Um carnaval pelo direito à cidade


 

Não se assuste se você ouvir a marcha “Máscara negra”, do genial Zé Kéti, com uma nova roupagem neste carnaval. Pois é tempo de brincar, pular, namorar e, por que não?, de manter o ritmo da crítica política. As jornadas de junho e os protestos que vieram em seguida mudaram o tom da maior festa brasileira. E, no Rio de Janeiro, a banda vai tocar assim: “Quanto tiro, ó, quanta polícia/a tropa de choque em ação/ditador de helicóptero/ e, no meio da cidade,/ um monte de caveirão”.

 

Blocos já estão organizados para levar seu recado às ruas com temas que variam de denúncias das remoções de famílias até o aumento da tarifa dos transportes públicos, passando pela truculência policial e os impactos negativos dos megaeventos.

 

As paródias das tradicionais marchinhas foram criadas pela reunião de pessoas de diversos blocos da cidade, em um movimento que ganhou o nome de “Ocupa Carnaval”, com o objetivo de utilizar a irreverência como mais um braço da luta por direitos na cidade do Rio de Janeiro. . Desde meados de janeiro, o grupo vem se encontrando e criando novas letras.

 

A primeira saída oficial acontece exatamente nesta quinta-feira pré-carnavalesca (26/2), data que marcaria a saída do governador Sérgio Cabral. O governador adiou mais uma vez e o vice, Luiz Fernando Pezão, só deverá assumir em 3 de abril. Mas o evento permanece marcado, intitulado “Cabralhada”.

 

Um dos grupos que está à frente do Ocupa Carnaval é o Bloco do Nada, que sempre vai às ruas junto com os protestos da cidade. O mestre de bateria e baixista Chico Oliveira afirma que uma das marcas desse carnaval será essa crítica política.

 

– O aumento das passagem e as remoções são temas contra os quais vamos protestar em meio à folia. E nossa sonoridade já é uma forma de protesto. É uma pegada bem funk, gênero que tem sido perseguido à semelhança do que ocorreu com o samba no passado. Por isso, na nossa bateria e nossos sopros se aproximam do timbre do funk. Para isso, suprimimos o repique e o tamborim e damos destaque ao reco-reco de mola e ao balde de ferro.

 

No Bloco do Nada, antigos gritos de guerra já ganhavam letras atuais. Um dos refrões mais famosos é “Olê Olê, Olê Olá, se a passagem não abaixar, o Rio vai parar”. Músico de profissão, Chico Oliveira já festeja o fato de que muitos cariocas estão mais atentos às contradições da cidade.

 

Enquanto as ações do poder público buscam limitar cada vez mais as manifestações ligadas ao funk, no carnaval de rua a história é outra. Além do Bloco do Nada, a Associação de Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk) estreará o Bloco Apafunk, no dia 7 de março, sexta-feira após o carnaval. Detalhe: sob uma proibição inconstitucional da prefeitura.

 

Os organizadores do bloco enviaram um ofício, como a Constituição exige, informando que o grupo se apresentará no Largo da Carioca. A prefeitura acenou negativamente. No entanto, como explicou um dos membros da diretoria do bloco e também advogado Guilherme Pimentel, a lei maior assegura que é permitida a livre manifestação e ocupação da cidade, desde que o haja registro.

 

– Além de tudo, também nos adequamos à lei do artista de rua, que tem liberdade para ocupar o espaço. Desde o nascimento, a Apafunk tem a marca da ocupação do espaço público. Ela surge no contexto da criminalização do funk pelo poder público, negando-o como forma de expressão da cultura popular. Assim foram criadas as rodas de funk, que passaram por favelas com UPPs e que, teoricamente, não podem ter eventos de funk.

 

O mote da Apafunk é exatamente contestar essa discriminação, o preconceito, a criminalização da juventude pobre, favelada, periférica, principalmente negra. Sempre que ocupamos um espaço, é um ato de resistência a esse processo. O bloco é mais uma expressão disso.

