do diálogo estabelecido, as maiores empresas do polo de mineração aderiram à experiência nomeada como Pré-Fórum. “Foi criado, com representantes dos diversos setores da sociedade, um grupo de trabalho que está definindo um regimento e preparando o lançamento do Fórum Intersetorial de Barcarena para fevereiro” – comemora Manuel.
“O aspecto bastante positivo de nossa atuação é ter estimulado uma participação qualificada de representantes da sociedade civil a partir da capacitação e de uma articulação que envolveu esses setores dos movimentos sociais, a iniciativa privada, ONGs de diferentes esferas – locais, nacionais e até internacionais como a AIN – Ajuda da Igreja da Noruega” (país de origem da mineradora Hydro, instalada no município).
Iniciado em 2008 a partir de um TAC – Termo de Ajustamento de Conduta aplicado pelo Ministério Público Estadual do Pará e ainda em curso, o processo está relatado na publicação Fortalecimento Institucional e Criação de Espaço Público: Sistematização da Experiência em Barcarena, Pará, lançada em dezembro, nas comemorações dos 15 anos do Instituto.
Foi também um Termo de Compromisso – firmado entre a Prefeitura de São Félix do Xingu (PA) e o Ministério Público Federal – que inspirou outra ação conduzida pelo IEB. O coordenador regional explica que o Instituto está lá, “em parceria com outras organizações, em busca do fortalecimento institucional de uma comissão – criada por determinação do Termo de Compromisso – para realizar ações de combate ao desmatamento ilegal”, inclusive o Cadastramento Ambiental Rural de 80% das propriedades do município.
Entre outras atividades, Manuel menciona que o IEB “realiza a capacitação de pequenos agricultores com a temática socioambiental” e oferece “uma espécie de bolsa – o Xingu dos Saberes – a jovens oriundos de comunidades rurais para que façam experimentações agroecológicas voltadas para o fim do desmatamento”. A proposta inclui a criação de “um fórum de discussão para atrair as políticas públicas que fortaleçam as atividades produtivas sustentáveis”, acrescenta Manuel.
“A ideia é planejar no primeiro semestre de 2014 uma agenda de São Félix do Xingu em Brasília. Ou seja, discutir as ações do município, que tem cumprido as metas estabelecidas nos acordos com os órgãos governamentais [para reduzir o desmatamento] e qualificar demandas para que essas ações possam ser fortalecidas no âmbito do município. E essa é uma ação que vai envolver os diversos setores da sociedade.”
“É uma característica nossa: fazer as coisas de maneira o mais consensual e mais legítima possível” – pontua Maria José. “Não temos medo do diálogo, de aprender com nossos erros, por isso sistematizamos tudo que é feito. Para aprender com nossos erros e nossos acertos.”
Foi por causa do diálogo que o IEB acabou se embrenhando na selva da regularização fundiária. “Um tema extremamente espinhoso, difícil de trabalhar, e nós passamos algum tempo guardando distância dele, porque não estava no nosso perfil” – admite Ailton Dias. “Mas com o impacto das interlocuções cada vez mais densas, a gente viu que essa é a agenda estruturante, e não dá pra ignorá-la: o pessoal das comunidades repete isso o tempo todo.”
O diretor técnico avalia essa guinada como um dos sucessos da instituição, e acredita que “o trabalho deu um salto impressionante” quando incorporou a questão fundiária como tema crucial da gestão territorial e ambiental que integra suas linhas de atuação.
“A gente tem que pegar esse bonde, porque não se sabe até que dia ele vai rodar” – alerta Maria José. “Do ponto de vista do Estado, é o melhor instrumento para barrar o desmatamento!” A lógica da maior facilitação para a regularização territorial, afirma, começa com “os compromissos que o Brasil vem fazendo internacionalmente, de redução de emissões, que requerem a Amazônia mais vigiada para evitar as queimadas; nada melhor que as pessoas que estão lá sejam realmente os donos da terra onde vivem”.
