São os indígenas do Brasil ‘privilegiados’?


“E dia após dia a tensão não opõe os empresários ou os grandes proprietários e os indígenas, mas o pequeno branco e índio. Quando o conflito explode, trata-se na maioria das vezes de um novo episódio da guerra de pobres contra os mais pobres que eles. Em suma, uma tragédia, que muitas vezes leva a mortes violentas”. A análise é de Paulo Paranaguá e publicada em seu blog no jornal Le Monde, 11-02-2014. A tradução é de André Langer.

 
Fonte: http://bit.ly/1lKzpAY  

Eis o artigo.

São os indígenas brasileiros cidadãos como os outros? É a identidade indígena assimilável à nacionalidade brasileira? Atenção, uma questão simples que pode levar a outra, mais complexa.

O debate sobre o estatuto dos indígenas está de volta entre os brasileiros por ocasião de um drama sintomático das tensões e conflitos que dilaceram a Amazônia.

Ivan Tenharim (foto), cacique da comunidade Tenharim, foi morto quando andava de moto, no diz 03 de dezembro de 2013. Acidente? Por falta de uma investigação digna deste nome, o caso não foi elucidado. Algumas semanas mais tarde, três moradores brancos da região, situada ao sul do Estado do Amazonas, foram sequestrados e em seguida assassinados.

A reação foi imediata: no dia 25 de dezembro, em Humaitá, 3.000 manifestantes, furiosos, destruíram a sede regional da Funai, organismo do governo responsável pelos povos indígenas. Grupos armados atacaram aldeias Tenharim. Alguns dias mais tarde, a polícia prendeu cinco índios, suspeitos do triplo homicídio, incluindo dois filhos do falecido chefe Tenharim.

Negação da identidade

Os críticos da demarcação das terras indígenas estão furiosos. Na sua opinião, o simples fato de os índios andarem de moto, usarem internet ou telefones celulares, são provas suficientes para afirmar que não são mais indígenas, e que, portanto, perderam os direitos reconhecidos na Constituição de 1988. Daí a ideia de que sejam tratados como cidadãos sem “privilégios”. Eles teriam, isso sim, direito às mesmas ajudas reservadas aos pobres, tais como o Bolsa Família, ou então os créditos reservados aos pequenos agricultores. Entretanto, uma comunidade indígena é definida por sua pertença a uma cultura e seu pertencimento a um território, direitos que não revogados pelo uso de objetos tecnológicos.

Esta negação das identidades indígenas esconde os interesses dos criadores de gado e do agronegócio ansiosos para ampliar ainda mais a fronteira agrícola em detrimento da floresta tropical, para não mencionar a exploração da madeira, assim como as mineradoras que trabalham sem parar. Quase todas as populações indígenas estão em contato com a civilização branca. As tribos isoladas são a exceção. E é justamente esta interação que os coloca em perigo e, na verdade, são as minorias que devem ser protegidas.

A Amazônia há muito tempo não é mais um território virgem. Ela abriga 25 milhões de habitantes, 500.000 dos quais são indígenas. É um confronto diário, necessariamente desigual. E dia após dia a tensão não opõe os empresários ou os grandes proprietários e os indígenas, mas o pequeno branco e índio. Quando o conflito explode, trata-se na maioria das vezes de um novo episódio da guerra de pobres contra os mais pobres que eles. Em suma, uma tragédia, que muitas vezes leva a mortes violentas. O Brasil tem 50.000 homicídios por ano, e não devemos esquecer, estamos longe da imagem idílica de um paraíso racial pacífico e de uma propensão a uma conciliação entre as classes sociais.

O racismo em relação aos indígenas nunca diminuiu, apesar das conquistas da Constituição. No Brasil, existem mais de 300 etnias, que falam 274 idiomas diferentes, totalizando 900.000 indivíduos (sobre uma população de 200 milhões de habitantes). Segundo o recenseamento de 2010, os Tenharim tinham 883 indivíduos. Durante a ditadura militar (1964-1985), suas terras foram cortadas pela Transamazônica, que liga Porto Velho a Manaus. Desde então, os conflitos entre indígenas e colonizadores se intensificaram, especialmente por causa da extração ilegal de madeira.

Demarcações em ponto morto

Das cerca de mil terras indígenas, apenas metade viu suas terras demarcadas, após anos de trabalho. As reservas indígenas ocupam 12,5% do território do país, ao passo que 380.000 indígenas ainda aguardam pela demarcação das suas terras. Para complicar o cenário, o Ministério da Justiça apresentou um projeto de lei que prevê a consulta a nove ministérios para novos processos de demarcação.

No Congresso, em Brasília, onde age a poderosa bancada ruralista, um projeto de emenda constitucional (a PEC 215) vai ainda mais longe, pois pretende tirar do executivo esta responsabilidade. A vontade de esvaziar a Funai é evidente. “A Funai vive uma ficção ideológica”, afirmou a senadora Kátia Abreu, presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária, eleita pelo PMDB, principal aliado do PT da presidenta Dilma Rousseff, na coalizão governamental.

O presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Erwin Kräutler, bispo de Xingu, asseverou: “Esse governo não é apenas negligente, ele é anti-indígena”.

(EcoDebate, 17/02/2014) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]