 

Mas, bem antes de as manifestações tomarem as ruas do Rio de Janeiro, o carnaval já havia se tornado espaço de luta pelo direito à cidade. Em 2009, o então recém-eleito prefeito Eduardo Paes lançou um decreto que ficou conhecido como um choque de ordem contra a cultura popular. O texto obrigava que todos os blocos pedissem autorização da prefeitura para que pudessem desfilar no carnaval.

 

Foi o estopim para a criação da Desliga dos Blocos, fruto da reunião de pessoas de diferentes blocos com o objetivo de marcar o descontentamento com a nova lei, em defesa da liberdade de manifestação, seja de cunho político ou cultural – ou os dois. Desde então, os blocos que participam da Desliga, sendo o maior deles o Cordão do Boi Tolo, arrastam milhares de foliões, fora, porém, dos panfletos oficiais da prefeitura.

 

– Temos um compromisso com o direito à algazarra espontânea e queremos ficar de fora dessa organização toda. Desde o decreto em 2009 e com o lançamento de parcerias público-privadas para o carnaval, já era claro que o prefeito estava construindo a mercantilização da festa. Trata-se de um princípio de exclusão, porque é ele quem decide quem pode ou não ocupar as ruas. Isso é censura prévia. Não é esse carnaval que queremos.

 

Raquel foi uma das autoras de uma faixa que rodou as mídias sociais em 12 de janeiro, na festa de abertura do Carnaval Não Oficial do Rio de Janeiro. O texto: “Vai ter carnaval, mas não vai ter copa”. Estava dado o recado. Embora ainda não fosse fruto de uma discussão política em torno do carnaval, aquele evento já dava o tom do que estava por vir. Sem ensaio algum e muito antes da criação das paródias das marchinhas, os foliões já entoavam canções de crítica à Copa do Mundo e aos governos do município e do estado.

 

Crítica política vem de outros carnavais

O jornalista João Máximo lembra que não é a primeira vez que a crítica invade o carnaval. As marchinhas de cunho político surgiram com força no período da revolução de 1930.

 

– Havia paródias críticas a Getúlio Vargas nesse período, e ele levava numa boa pelo menos até 1935. Depois, com o Estado Novo (1937), a coisa pode ter mudado de figura – brinca Máximo, lembrando o começo da ditadura Vargas. – O carnaval tem uma origem libertária no Brasil nos costumes e na política.

 

O pesquisador musical Ricardo Cravo Albin traz à memória marchinhas políticas marcantes. Talvez a mais emblemática, destaca ele, seja “Pedreiro Valdemar”, de Roberto Martins e Wilson Batista. A letra é direta e bastante atual: “De madrugada toma o trem da Circular/Faz tanta casa e não tem casa pra morar/ Leva a marmita embrulhada no jornal/Se tem almoço, nem sempre tem jantar/O Valdemar, que é mestre no ofício/Constrói um edifício e depois não pode entrar.”

 

A coragem de contestar, acrescenta Cravo Albin, tem na marchinha “Seu mé” uma digna representante. Nela, os compositores Freire Júnior e Luiz Nunes Sampaio pegaram (muito) no pé do então candidato à presidência da República, Artur Bernardes, que, eleito em 1922, manteve o país sob estado de sitio durante todo o seu mandato.

 

Na marcha, dois apelidos bem jocosos de Bernardes são salpicados na letra: Seu Mé e Rolinha. “O Zé-povo quer a goiabada campista/ Rolinha, desista Abaixe essa crista/ Embora se faça uma bernarda a cacete/ Não vais ao Catete!/ Não vais ao Catete! Ai, seu Mé! Ai, Mé Mé! Lá no Palácio das Águias, olé,Não hás de pôr o pé.” Assim que pôs o pé no palácio, Bernardes mandou prender Freire Júnior.

O carnaval de 2014 promete fazer história.

Agenda:
Cabralhada: 27/2 – 17h, Praça XV
BoiTolo: 02/3 – 10h, em frente às barcas
Bloco Apafunk: 7/3 Concentração às 18h, no Largo da Carioca
Bloco do Nada: 9/3 – 15h, na Saens Pena

 

Por: Camila Nobrega e Rogério Daflon do Canal Ibase

Fonte: Canal Ibase