O técnico florestal Antônio Carlos Nascimento, formando no Programa Liderar, acredita que “a única maneira de enfrentar o desmatamento é a regularização fundiária”. Ele é secretário da Cooperativa Extrativista Florestal Familiar de Apuí, município de 30 mil habitantes no Sul do Amazonas, onde a pecuária já é a atividade predominante e se multiplicam os conflitos pela posse e uso da terra. A regularização fundiária é, segundo Nascimento, “uma maneira de lutar dentro da lei para impedir os grandes desmatamentos e encontrar novas alternativas e fontes de vida nas propriedades”.
É essa a razão para a vinculação do IEB às ações de capacitação para gestão territorial e manejo de recursos naturais em parceria com associações, cooperativas e comunidades locais, “na perspectiva de construir alternativas ao modelo de desenvolvimento hegemônico”, como explica o diretor acadêmico Henyo Barretto.
“O próprio processo de elaboração e construção da política estadual de Manejo Florestal Comunitário e Familiar no Pará é pontuado por várias ações que são de treinamento e capacitação, não só dos atores locais, mas também dos próprios gestores públicos” – exemplifica. O objetivo é a qualificação desses atores para a implantação das políticas públicas. A experiência, em parceria com o IFPA – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará, foi sistematizada na publicação Os Desafios da Educação Profissional para o Manejo Florestal Comunitário e Familiar, lançada também no aniversário do Instituto.
A parceria com o IFPA ganhou consistência a partir de 2002, quando “os cursos tecnológicos eram voltados para o meio rural e não contemplavam na grade curricular uma disciplina relacionada a manejo de florestas”, relata Manuel Amaral. “Primeiro foi um módulo, depois evoluiu para uma disciplina e mais tarde se tornou o curso de Técnico em Florestas. Em 2009, a gente formaliza o termo de cooperação em que o IEB assume a responsabilidade de coordenar a disciplina de MCF já no curso de técnico de florestas.”
Articulação de saberes
A parceria com institutos de ensino federais e estaduais, e também com universidades, integra a proposta conceitual de articulação de diversificadas fontes de conhecimento que se alimenta na permanente disposição para o diálogo. “A gente trabalha com os conhecimentos tradicionais que as populações já têm daqueles ecossistemas, e traz também os estudiosos acadêmicos dessas culturas, desses regimes e sistemas de conhecimento, para atuarem de modo conjunto nas ações de formação” – informa Henyo.
"Tem também o senso prático da administração que o gestor público traz, tem anos de experiência, sabe como a máquina pública roda, para complementar esse processo. Se você olhar o plano de qualquer um dos cursos, vai ver que tem lá um pajé, um ancião sabedor, um historiador, um antropólogo, o coordenador que tem uma experiência de planejamento participativo interessante.”
Tal diversidade de fontes de conhecimento se buscou, por exemplo, no pioneiro curso de preparação para a implementação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas. O projeto Formar PNGATI foi desenvolvido com várias organizações indígenas, a Funai – Fundação Nacional do Índio, o Ministério do Meio Ambiente, o ICMBio, e integra também o conhecimento acadêmico. [Mais detalhes na página do Projeto Formar.]
O IEB tem colaborado indiretamente com outras ONGs na questão da gestão dos territórios indígenas, mas só recentemente assumiu uma parte do problema ao liderar um projeto de diagnóstico do território para os Apurinã, da Terra Indígena Caititu, em Boca do Acre (AM). “Essa região tem um passivo de reconhecimento de direitos territoriais indígenas: vários povos, principalmente Apurinã e também Jamamadi, reivindicam o reconhecimento de terras, que sequer têm estudos preliminares para constituição de grupos de trabalho de identificação – primeiro passo do ponto de vista da regularização”, conta Henyo Barretto.
A secretária da Organização dos Povos Indígenas Apurinã e Jamamadi de Boca do Acre, Gleiciane Apurinã, lamenta que a Funai alegue falta de funcionários para o processo de identificação e titulação das terras. Com apenas 23 anos, ela participou do Programa Liderar e agora se diz mais preparada para fazer sua parte: “Eu já tenho uma visão mais ampla, de onde eu posso reivindicar os direitos dos povos indígenas”.
* Artigo publicado originalmente no dia 16 de janeiro de 2014 por Sávio de Tarso
Fonte: Envolverde